São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997.

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CINEMA
As distorções de uma sinfonia


Filme de Lustig & Kemeny lança luz sobre a imagem que São Paulo tem de si mesma
LIVIO TRAGTENBERG
especial para a Folha

A restauração do filme ``São Paulo, a Symphonia da Metrópole'' (1929), de Rudolpho Rex Lustig e Adalberto Kemeny, empreendida pela Cinemateca Brasileira, não apenas restaurou uma fatia importante da auto-imagem da cidade como recoloca questões fundamentais sobre a própria cidade, seu cinema, sua imagem, projeto e natureza.
Um filme que até agora foi majoritariamente menosprezado por parte da crítica impõe a sua própria importância, e certamente conquistará seu espaço na cinematografia nacional como uma de suas realizações mais importantes.
No entanto, este filme luta contra uma série de preconceitos: o fato de ser paulista num meio dominado por carioquismos; ter sido realizado por dois técnicos de cinema (e também por isso menosprezado por uma pseudo-intelectualidade), que iriam mais tarde dar suporte técnico para a viabilização da Vera Cruz; por seus realizadores serem imigrantes e não fazerem parte da elite cultural paulista; por ter sido realizado dois anos após ``Berlim, Sinfonia de uma Cidade'', de W. Ruttmann.
Portanto, a restauração da película reclama também uma restauração crítica; pois, acredito, essa é uma tarefa que merece nossa atenção.
É sabido que o paulistano ama e odeia sua cidade, relação que se reflete no imaginário de seus habitantes. Na forja da cidade que se urbanizava na década de 20, sua auto-imagem revelava-se como cidade-oportunidade, atraindo, assim, a imigração. Mas desde as últimas décadas essa auto-imagem transformou-se e, distorcida, torna-se cidade-pesadelo.
Essa complexidade em se auto-reconhecer é também a matéria-prima de nosso filme. Nele, a cidade-eldorado e a cidade-pesadelo são involuntariamente contrapostas às imagens e textos dos letreiros. Existem verdadeiras colisões entre o conteúdo verbal do letreiro e as imagens. Ao mergulhar suas lentes na metrópole fracionada, revela a essência da cidade de São Paulo: a impureza como matéria básica e a feiúra e o desequilíbrio como resultados da ação cotidiana. A cidade como um mal necessário e inevitável, instrumento meramente utilitário.
Nesse sentido, ``Symphonia da Metrópole'' é um almanaque das situações urbanas, dos fatos históricos formadores, das personagens, costumes e aspirações de uma cidade que buscava para si um projeto de metrópole cosmopolita.
Certas situações históricas abordadas no filme, como o grito do Ipiranga e mesmo o dia-a-dia da Penitenciária do Estado sofreram a própria crítica temporal, que, antes de ideológica, é real, incontestável e irrefreável.
A inclusão da encenação do quadro de Pedro Américo revela uma operação engenhosa do roteiro e chama nossa atenção para a figura de um negro, escravo, valorizado por um close, enquanto acena, aprovando o ato de libertação. Essa cena é uma espécie de zoom que antecipa a sequência seguinte, sobre o Museu do Ipiranga, ao qual o quadro pertence. O filme aborda o museu, então, a partir de seu ícone maior, o quadro de Pedro Américo. Esse é um dos procedimentos pelos quais o documentário se contamina de ficção.
Por sua vez, a sequência sobre a penitenciária é o momento em que se observa a atuação retrospectiva da história política e social sobre o filme. Essa sequência, de louvação moral a uma disciplina militar, transforma-se, aos olhos de hoje, em matéria de crítica social.
O público reage inicialmente com escárnio e humor com relação ao tom pregatório de ``regeneração moral''. Mas, logo em seguida, ao se mostrar o trabalho dos detentos nas oficinas, no campo e a ginástica no pátio, é inevitável um paralelo com relação à barbárie de hoje, o que provoca, por fim, um certo constrangimento pela cumplicidade social que nos anela.
Essa ``atualização'' inexorável da própria história social torna vazias as acusações de reacionarismo e positivismo.
