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+ utopia brasileira
A vida e o erro
por Jurandir Freire Costa
A quantas anda a utopia no Brasil? A pesquisa
desta Folha mostra alguns resultados interessantes.
A maioria dos brasileiros considera o país um
lugar ótimo ou bom para viver e está otimista quanto ao
futuro. Pensa também que o maior problema do futuro
é o emprego, o cuidado com a família, o trabalho e os estudos. Finalmente, coloca no topo da lista de seus heróis
Ayrton Senna, Getúlio Vargas, Pelé e Tiradentes e acha
que a "cara do futuro do país" está representada por Lula, Fernando Henrique Cardoso, Sandy e Júnior, Xuxa,
Ciro Gomes, Sílvio Santos, Ratinho, Sasha (filha da
apresentadora Xuxa), Rubens Barrichello, Pelé, Ronaldinho, Ronaldinho Gaúcho e o padre Marcelo Rossi.
Evitemos analisar os resultados por padrões abstratos
de coerência. Estar otimista "quanto ao futuro do país"
e duvidar do "futuro do emprego no país", por exemplo, não é, de modo obrigatório, uma opinião inconsistente. Da mesma forma, misturar, no pedestal do heroísmo, astros do esporte e da televisão com políticos
das mais disparatadas ideologias e ícones de nossa história oficial, como Tiradentes, não significa ser confuso
quanto ao que se valoriza. Nossos julgamentos são provisórios e sempre baseados em critérios diferentes para
avaliar coisas diferentes.
Mérito pessoal
É entendível, por exemplo, que as
pessoas avaliem os políticos pelo mérito pessoal e não
pela filiação partidária, dada a ciranda da troca de partidos e a frequente negociação de crenças ideológicas por
vantagens eleitoreiras.
É entendível, também, que os mais velhos, ao pensar
em heróis, se refiram a "heróis políticos", e os mais jovens, a "heróis da mídia", pois, o que era importante para os primeiros não é mais para os últimos. A política foi
culturalmente desinvestida e, desde muito cedo, os brasileiros aprendem a admirar e a querer imitar os ídolos
dos meios de comunicação de massa, em especial os da
televisão.
Assim, o que chama a atenção nos resultados da sondagem são, sobretudo, as características das expectativas, que nada têm a ver com "utopia". Chegamos ao que
Hannah Arendt previu há 50 anos, aproximadamente,
em "A Condição Humana". Construímos uma sociedade de "trabalhadores sem trabalho" e, no caso brasileiro, de "consumidores sem consumo". Nesta sociedade,
reprodução da vida e sentido da vida se tornaram uma
só coisa. Vive-se para sobreviver e, como o trabalho garante a subsistência, em sua falta é o próprio sentido da
vida que se perde.
É a vitória momentânea, espero!, da "perspectiva da
rã". Olhamos o mundo a partir do rés-do-chão, mergulhados na moralidade do "que é" e indiferentes ao "que
poderia ser". Fica, portanto, a pergunta: o que nivelou
por baixo nossas grandes esperanças e intenções?
Pode-se pensar que tudo isso veio à reboque do pragmatismo e do utilitarismo cevados na lógica do capitalismo globalizado. As coisas não são tão simples. O
pragmatismo -leia-se William James, J. Dewey ou Richard Rorty- jamais renunciou à utopia de um mundo recriado pela inventividade humana que, do ângulo
pragmático, é sempre aberta a redescrições de suas origens e finalidades.
O utilitarismo, por sua vez, embora responsável, em
grande parte, pela invenção de uma "natureza humana" pequeno-burguesa, calculadora e obcecada pelo
"que é útil ou tem interesse", via nessa natureza um
meio para atingir ideais de justiça e liberdade que iam
muito além daquilo que é "necessário" à sobrevida biológica. Honremos a memória de quem merece ser lembrado; Stuart Mill não é o mesmo que Bentham.
