São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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SOCIEDADE DE RISCO
O pensador da Terceira Via rejeita a idéia de Beck e diz que não há escapatória à imprevisibilidade política e econômica do mundo atual
Giddens rejeita a brasilização

ROGÉRIO PACHECO JORDÃO
especial para Folha, em Londres

O Ocidente estaria se brasilizando? Para o sociólogo Anthony Giddens, 61, diretor da London School of Economics and Political Science e um dos teóricos da chamada Terceira Via, a resposta é não. Para ele, a expressão "brasilização", usada para designar sociedades que geram desigualdades, tem um sentido pejorativo -e não serve como modelo. "Não acredito que o que está acontecendo nos países ocidentais seja uma mudança de rota na direção de uma situação como a brasileira", diz Giddens, em entrevista à Folha.
Esse talvez seja um dos poucos pontos de discordância entre ele e seu colega alemão Ulrich Beck, sociólogo com quem publicou, em 1994, o livro "Modernização Reflexiva". Ambos dividem conceitos importantes, como o da Sociedade de Risco, e idéias como sociedade civil mundial e democracia transnacional. Idéias essas que, para Giddens, constituem algumas chaves de entrada para uma nova forma de fazer política dentro de um mundo, como ele gosta de dizer, de transformações. Ou globalizado.
Autor de mais de 30 livros, as atenções de Giddens no momento estão voltadas para o entendimento do fenômeno da globalização. "As mudanças afetam todos os aspectos de nossas vidas. E não importa se você mora em uma favela do Rio ou no bairro de Mayfair, em Londres", diz.
É dentro desse contexto amplo que ele fala da idéia do risco. "Essa noção aparentemente simples desvenda algumas das características mais básicas do mundo em que vivemos atualmente", disse recentemente em uma palestra em Hong Kong. Ele explica que a palavra "risco" pode ser originária do português ou do espanhol no século 16 ou 17, ligada à aventura das navegações. Giddens trabalha com a idéia de "riscos produzidos" ("manufactured risks"). O que distingue o risco existente na sociedade globalizada dos riscos existentes no passado é que, agora, não temos antecedentes históricos que nos digam o que fazer diante deles. São os riscos que advêm, por exemplo, de transformações genéticas ou climáticas, mas também de mudanças na estrutura da família, do casamento.
Globalização, risco, tradição, família e democracia parecem estar no foco do pensamento de Giddens atualmente. A discussão desses conceitos foi tema de uma série de palestras feitas por Giddens entre março e abril deste ano em Londres, Nova Delhi, Hong Kong e Washington.
Como traduzir tudo isso para a política ou como traduzir isso para os governos - inclusive para o de seu amigo Tony Blair, do qual ele não se importa de ser chamado de "guru"- é a tarefa da Terceira Via, segundo ele. "Acho que as pessoas ainda não entenderam que o significado da Terceira Via vai além de ser um caminho alternativo entre a tradicional social democracia e o neoliberalismo. Trata-se na verdade de dar uma resposta a todas essas mudanças", diz.

especial para a Folha, em Londres

Leia a seguir a entrevista do sociólogo Anthony Giddens, feita em seu escritório na London School of Economics, em Londres.