Por ser um filme paulista, gera uma antipatia de certa historiografia do cinema brasileiro baseada no Rio de Janeiro, que deseja reservar o Olimpo do cinema nacional apenas para ``Limite'', de Mário Peixoto.
Na verdade, existe uma dificuldade em se lidar com a irregularidade estética do filme, as impurezas e o conflito entre idéias conservadoras e imagens ousadas.
A atualidade de ``Symphonia da Metrópole'' está justamente na exposição de sua desigualdade, impureza e inocência de almanaque Capivarol. Mais ainda, é um retrato do olhar do imigrante europeu que oscilava entre a necessidade do reconhecimento de semelhanças e uma forma inocente de lidar com uma nova realidade que ainda não dominava totalmente.
Quem procura o belo -clássico- e o homogêneo e puro deve fugir de São Paulo.
Para a elite intelectual quatrocentona, Lustig & Kemeny eram dois estranhos que ousaram trazer o olhar rico e médio do homem simples que passeia pela cidade. Essa distância da elite contribuiu, certamente, para que a recepção do filme fosse abafada nas décadas seguintes.
Por meio do uso de instrumentos óticos confeccionados artesanalmente para a obtenção de imagens partilhadas e caleidoscópicas, Lustig & Kemeny buscavam traduzir a alma nascente da urbe. A câmera, em vez de interferir na ação captada, postava-se atrás dela, deixando que as situações fossem registradas de forma mais natural possível, revelando o discurso da câmera, que em vez de buscar reações, faz com que a própria escolha do objeto por si só direcione a narrativa.
O filme emprega vários recursos da linguagem atual do cinema, como, por exemplo, a listagem sequencial, usada na seção que aborda o jogo do bicho. Nela desfilam os closes de diversos animais relacionados às dezenas do jogo num recurso pré-minimalista muito empregado no cinema de hoje, como no recente ``Ilha das Flores'' de Jorge Furtado.
Essa combinação entre uma linguagem direta, imaginativa, mas quase tosca, e um fluxo de informações documentais, leva ``São Paulo, a Symphonia'' ao limite da ficção.
A questão que envolve a classificação do filme, seja como documentário ou ficção, embute um outro preconceito que, mais uma vez, reforça a vocação reacionária do paulista, tão bem retratada pelo filme. O fato de Lustig & Kemeny serem dois técnicos, e de terem desenvolvido por aqui atividades ligadas à execução técnica -fundando a REX Filmes do Brasil- é usado como argumento para uma suposta fragilidade ou inconsistência da linguagem estética do filme.
Na verdade, o substrato dessa questão envolve o preconceito contra o fato de dois técnicos terem realizado uma obra de arte significativa ao largo de teorias, dando impulso à apreensão sensorial da cidade. Mas essa é uma questão há muito superada pelo desenvolvimento de novos meios e formatos da expressão artística.
Finalmente, ``São Paulo, a Symphonia'' tem sofrido, volta e meia, a acusação de plágio com relação a ``Berlim, Sinfonia de uma Cidade''(1927), de Walter Ruttmann. A questão, antes que moral ou ética, é estética, ainda que Lustig & Kemeny tenham se defendido alegando desconhecer o filme alemão, é uma questão que deve ser encarada sob um outro ângulo. Pois, dessa forma, ``Berlim, Sinfonia de uma Cidade'' seria, então, plagiário de ``O Homem da Câmera'', de Dziga Vertov, e outros tantos de um gênero de cinema que se estabelecia nas primeiras décadas do século, e que combinava crônica, reportagem e ficção na apreensão da nascente vida urbana.
Justamente por tratar-se de um gênero extensamente praticado à época, a acusação de plágio torna-se vazia e inútil. ``São Paulo, a Symphonia da Metrópole'' precisa de uma releitura que leve em consideração os dados do cinema e da realidade visual dos dias de hoje. É, sem dúvida, uma matriz rica para novas abordagens da cidade, suas imagens e histórias.


Livio Tragtenberg é compositor e professor no departamento de música da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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