São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

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LIVROS
O cronista da tristeza brasileira



O clássico polêmico ``Retrato do Brasil'', escrito pelo empresário e ensaísta Paulo Prado em 1928, ganha reedição revisada
JOSÉ GERALDO COUTO
especial para a Folha

Quase 70 anos depois de seu surgimento, em 1928, o controvertido ``Retrato do Brasil'', de Paulo Prado (1869-1943), ganha uma nova edição, desta vez uma edição crítica minuciosamente organizada pelo crítico e pesquisador Carlos Augusto Calil.
Desde que veio à luz, há sete décadas, o clássico de Paulo Prado não parou de provocar celeuma, e parece estar longe de ser um ponto pacífico nos debates sobre a cultura e a formação do Brasil.
Sua ``tese'' -grosso modo, a idéia de que o brasileiro é um povo triste, em decorrência da luxúria e da cobiça inerentes aos colonizadores do país- nunca convenceu ninguém, mas atiçou -e continua atiçando- todo tipo de debate, reflexão e reação apaixonada no seio da intelectualidade nacional.
Paulo Prado conta a história do Brasil como uma crônica de vícios e horrores. Liberados pela Renascença dos freios da religiosidade medieval, os primeiros europeus a aqui chegarem teriam encontrado na natureza exuberante e na sensualidade indígena um incentivo à ``pura animalidade''. A própria motivação essencial dos ocupantes era a cobiça, o desejo voraz de ganho rápido e fácil.
Somando-se a tudo isso a instituição desmoralizadora da escravidão e a atuação nefasta de uma corte decadente e parasitária, chega-se, na visão de Paulo Prado, a um enfraquecimento inevitável dos ânimos, a um aviltamento dos melhores espíritos -em contraste com o sentido vigoroso e empreendedor que caracterizou a colonização da América do Norte.
Para o crítico Roberto Schwarz, o livro de Paulo Prado, assim como os grandes ensaios interpretativos que o sucederiam na década seguinte -``Casa Grande e Senzala'', de Gilberto Freyre, e ``Raízes do Brasil'', de Sérgio Buarque de Holanda- só pode ser lido de maneira ``realista e justa'' por quem leu também a obra do historiador marxista Caio Prado Jr., que explica a formação material do país.
``De outro modo, se você acredita no que eles escrevem como sendo a `verdade', você entra num culturalismo ou num psicologismo maluco. Esses caras são mais finos que o Caio Prado Jr. na apreensão da coisa psicológica, mas precisam do pé-no-chão da economia'', diz o autor de ``Ao Vencedor as Batatas''.
Para o historiador Francisco Iglésias, autor de ``Trajetória Política do Brasil'', o ensaio de Paulo Prado ``é um livro muito errado, mas fundamental e brilhante, que se lê com muito prazer''.
Segundo o historiador mineiro, um dos grandes méritos de ``Retrato do Brasil'' é ter-se debruçado sobre os até então pouco estudados autos da Inquisição no Brasil de fins do século 16. ``Seu grande erro, entretanto, foi fundar o livro nessa fonte praticamente única. Como todo documento de natureza policial, os autos da Inquisição são extremamente suspeitos.''
Cobiça
A explicação de Iglésias é convincente: ``Se a Inquisição estava empenhada em investigar e punir a usura e a luxúria (muitas vezes à custa de confissões extraídas sob tortura), é óbvio que em seus documentos são esses os traços realçados. Isso tornou Paulo Prado obcecado com essa idéia de que o brasileiro é, desde a origem, cobiçoso e erotômano''.
Curiosamente, o mesmo erotismo que escandalizava Paulo Prado era celebrado por seu amigo e companheiro de modernismo Oswald de Andrade. Numa crítica publicada no calor da hora (e incluída nesta nova edição do ``Retrato''), Oswald protestava: ``Não posso compreender que um homem `à la page', como é meu grande amigo, escreva sobre o Brasil um livro pré-freudiano. A luxúria brasileira não pode, no espírito luminoso de Paulo Prado, ser julgada pela moral dos conventos inacianos''.
De acordo com Carlos Augusto Calil, além do conhecido papel de ``discreto mecenas'' da Semana de 22, Paulo Prado desempenhou também no modernismo brasileiro um papel intelectual decisivo, sobretudo ao revelar a Mário e Oswald de Andrade a rica literatura dos viajantes e dos primeiros ocupantes da colônia. Do contato com essa literatura teriam surgido obras como ``Macunaíma'' e os movimentos Pau-Brasil e Antropofágico.
``É interessante observar o contraponto entre a alegria de Oswald e as abordagens de Mário e de Paulo Prado, que põem o dedo na tristeza'', comenta Roberto Schwarz.
