São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Navegando contra a corrente da esquerda, grupo renunciou aos prêmios de viagens ao "paraíso socialista", mas construiu uma imagem da classe operária que nada tinha a ver com os operários de carne e osso

A utopia radical do trotskismo no Brasil

Boris Fausto

O antagonismo entre stalinistas e trotskistas, na União Soviética, aparentemente não teve impacto comparável às grandes cisões do movimento socialista mundial, como a que deu origem à Terceira Internacional, em 1919, ou à disputa sino-soviética. Mesmo que essa constatação seja verdadeira, nem por isso a ruptura personalizada, com traços dramáticos, por Stálin e Trotsky, que acabou redundando na morte deste, a mando de Stálin, deixou de ter muita significação. Entre outros aspectos, a ruptura desperta uma pergunta de improvável resposta, porque situada no terreno da história contrafatual: se Stálin não tivesse assumido o controle absoluto da União Soviética, a história do país e a do mundo teriam sido diferentes? Creio que sim, não tanto porque os adversários de Stálin, com Trotsky em primeiro lugar, não fossem defensores de uma utopia igualitária, profundamente antidemocrática em seus fundamentos, mas porque ter-se-ia evitado, ao menos, a implantação de um regime monstruoso como o stalinista. Deixando o terreno das hipóteses, é significativo observar que, ao contrário de outras tendências no interior do Partido Comunista da União Soviética (bukharinistas, zinovievistas etc.), o trotskismo se constituiu e permaneceu como corrente política até os dias de hoje, embora seja um movimento de reduzidas ou minúsculas dimensões, conforme o país. Essa continuidade tem a ver com o fato de que, ao contrário de outros líderes bolcheviques, Trotsky se lançou, desde a primeira hora, na luta sem ilusões contra o poder totalitário de Stálin, defendendo um retorno fundamentalista a Lênin, sem incidir na capitulação dos velhos bolcheviques, que aliás acabaram sendo fuzilados.

Estado degenerado
Trotsky foi um dos primeiros a construir uma explicação básica para os rumos que tomava a União Soviética, ao tratar de entender o fenômeno burocrático e ao definir o país, embora equivocadamente, como "Estado operário degenerado". Além disso, se hoje sua teoria da revolução permanente pertence ao arsenal das utopias do passado, na época continha elementos de atração. É o caso, particularmente, da tese supostamente aplicável ao mundo subdesenvolvido de que a ditadura do proletariado, nas condições do mundo contemporâneo, teria de realizar, ao mesmo tempo, as tarefas da revolução socialista e da burguesa, pois a burguesia se tornara uma força retrógrada. Tudo isso sem falar no contraste entre as personalidades de Stálin, georgiano educado num seminário de Tiflis, e a de Trotsky, aberto ao estilo e às idéias revolucionárias do mundo ocidental.


"A pretexto de sermos "um partido de quadros", faz-se uma política que só visa a recrutamento e discussão com a vanguarda, num preciosismo e aristocratismo que se enoja do operário real, operário que toma cachaça, vai a futebol e talvez tenha vida conjugal irregular"


No Brasil, os primeiros grupos trotskistas tiveram como objetivo levar o PCB ao retorno ao "verdadeiro caminho revolucionário", na linha da Oposição de Esquerda, que buscava mudar os rumos da Terceira Internacional, transformada em agência de Moscou. Um bom exemplo é a Liga Comunista Internacionalista (LCI), fundada em janeiro de 1931, reunindo figuras como Aristides Lobo, Livio Xavier, Mario Pedrosa, João da Costa Pimenta. Constituída por não mais que dezenas de pessoas, a LCI nascia, entretanto, em uma época na qual o PCB reunia apenas algumas centenas de quadros, antes da entronização de Prestes no partido e do ingresso de outros quadros militares, provenientes do tenentismo. Ao longo dos anos, trotskistas e comunistas se odiaram, com um ódio que lembra as brigas de família. Exemplos, a dissidência liderada por Herminio Sachetta, em 1937, opondo ressalvas ao apoio à candidatura de José Américo de Almeida às eleições presidenciais de 1938, ou a cisão de José Maria Crispim e seu grupo, em 1952. Expulsos do PCB, esses grupos optaram pelo trotskismo, temporária ou definitivamente. A história do trotskismo no Brasil tem sido pouco estudada. Algumas exceções são a coleção de documentos da LCI, publicada por Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs, com o sugestivo título de "Na Contracorrente da História" (ed. Brasiliense, 1987) e o recente livro de Murilo Leal, também com um título feliz, "À Esquerda da Esquerda" (ed. Paz e Terra, 2004). O livro de Leal abrange o período de existência do Partido Operário Revolucionário (POR), entre 1952 e 1966. O POR não abrigava mais do que poucas dezenas de militantes, a tal ponto que o estridente PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) de nossos dias, comparativamente, pode ser considerado "um partido de massa". Mas tinha alguma importância qualitativa e se tornou fonte de embaraço, quando não de reflexão, para muitos militantes desencantados com o PCB, após as denúncias incompletas de Kruschev sobre os horrores do stalinismo. Leal faz uma reconstrução cuidadosa daqueles anos, reproduz documentos desconhecidos e, ao mesmo tempo, perde a meu ver uma oportunidade: a de fazer a sociologia de um grupo que optou por navegar contra a corrente, renunciando aos prêmios de viagens ao "paraíso socialista", e, mais do que isso, sofreu a carga brutal de calúnias dos que se supunham portadores da história.

Partido de vanguarda
Não é o caso de destacar aqui os textos reproduzidos no livro, que não deixam de ter interesse. Quero apenas lembrar como os trotskistas construíram uma imagem da classe operária e de seu "partido de vanguarda" que nada tinha a ver com os operários de carne e osso. Curiosamente, um lampejo dessa percepção aparece num veemente documento de 1966, reproduzido em parte por Leal.
Diz o texto: "A pretexto de sermos "um partido de quadros", faz-se uma política que só visa a recrutamento e discussão com a vanguarda (também idealizada segundo modelos moralistas), num preciosismo e aristocratismo que se enoja do operário real, operário que toma cachaça, vai a futebol e talvez tenha vida conjugal irregular".
Como não acompanho o trotskismo dos dias de hoje, não sei se essa crítica se aplica aos dois partidos existentes -o PSTU e o PCO (Partido da Causa Operária). Sei apenas que eles se digladiam ferozmente, como tem acontecido com todos os grupos e subgrupos trotskistas, ao longo do tempo. Será que a condição de marginalidade política conduziria, necessariamente, ao fundamentalismo de textos e de visão do mundo?

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral).


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