São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

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LIVROS
A cultura da apropriação



Estudo investiga o modo brasileiro de copiar idéias
ELIANE ROBERT MORAES
especial para a Folha

Por volta dos anos 10, entre os elegantes do Rio de Janeiro um novo hábito tornou-se obrigatório: nos passeios da moderna avenida Central, o convencional "bom-dia" foi sumariamente substituído por um "Viva a França!". Com essa saudação à francesa, cuja origem remonta ao início da Primeira Grande Guerra, as elites urbanas da nova República se imaginavam partilhando o cosmopolitismo europeu. Sedentas de modelos de prestígio, essas elites empenhavam-se em assimilar os valores da belle époque parisiense, consumindo avidamente as últimas novidades que chegavam no "dernier bateau" (último navio).
A patética cena do início do século não é, contudo, única na história do Brasil. Pelo contrário, antes e depois dela proliferam episódios semelhantes. Já na época da Independência, o mesmo empenho frenético de promover o ingresso do país no mundo civilizado fez com que a burguesia urbana substituísse as venezianas de madeira pelas vidraças, os xales pelas capas, e os sucos de frutas tropicais pelo chá. Tal foi a influência da cultura britânica na primeira metade do século 19 que até as histórias populares de terror, segundo conta Gilberto Freyre, passaram a ser assombradas por pálidos fantasmas ingleses.
Esses dois exemplos enfáticos talvez bastem para nos recordar que a questão da transposição de modelos estrangeiros é tão recorrente na história cultural do país quanto a questão da identidade nacional, com a qual mantém profundos laços. E também tão complexa quanto esta: ainda que a obsessão em imitar "o que vem de fora" seja uma constante na mentalidade das nossas elites, o tema não se conclui no recorte de classe. No caso do Brasil, a intrincada trama de relações entre o que é "nativo" ou "estrangeiro" supõe uma problemática demasiado densa, impossível de se esgotar numa única explicação.
É precisamente nesse sentido que se revela oportuna a publicação do livro de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Os textos contidos em "Nísia Floresta - o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" têm, antes de mais nada, o mérito de colocar em novos ângulos certas noções sobre a circulação de idéias entre culturas diferentes. Os quatro ensaios que compõem o livro giram em torno de episódios histórico-literários nos quais o problema da influência estrangeira é central.
No primeiro deles, a autora analisa um popular periódico francês do século 18, "Le Journal Etranger", cujo principal objetivo era justamente valorizar tais influências em qualquer produção cultural. Repudiando em particular o pedantismo dos autores franceses, que consideravam sua cultura um modelo universal, o periódico insistia no propósito de incentivar a circulação de idéias entre os diversos povos. No entender de seus editores, até mesmo a imitação assumia um valor positivo, sendo descrita em termos surpreendentemente modernos como a "arte de se apropriar" de elementos culturais num processo de "contínua invenção".
A análise da estratégia editorial de "Le Journal Étranger" parece fornecer a Maria Lúcia Pallares-Burke os parâmetros dos estudos que se seguem. Isso porque, se o periódico francês apresentava um certo exagero militante no que diz respeito à valorização do estrangeiro, é este mesmo exagero que permite à autora relativizar a idéia de cópia pela de apropriação, mas sem perder de vista a tensão entre os dois termos. Tal perspectiva orienta os demais ensaios do livro, que abordam desde as imitações do diário inglês "The Spectator" por três periódicos europeus do século 18, além de outro brasileiro do século seguinte, até uma suposta tradução que Nísia Floresta teria realizado, em 1832, da obra feminista de Mary Wollstonecraft.
O fato de trabalhar com textos de distintas nacionalidades e épocas torna o estudo particularmente interessante. Primeiro, por realçar as diferentes estratégias que motivaram a escolha do modelo estrangeiro a ser copiado. No caso das publicações setecentistas, por exemplo, embora houvesse denúncias de plágio no período, essas eram atenuadas em função da utopia iluminista de educar os leitores para promover a reforma dos costumes. Foi com tal intuito que certos periódicos femininos editados em Paris, Londres e Cádis se apropriaram do consagrado modelo do "Spectator" para divulgar suas idéias. Igualmente fiel ao projeto de ilustração, e com a mesma pretensão de universalidade, o criador recifence de "O Carapuceiro" não hesitou, mais de cem anos depois, em copiar páginas e páginas do mesmo diário inglês para diagnosticar os vícios morais do povo brasileiro.
Em todos esses casos, porém, as apropriações não se limitaram à mera imitação de seu modelo. Pelo contrário, elas se realizaram como "apropriações criativas", lançando mão de adaptações, acréscimos, omissões e outras alterações significativas que chegavam até a deturpar idéias da obra original. Ou seja, ao mesmo tempo em que os modelos estrangeiros sobreviviam por meio dessas cópias, no decorrer da apropriação eles também eram modificados.
É justamente nesse sentido que o termo "tradução cultural" proposto pela autora assume intensa significação, ganhando particular relevo no ensaio sobre Nísia Floresta. Nele, o leitor é convidado a participar de uma sinuosa investigação detetivesca que conclui com a revelação de que não foi o tratado de Mary Wollstonecraft que Nísia traduziu, mas sim um livreto de 1739 que, por sua vez, plagiava uma obra francesa do século 17. Contudo, tanto o plágio inglês quanto sua tradução brasileira podem ser considerados estratégias feministas das mais inteligentes nas épocas em que foram publicados.
Ora, é difícil tomar conhecimento desses processos de "digestão" cultural que caracterizam as obras estudadas por Maria Lúcia Pallares-Burke sem nos lembrarmos da antropofagia dos nossos modernistas. Isso porque, num certo sentido, as interpretações contidas em "Nísia Floresta - o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" parecem também se orientar por uma perspectiva antropofágica. Por isso ainda, se o livro sugere novos ângulos para pensarmos questões recorrentes da história brasileira, ao lê-lo somos incitados a atualizá-las para um contexto ainda maior. Na medida em que focaliza a tensão entre o local e o estrangeiro, esses ensaios fornecem uma chave instigante para a compreensão do fenômeno cultural que hoje atende pelo nome -genérico e obscuro- de "globalização".


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora, entre outros, de ``Sade - A Felicidade Libertina'' (Imago).

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