São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004 |
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+ livros Publicação das quatro peças de Gonçalves Dias e de sua tradução de "A Noiva de Messina", de Schiller, recupera a aguda compreensão que o poeta tinha do teatro Misérias rasteiras e arrebatadas
Sérgio de Carvalho
Para que se entenda o trabalho teatral do poeta Gonçalves Dias (e
sua possível validade atual) é preciso refletir sobre sua admiração
por Friedrich Schiller, um modelo artístico recuado quase 50 anos do romantismo brasileiro. O classicismo alemão servia de bússola espiritual para uma resistência contra o apequenamento imposto
por um ambiente hostil. Nele, Gonçalves
Dias (1823-64) encontrou um debate
poético central da nossa era, aquilo que
Lukács descreveu como a necessidade de
superar pela forma o caráter problemático e não-artístico da sociedade burguesa.
Essa ligação pode ser reavaliada agora
com a coincidência de terem sido relançadas no mercado as quatro peças do
poeta -"Patkull", "Beatriz Cenci",
"Leonor de Mendonça" e "Boabdil"- e
a tradução em versos de "A Noiva de
Messina", de Schiller.
Duas das peças de Gonçalves Dias demonstram a influência schilleriana de
modo mais direto. São aquelas que não
foram escritas com o desejo imediato do
palco, mas imaginadas como "obra para
o futuro", nas palavras do poeta. Talvez
por isso suas piores realizações. A primeira, "Patkull" (1843), escrita aos 20
anos, quando estudante em Coimbra, e a
última, "Boabdil" (1850), mantêm a estrutura tradicional de um triângulo amoroso de resultados trágicos em que os
protagonistas são nobres do passado.
Seu conflito traz como pano de fundo
um acontecimento histórico. A história
coletiva está como que justaposta aos
dramas íntimos. A rigor, a queda da cidade mourisca de Granada surge em cena para comprimir a tensão passional
desse Boabdil que manda assassinar seus
melhores guerreiros em nome do ciúme
ou desse Patkull que se enobrece ao viajar para libertar o povo da Livônia sob o
jugo de Carlos 12, mas que sofre de verdade com a traição da amada com o melhor amigo.
O dualismo entre o drama íntimo e o
drama político, justapostos por analogia,
foi historicamente a última tentativa do
teatro formado no Antigo Regime de resistir ao processo geral de aburguesamento dramático que se operava na representação mundial. Goethe, numa carta a Schiller, lamenta em 1797 que "também no curso da poesia tudo é impelido
para o drama, para a representação do
completamente atual". Era a honesta recusa do classicismo alemão a uma imitação superficial da realidade, a ceder ao
império do reconhecível, às aparências
do cotidiano registrado sem recuo, ao
particularismo individual. Para se opor a
essa "tendência ridícula e bárbara", Schiller, por exemplo, se encaminha para
uma purificação dos gêneros, passa a
cultuar a forma da tragédia, encarregando seu aspecto estético (mais do que as
próprias personagens) de representar a
liberdade da existência moral.
Essa tendência aristocrática a um
"idealismo aquiescente", nos termos de
Anatol Rosenfeld, essa reação que Engels
definiu como "a fuga da miséria rasteira
para a miséria arrebatada", não é típica
apenas de uma geração que se viu espremida entre dois mundos, em condições
de observar o aburguesamento em curso. A duplicação da consciência entre os
ideais elevados do cidadão e as exigências coisificantes da base capitalista era
uma questão que dizia também respeito
ao Brasil, ainda que a precariedade da
nossa formação burguesa fosse maior.
Diante da sociabilidade gerada pela ordem escravocrata, nosso imaginário teatral do século 19 (com a exceção das comédias) tendeu a um idealismo puramente retórico. E é isso o que prejudica
"Patkull" e "Boabdil": o idealismo não
chega a mover a ação.
Se na Europa a dimensão pública e popular já não podia ser concretizada numa ação individual sem enorme dose de
idealização da conduta positiva das personagens, entre nós a tentativa de conectar a atividade moral dos heróis com a
história coletiva soava como uma piada
que não podia ser tolerada sem altas doses de sentimentalismo lírico.
O teatro brasileiro, no seu nascedouro
romântico, repercutia as contradições
dessa sociedade em condições muito
mais agressivas. Nas duas peças produzidas por Gonçalves Dias com a intenção
explícita de se ver encenado, "Beatriz
Cenci" (1843), que já trouxe esboçada de
Coimbra para o Brasil, e "Leonor de
Mendonça" (1846), seu trabalho mais
"de acordo" com as normas cultas da
época, ele esbarrou nas expectativas tacanhas da corte e no mandonismo liberal
de um sistema produtivo já mercantilizado. Nenhuma foi encenada durante
sua vida no Rio de Janeiro devido à interdição pública do Conservatório Dramático (que recusou o tema do incesto e
parricídio de "Beatriz Cenci") ou devido
à negativa do ator João Caetano, que não
reconheceu nas falas psicológicas do duque de "Leonor de Mendonça" um protagonista a seu gosto melodramático.
Sérgio de Carvalho é diretor integrante da Companhia do Latão. Teatro de Gonçalves Dias 618 págs., R$ 64,50 Luis Antonio Giron (org.). Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677). A Noiva de Messina 224 págs., R$ 26,00 de Friedrich Schiller. Trad. de Gonçalves Dias. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/ xx/ 11/3218-1444). Texto Anterior: + cinema: O hino ao amor e a zona obscura Próximo Texto: Um eficiente trabalho de copidesque Índice |
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