São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


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+ utopia brasileira

A vida e o erro

por Jurandir Freire Costa

A quantas anda a utopia no Brasil? A pesquisa desta Folha mostra alguns resultados interessantes. A maioria dos brasileiros considera o país um lugar ótimo ou bom para viver e está otimista quanto ao futuro. Pensa também que o maior problema do futuro é o emprego, o cuidado com a família, o trabalho e os estudos. Finalmente, coloca no topo da lista de seus heróis Ayrton Senna, Getúlio Vargas, Pelé e Tiradentes e acha que a "cara do futuro do país" está representada por Lula, Fernando Henrique Cardoso, Sandy e Júnior, Xuxa, Ciro Gomes, Sílvio Santos, Ratinho, Sasha (filha da apresentadora Xuxa), Rubens Barrichello, Pelé, Ronaldinho, Ronaldinho Gaúcho e o padre Marcelo Rossi. Evitemos analisar os resultados por padrões abstratos de coerência. Estar otimista "quanto ao futuro do país" e duvidar do "futuro do emprego no país", por exemplo, não é, de modo obrigatório, uma opinião inconsistente. Da mesma forma, misturar, no pedestal do heroísmo, astros do esporte e da televisão com políticos das mais disparatadas ideologias e ícones de nossa história oficial, como Tiradentes, não significa ser confuso quanto ao que se valoriza. Nossos julgamentos são provisórios e sempre baseados em critérios diferentes para avaliar coisas diferentes.

Mérito pessoal
É entendível, por exemplo, que as pessoas avaliem os políticos pelo mérito pessoal e não pela filiação partidária, dada a ciranda da troca de partidos e a frequente negociação de crenças ideológicas por vantagens eleitoreiras. É entendível, também, que os mais velhos, ao pensar em heróis, se refiram a "heróis políticos", e os mais jovens, a "heróis da mídia", pois, o que era importante para os primeiros não é mais para os últimos. A política foi culturalmente desinvestida e, desde muito cedo, os brasileiros aprendem a admirar e a querer imitar os ídolos dos meios de comunicação de massa, em especial os da televisão. Assim, o que chama a atenção nos resultados da sondagem são, sobretudo, as características das expectativas, que nada têm a ver com "utopia". Chegamos ao que Hannah Arendt previu há 50 anos, aproximadamente, em "A Condição Humana". Construímos uma sociedade de "trabalhadores sem trabalho" e, no caso brasileiro, de "consumidores sem consumo". Nesta sociedade, reprodução da vida e sentido da vida se tornaram uma só coisa. Vive-se para sobreviver e, como o trabalho garante a subsistência, em sua falta é o próprio sentido da vida que se perde. É a vitória momentânea, espero!, da "perspectiva da rã". Olhamos o mundo a partir do rés-do-chão, mergulhados na moralidade do "que é" e indiferentes ao "que poderia ser". Fica, portanto, a pergunta: o que nivelou por baixo nossas grandes esperanças e intenções? Pode-se pensar que tudo isso veio à reboque do pragmatismo e do utilitarismo cevados na lógica do capitalismo globalizado. As coisas não são tão simples. O pragmatismo -leia-se William James, J. Dewey ou Richard Rorty- jamais renunciou à utopia de um mundo recriado pela inventividade humana que, do ângulo pragmático, é sempre aberta a redescrições de suas origens e finalidades. O utilitarismo, por sua vez, embora responsável, em grande parte, pela invenção de uma "natureza humana" pequeno-burguesa, calculadora e obcecada pelo "que é útil ou tem interesse", via nessa natureza um meio para atingir ideais de justiça e liberdade que iam muito além daquilo que é "necessário" à sobrevida biológica. Honremos a memória de quem merece ser lembrado; Stuart Mill não é o mesmo que Bentham. Levantemos, então, outra hipótese. Sugiro que o capitalismo globalizado difundiu e cristalizou uma nova onda de niilismo, uma nova forma de querer o "nada", que é diferente de "nada querer". Queremos, de modo ativo e não passivo, "o que é" ou "o que foi" porque não suportamos mais os conflitos e os esforços requisitados para nossa auto-renovação. A relativização e a isostenia dos valores, a hipertrofia de informações ou de oferta de objetos de consumo fizeram da vontade instrumento de conservação do status quo. É como se disséssemos, em foro íntimo, chega de escolher e decidir! Chega de procurar saber o que é bom ou mau, justo ou injusto, correto ou incorreto, decente ou indecente etc. A moral moderna tornou-se, assim, uma moral de toupeiras, indigente e avarenta na economia do pior. No "ethos" niilista, devemos nos satisfazer com "o que dá para o gasto". Se for imperativo dar algum tempero à vida, alguns passos até o armazém do "senhor todo mundo" resolvem o problema. Lá estão, na prateleira, "a família" e "os estudos" com o poder que têm as fórmulas ocas de dispensarem justificação. Quem, salvo alguns lunáticos ou "ressentidos", ousaria discordar do valor moral de tais instituições ou da nobreza dos que pensam em mantê-las ou revitalizá-las? Viver no "consenso gelado", como disse Illich, é um apelo mais forte que qualquer evidência. A filosofia a golpes de martelo parece ter razão: "A vida não é argumento contra o erro". A realidade só desmente o que estamos dispostos a negar -e não o que nos exime da tarefa de pensar. Pode-se afirmar, no entanto, que, onde se vê niilismo, pode-se ver, igualmente, recusa sensata das mazelas históricas causadas pelas utopias? Afinal, utopia não é sinônimo de Bem. A Inquisição católica, o Terror da Revolução Francesa, os totalitarismos nazista e comunista etc., todos foram filhos de utopias? Por que, então, a idealização do pensamento utópico?

Mundos sem opressões
É verdade, as utopias incentivaram, muitas vezes, a crueldade e a destruição. Mas também a vida e a criatividade, como mostram os ideais republicanos ou democráticos modernos. Não somos obrigados a canonizar utopias passadas, pois, nesse caso, deixaríamos de pensar de modo utópico. Utopia, na versão deflacionada e não-messiânica que defendo, é a habilidade que temos de imaginar modos de vida inéditos e melhores que os atuais. Se admitimos essa idéia, podemos, perfeitamente, tentar conceber mundos sem opressões religiosas, políticas ou econômicas e fazer desse projeto algo que podemos aperfeiçoar ou abandonar se surgirem outros mais satisfatórios.
Isso, sem dúvida, não é fácil. Mas tampouco é fácil hipotecar a vida ao sonho de "empregos" reféns do "nervosismo ou volatilidade das bolsas" ou apostar em famílias acuadas pela cultura narcísica do corpo, das sensações e do "direito a ser feliz" a qualquer custo, inclusive o da própria infelicidade ou da infelicidade alheia.
Quanto aos "estudos", estamos muito perto de achar "natural" e "normal" o que nos anos 60-70 soava como eco da arrogância nazi-fascista ou do cinismo dos poderosos: "Quando ouço falar em cultura, saco o talão de cheques". Hoje, é fato, amaciamos um pouco a frase, para não chocar os espíritos mais delicados: sacamos o talão de cheques, depois falamos de cultura ou de qualquer outro "produto", tanto faz.
Sem essa consciência e a disposição para agir de acordo com ela, nos condenamos, talvez, a confirmar o que disse um pensador impaciente: "Um povo é o rodeio que faz a natureza para chegar a seis ou sete grandes homens. Sim: para em seguida evitá-los". Seria bom negar essa profecia e multiplicar por sete vezes sete aqueles que, no momento, parecem ameaçados de extinção.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício -Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura".
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br


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