Levantemos, então, outra hipótese. Sugiro que o capitalismo globalizado difundiu e cristalizou uma nova onda de niilismo, uma nova forma de querer o "nada", que
é diferente de "nada querer". Queremos, de modo ativo
e não passivo, "o que é" ou "o que foi" porque não suportamos mais os conflitos e os esforços requisitados
para nossa auto-renovação. A relativização e a isostenia
dos valores, a hipertrofia de informações ou de oferta de
objetos de consumo fizeram da vontade instrumento
de conservação do status quo. É como se disséssemos,
em foro íntimo, chega de escolher e decidir! Chega de
procurar saber o que é bom ou mau, justo ou injusto,
correto ou incorreto, decente ou indecente etc.
A moral moderna tornou-se, assim, uma moral de
toupeiras, indigente e avarenta na economia do pior.
No "ethos" niilista, devemos nos satisfazer com "o que
dá para o gasto". Se for imperativo dar algum tempero à
vida, alguns passos até o armazém do "senhor todo
mundo" resolvem o problema.
Lá estão, na prateleira, "a família" e "os estudos" com
o poder que têm as fórmulas ocas de dispensarem justificação. Quem, salvo alguns lunáticos ou "ressentidos",
ousaria discordar do valor moral de tais instituições ou
da nobreza dos que pensam em mantê-las ou revitalizá-las? Viver no "consenso gelado", como disse Illich, é um
apelo mais forte que qualquer evidência. A filosofia a
golpes de martelo parece ter razão: "A vida não é argumento contra o erro". A realidade só desmente o que estamos dispostos a negar -e não o que nos exime da tarefa de pensar.
Pode-se afirmar, no entanto, que, onde se vê niilismo,
pode-se ver, igualmente, recusa sensata das mazelas
históricas causadas pelas utopias? Afinal, utopia não é
sinônimo de Bem. A Inquisição católica, o Terror da
Revolução Francesa, os totalitarismos nazista e comunista etc., todos foram filhos de utopias? Por que, então,
a idealização do pensamento utópico?
Mundos sem opressões
É verdade, as utopias incentivaram, muitas vezes, a crueldade e a destruição.
Mas também a vida e a criatividade, como mostram os
ideais republicanos ou democráticos modernos. Não
somos obrigados a canonizar utopias passadas, pois,
nesse caso, deixaríamos de pensar de modo utópico.
Utopia, na versão deflacionada e não-messiânica que
defendo, é a habilidade que temos de imaginar modos
de vida inéditos e melhores que os atuais. Se admitimos
essa idéia, podemos, perfeitamente, tentar conceber
mundos sem opressões religiosas, políticas ou econômicas e fazer desse projeto algo que podemos aperfeiçoar ou abandonar se surgirem outros mais satisfatórios.
Isso, sem dúvida, não é fácil. Mas tampouco é fácil hipotecar a vida ao sonho de "empregos" reféns do "nervosismo ou volatilidade das bolsas" ou apostar em famílias acuadas pela cultura narcísica do corpo, das sensações e do "direito a ser feliz" a qualquer custo, inclusive o da própria infelicidade ou da infelicidade alheia.
Quanto aos "estudos", estamos muito perto de achar
"natural" e "normal" o que nos anos 60-70 soava como
eco da arrogância nazi-fascista ou do cinismo dos poderosos: "Quando ouço falar em cultura, saco o talão de
cheques". Hoje, é fato, amaciamos um pouco a frase,
para não chocar os espíritos mais delicados: sacamos o
talão de cheques, depois falamos de cultura ou de qualquer outro "produto", tanto faz.
Sem essa consciência e a disposição para agir de acordo com ela, nos condenamos, talvez, a confirmar o que
disse um pensador impaciente: "Um povo é o rodeio
que faz a natureza para chegar a seis ou sete grandes homens. Sim: para em seguida evitá-los". Seria bom negar
essa profecia e multiplicar por sete vezes sete aqueles
que, no momento, parecem ameaçados de extinção.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício -Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura".
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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