São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

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MEMÓRIA
Os mistérios de Wilhelm Reich



Amanhã faz cem anos que nasceu o psicanalista austríaco
CLAUDIO MELLO WAGNER
especial para a Folha

Todo homem, mesmo o mais cético, cultua certas datas mágicas. 1997 é o ano do centenário de nascimento de Wilhelm Reich. Dezenas de eventos comemorativos estão se realizando no mundo todo. Entre estes, os de maior destaque são os de Viena (8 a 12/5) e São Paulo (25 a 28/8).
Nascido no dia 24 de março de 1897 em Dobrzinica (no antigo Império Austro-húngaro), Reich atracou seu barquinho no porto da psicanálise em 1920, trazendo o seguinte currículo: judeu, órfão de mãe (suicídio) e de pai (tuberculose), destituído de suas propriedades na Primeira Guerra (na qual combateu), formado às próprias custas em medicina e tendo que prover, além do seu, o sustento do irmão enfermo (morto poucos anos mais tarde). Começa então em 1920 a carreira de um dos mais polêmicos e irrequietos pensadores da humanidade e de suas mazelas. Não por acaso sua biografia, escrita pelo colaborador e discípulo Myron Sharaf, recebeu o nome de "Fúria Sobre a Terra".
Já estamos em 1922 e Reich não se conforma com o fato de que uma ciência tão fantástica como a psicanálise tenha uma prática clínica ainda precária. É nomeado pelo mestre como diretor dos seminários de técnica psicanalítica. Desta experiência resultam seus escritos clássicos sobre técnica, referência ainda hoje para psicanalistas e psicoterapeutas em geral, embora poucos reconheçam isto.
Em 1927, dedica seu primeiro estudo sobre a função do orgasmo ao mestre Freud. O radical psicanalista Reich afirma neste trabalho que a dita metapsicologia de Freud tem uma dimensão física tangível e que a função do orgasmo é fator fundamental no equilíbrio físico-emocional do animal humano. Freud esfria, e Reich fica marcado como um anjo torto da psicanálise.
Três anos são o suficiente para que Reich abandone a conservadora Viena e rume em direção à politizada Berlim. É que em Viena Freud controlava em demasia a ação e produção de seus pupilos. É bem certo que ele tinha lá suas razões para tanto. Em todo caso ou, por isso mesmo, pertenciam ao grupo de Berlim nada mais nada menos que Melanie Klein, Otto Fenichel, Erich Fromm, Karl Abraham e Karen Horney, à época simpáticos aos ideais socialistas.
Outros três anos são o tempo necessário para Reich elaborar sua teoria sobre a análise do caráter, fundar a Sexpol (associação destinada a promover, sobretudo entre o operariado e a juventude, debates sobre sexualidade e política a partir de uma perspectiva freudo-marxista) e dissecar a psicologia de massas do fascismo do então insurgente Hitler. Com isto conseguiu ser expulso do movimento psicanalítico, do partido comunista, e ser perseguido pelo nacional-socialismo alemão.
No exílio, primeiramente na Suécia e posteriormente na Noruega, com Ola Raknes e seu grupo, Reich faz duas descobertas fundamentais: primeiro, descobre que o corpo todo fala e, segundo, que a origem da vida é o orgone (energia cósmica primordial). Entre 1934 e 1939 nascem a psicanálise de abordagem corporal (vegetoterapia carátero-analítica) e as pesquisas sobre as biopatias (doenças de origem etiológica desconhecida pela medicina oficial).
Última parada, mundo novo. Reich acredita que a arejada América do pós-guerra está pronta para recebê-lo. Ledo engano. De 1948 a 1957, é perseguido, acusado, processado e encarcerado por charlatanismo pelo macartismo. Morre no dia 3 de novembro de 1957 na penitenciária de Lewisburg (EUA), vítima de ataque cardíaco.
Nos anos 70, o mundo está à procura de novos parâmetros sociais, políticos, econômicos, científicos e artísticos. É neste contexto de efervescência cultural que a obra reichiana é recuperada, sendo aplicada, um pouco às pressas e de forma fragmentada -e isto apenas hoje podemos reconhecer e aprender-, por jovens entusiastas que desejam revolucionar o mundo. Mas nem o sistema capitalista estava tão decadente assim nem o movimento socialista estava tão maduro quanto se desejava. Os anos 80 marcaram o recolhimento dos reichianos e de outros revolucionários para reflexões teóricas, autocríticas e pesquisas.
Os anos 90 estão mostrando os frutos deste recolhimento. As escolas neo e pós-reichianas começam a apresentar suas primeiras teses acadêmicas, trabalhos clínicos individuais e grupais mais estruturados e com fundamentação teórica consistente, trabalhos institucionais voltados para a profilaxia e prevenção nas creches, escolas, indústrias etc.
Este é o momento de, não apenas os reichianos, mas todos aqueles que se ocupam da vida e seus significados, voltarem a ler a obra legada por Reich com outros olhos, isentos de preconceitos. Poderíamos então verificar o pioneirismo e a atualidade do paradigma reichiano em questões como gravidez e parto natural, educação sexual infantil como prevenção das neuroses, o amor sem culpa, direitos da mulher, democracia do trabalho, participação na vida política e social, medicina natural, física e astronomia, além da psicologia clínica.
Caso aceite um conselho, aqui vai ele: talvez seja mais inteligente ler a obra reichiana e tirar as próprias conclusões do que confiar no julgamento que dela fizeram nazistas e macartistas.


Claudio Mello Wagner é psicólogo, mestre e doutorando em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor do livro ``Freud-Reich: Continuidade ou Ruptura?'' e coordenador do Encontro Comemorativo do Centenário de W. Reich em São Paulo.

De 25 a 28 de agosto deste ano será realizado em São Paulo o Encontro Comemorativo do Centenário de Wilhelm Reich, promovido pelo Núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Informações pelo telefax: 011/941-9221.

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