O próprio papel precursor do ``Retrato do Brasil'' com relação a ``Casa Grande e Senzala'' e ``Raízes do Brasil'' é controverso.
Para o historiador Boris Fausto, o livro de Paulo Prado é ``uma tentativa de fazer uma psicologia coletiva, ao passo que as análises de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque têm uma amplitude muito maior e dão mais atenção à vida material''. Nesse sentido, ``Retrato do Brasil'' seria, isso sim, um precursor da tendência que seria depois chamada de história das mentalidades.
Francisco Iglésias saúda como positivo o renascimento do interesse pelas interpretações de ordem psicológica e cultural, depois de décadas de predomínio quase exclusivo das explicações econômicas, de viés marxista ou não: ``Foi uma época em que todas as cabeças ficaram saturadas de coisas que já não diziam nada, enquanto interpretações como a de Paulo Prado eram rotuladas pejorativamente de `psicologizantes'. A maioria dos livros de explicação econômica é mal escrita, pedregosa, sem o mínimo brilho''.
Roberto Schwarz vê com muito mais reserva o crescimento do interesse pela chamada história das mentalidades: ``Ao contrário do que ocorre na França, onde os historiadores das mentalidades não dispensam um sólido conhecimento da economia, aqui parece que se quer estudar a história cultural para esquecer a economia, ignorar a base material. É um momento de regressão intelectual, o que, obviamente, não é culpa de autores como Paulo Prado, mas do modo como são lidos''.
Contra o ufanismo
De acordo com Carlos Augusto Calil, a intenção de Paulo Prado ao publicar o livro era mesmo provocar discussão, sobretudo ao contrapor-se ao então reinante ufanismo de Afonso Celso. Conseguiu. O livro teve um impacto tremendo, esgotando três edições em um ano.
``Quase todas as reações foram de crítica, mas todas louvavam o estilo admirável do autor'', diz Calil, que dedicou um ano de trabalho à organização do livro, o que incluiu uma busca minuciosa às fontes de Paulo Prado, para o estabelecimento correto das citações, descuidadas em edições anteriores.
Literariamente, de fato, ``Retrato do Brasil'' arrebata o leitor já a partir de sua célebre e esplêndida frase de abertura: ``Numa terra radiosa vive um povo triste''. Não por acaso, Oswald, na mesma crítica citada acima, qualificava Paulo Prado de ``o melhor escritor brasileiro vivo''.
``Até hoje a prosa dele impressiona pela brevidade e pelo rigor'', resume Roberto Schwarz. ``Só quem tem uma visão organizada da cultura pode ser econômico como ele. Isso vale também para o Oswald e para o Mário de Andrade.''
Carlos Augusto Calil espera que a nova edição do ``Retrato do Brasil'' chame a atenção dos leitores para Paulo Prado, uma das figuras mais importantes da cultura brasileira nas primeiras décadas do século.
Filho do conselheiro Antônio Prado, ministro do Império, Paulo Prado era ao mesmo tempo um empresário enérgico, que ajudou a diversificar os negócios da família, e um intelectual refinado, de sólida cultura européia.
Bonito, elegante e inteligente, impressionou o escritor português Eça de Queirós, que era amigo de seu tio, Eduardo Prado. ``Menino, tu és uma perfeição humana'', teria dito ao jovem Paulo o autor de ``A Cidade e as Serras''.
Paulo Prado foi um combatente pela modernidade, tanto no plano das artes como no da economia e vida social. Vivia em confronto com seus colegas empresários, de quem cobrava mais empenho na modernização das estruturas econômicas e políticas do país.
Para Carlos Augusto Calil, existem na verdade dois livros em ``Retrato do Brasil''. ``O primeiro é o `ensaio sobre a tristeza brasileira' (subtítulo do livro), e o segundo é o `Post-Scriptum', que é um libelo quase profético sobre a necessidade de uma revolução que consertasse o país.'' (A revolução viria, com Getúlio, em 1930, mas Paulo Prado logo se decepcionaria com seus rumos).
Entre a redação do ensaio e a do ``Post-Scriptum'', houve a morte de Capistrano de Abreu, o grande mentor e interlocutor de Paulo Prado. ``Ele teve de assumir seu próprio caminho, e fez isso adotando uma postura de combate contra os males do país'', diz Calil.
Quase todos esses males -o egoísmo das elites, a ignorância, o atraso econômico, o desperdício, a corrupção- continuam intactos. É por isso que, de tempos em tempos, faz bem ao Brasil se mirar nesse retrato.

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