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Imaginação sem poder
"Trilogia do Controle" investiga os mecanismos culturais que aboliram o ficcional em favor da verdade
LEOPOLDO WAIZBORT
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
or mais que o sentido
da mimese se furte,
em seus primórdios,
a uma definição unívoca, é certo que
Aristóteles e Platão buscaram
sistematizar um problema antigo. Já então o juízo sobre a
mimese sofrera uma série de
deslocamentos, mudanças de
ênfase e mesmo incompreensões, voluntárias ou não.
A "Trilogia do Controle", de
Luiz Costa Lima, propõe-se a
investigar um desses deslocamentos, marcado por mecanismos profundos de dominação
da e na cultura do Ocidente.
Como talvez nenhuma outra,
a "Trilogia" revela uma inflexão decisiva na obra do autor,
que demarca um complexo de
investigações que perdura até
seus livros mais recentes ("Mímesis" e "História, Ficção, Literatura").
A trilogia, publicada seguidamente na segunda metade dos
anos 1980, compõe-se de "O
Controle do Imaginário", "Sociedade e Discurso Ficcional" e
"O Fingidor e o Censor". Os
três livros aparecem agora reunidos em um único volume, cujas mais de 800 páginas exigem
do leitor muita dedicação, assim como exigiram, a seu tempo, do autor.
Maratona
É obra de fôlego, e, refletindo
sobre isso, ocorre-me que se
trata não do fôlego de mergulhador, que permanece submerso à procura da pérola de
sua vida, mas de fôlego de maratonista, que percorre incansavelmente todo o caminho
que o seu desafio exige e que,
mesmo ao final, sabe que tem
pela frente uma nova corrida.
O problema de Costa Lima é
a questão da mimese. Intriga-o
como a passagem da mimese à
semelhança implicou um veto
ao ficcional, em favor de um
certo regime de verdade (sempre reposto em variegadas figurações históricas).
Diante disso, opera dois movimentos complementares: por
um lado, busca acompanhar a
história desse veto, entendido
como um controle do imaginário (e, portanto, como um mecanismo de poder e de reprodução de poder).
Por outro lado, busca deitar
raízes para a compreensão e
fundamentação da mimese como produção da diferença (de
onde a idéia de que a pluralidade discursiva -na qual o imaginário não estaria condenado-
é a contraface necessária de
uma sociedade mais livre).
Não me é possível elencar os
tópicos principais da "Trilogia", nem mesmo o fio de seu
argumento, que vai se desdobrando em meandros vários,
esperados e inesperados, compactos e extensos, literários e
extraliterários, armando uma
teia bastante complexa e, como
reconhece o próprio autor, necessariamente incompleta.
Não obstante, a redução da
mimese à "imitatio" (esta, contínua à semelhança e ao verossímil) significou a criação de
um mecanismo de controle da
subjetividade, sobretudo desde
o momento no qual esta se desvencilha de uma totalidade cósmica e absoluta (no curso da argumentação, desde a Baixa Idade Média).
Posteriormente, a emergência da subjetividade expressiva
resultará na falência da "imitatio", sem que a mimese seja reconduzida à "poiesis" -antes o
contrário.
Surpreendente
Nessa direção, poder-se-ia
afirmar que a trilogia tanto historia a disjunção de mimese e
"poiesis", quanto reivindica a
mimese como "poiesis", uma
concepção na qual a dimensão
de similitude permanece presente, mas se abre para o domínio do diferente, divergente e
imaginário.
Em tal perspectiva, a análise
do discurso histórico e crítico
se torna móvel privilegiado, no
qual seria possível expor os desencontros de razão e imaginação, história e ficção, documento e discurso, realidade e verdade, e que Costa Lima investiga
em várias constelações históricas, na Europa, na América Latina e no Brasil.
Há na "Trilogia..." muitas
coisas surpreendentes. A que
mais me assombra, em meio ao
esforço de construção teórica, é
o ajuste de contas com a cultura
latino-americana (colonial e
pós-colonial), tributo que o autor brasileiro não se furta de
prestar e quitar.
Nesse quadro, a discussão de
Jorge Luis Borges é das mais
sugestivas e inusitada para este
leitor comum. Se por um lado
Borges é controlado, por outro
aparece também como controlador. Em poucas palavras: a
análise da recepção argentina
da época mostra Borges controlado, recusado como escritor argentino, não comprometido com valores humanos.
O outro lado, o Borges controlador, exige um percurso
complexo. Borges toma para si
elementos da gnose, que converte em procedimento de fabulação. A gnose é o fundamento do mito em Borges, que por
sua vez é o centro a partir do
qual irradia, e para o qual converge, a sua narrativa.
Sua obra seria "uma narrativa conformada ao padrão do
mito, mas que não se queria mito". Seu caminho foi a estetização (seja da metafísica, seja do
religioso), instituindo um privilégio do texto que acaba por
bloquear a mencionada pluralidade discursiva.
Assim, muito paradoxalmente, o autor das "Ficciones" opera um veto do ficcional e, o que
é assombroso, no fundo tolhe a
imaginação.
LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na Universidade de São Paulo e autor de "As
Aventuras de Georg Simmel" (editora 34).
TRILOGIA DO CONTROLE
Autor: Luiz Costa Lima
Editora: Topbooks (tel. 0/xx/21/
2233-8718)
Quanto: R$ 79,90 (846 págs.)
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