Folha - O sociólogo alemão Ulrich Beck, em seu último livro, usa a expressão "brasilização do Ocidente" como uma imagem da transição para o que ele chama de Segunda Modernidade. Ele enfatiza aspectos da sociedade brasileira, como a informalidade do mundo do trabalho, nessa comparação. O sr. acha que essa é uma imagem pertinente?
Anthony Giddens -
Acho que não. Em geral eu concordo com o que Ulrich diz, mas não nesse caso. Essa idéia de "brasilização" relacionada ao Ocidente vem sendo usada há 25 anos. Eu não acho que seja de muita utilidade. Não acredito que o que está acontecendo nos países ocidentais seja uma mudança de rota na direção de uma situação como a brasileira. Não vejo utilidade nessa idéia. Se isso significa que as desigualdades estão aumentando, por exemplo, eu não acho que seja verdade. O Brasil tem um problema estrutural de desigualdade que nenhum país europeu vai atingir.
Folha - Em que sentido a expressão "brasilização" vem sendo usada?
Giddens -
Para se referir a sociedades que estão gerando muita desigualdade social e marginalização dos mais pobres, além de uma certa inabilidade para controlar a situação. Em geral é usada em sentido pejorativo. Acho que há muitas coisas interessantes sobre o Brasil. A maioria dos sociólogos europeus e americanos que usa esta expressão o faz em sentido pejorativo, com uma noção de que, de alguma maneira, o Ocidente estaria regredindo para um tipo de sociedade com a qual eles gostariam de evitar se assemelhar. Essa é outra razão para eu não usar essa expressão.
Folha - Beck a usa também como uma imagem relacionada à convivência com a diversidade cultural que existe no Brasil -e que pode servir como exemplo a países europeus como a Alemanha, por exemplo.
Giddens -
A Alemanha com certeza precisa mudar seu conceito de cidadania, porque a Alemanha é basicamente uma sociedade de imigrantes que se recusa a aceitar-se como tal. Uma sociedade multicultural que se enxerga como uma sociedade de cultura única. No Brasil, por outro lado, manter a sociedade integrada dentro deste multiculturalismo que marca o país é um grande feito.
Folha - Mas há também uma idéia de que países menos desenvolvidos podem servir de exemplo para nações mais ricas. O sr. acha isso possível?
Giddens -
Em princípio pode ser possível. Em um mundo globalizado, muitos dos problemas que afetam os países mais e menos desenvolvidos são os mesmos. Todos precisamos de um mercado global mais estável. Todos precisamos de instituições que nos dêem proteção. A questão de pobres e ricos não é uma questão que você simplesmente pode esquecer, mesmo se você vive em um país próspero. Na maioria dos países ricos há pessoas sem-teto, morando nas ruas. Qualquer coisa que aconteça no Brasil no que diz respeito a esse problema pode ser relevante para outros países. No meu livro eu uso o exemplo de desenvolvimento comunitário no Brasil (refere-se a experiências no Ceará analisadas por Judith Tendler no livro "Bom Governo nos Trópicos", Editora Revan). Outros países enfrentam esses problemas. Eu sou favorável à colaboração. Quando você vive em um mundo globalizado, a troca entre o que se produz no meio acadêmico e comunidades políticas, por exemplo, faz parte da solução de problemas.
Folha - Mas como países que não são do chamado Primeiro Mundo entrariam nesta troca?
Giddens -
O Brasil não está fora desse tipo de discurso porque não interessa quão rico ou pobre você seja: existe algum tipo de acesso à sociedade de informação. Grupos de intelectuais lêem a mesma literatura. Gostaria de enfatizar que todos nós estamos engajados em um diálogo. Eu acho que isso é uma grande mudança com relação a dez ou 15 anos atrás.
Folha - O sr. disse recentemente numa palestra que a imprevisibilidade do mundo globalizado é estrutural. A crise asiática era imprevisível, assim como ninguém sabe ao certo as consequências da manipulação genética de alimentos, por exemplo. Por que o caráter estrutural?
Giddens -
Não seria correto dizer que o mundo hoje é menos previsível do que era antes. A diferença agora é que enfrentamos situações de risco que outras gerações não tiveram que enfrentar. Esses novos riscos foram construídos ou pelo impacto da ciência e tecnologia nas nossas vidas, incluindo nossos corpos, ou por profundas mudanças na estrutura da sociedade. O impacto da globalização cria cenários de risco onde não temos experiências anteriores que nos orientem sobre o que fazer diante deles. Isso vai desde a vida pessoal, como as estruturas do casamento e da família -que estão mudando- , até a economia global e outras incertezas associadas à invasão da ciência e da tecnologia em praticamente todos os aspectos do que fazemos. É isso que quero dizer quando afirmo que a imprevisibilidade é estrutural. No sentido de que ela integra, para o bem ou para o mal, o mundo em que vivemos hoje. Não há escapatória. É estrutural também no sentido de que uma reversão ao passado não é concebível.
Folha - Como devemos lidar com um mundo em que a imprevisibilidade é estrutural?
Giddens -
Para conviver com isso temos que encontrar um novo tipo de equilíbrio entre o risco e a segurança. Se você pensar em respostas políticas para esse problema, você precisa pensar em governos ativos, tentando dar segurança para as pessoas. Isso só vai acontecer se houver uma compreensão sofisticada das novas situações de incerteza. Se essa compreensão não existir, você vai tentar se adaptar a elas usando maneiras antigas, mas não vai funcionar.
Folha - Como assim?
Giddens -
Um bom exemplo disso na Inglaterra foi o que aconteceu durante o aparecimento da "síndrome da vaca louca". Em situações como essa, o governo sempre quer dizer o que é seguro e o que não é. O governo da época (Thatcher) cometeu o erro de dizer que comer carne era seguro. O governo atual cometeu o erro de dizer que comer comida geneticamente modificada é seguro. Ninguém sabe se é seguro ou não. Se se quer administrar essas situações, é preciso entender o significado dessas situações de risco e do papel da ciência e da tecnologia.
Folha - O sr. está dizendo que é preciso haver controle governamental?
Giddens -
Tem que ter. É preciso uma resposta a essas situações. Não podem ser respostas individuais. São necessárias não apenas respostas nacionais, mas globais.
Folha - O sr. relacionaria essa idéia do risco ao "triunfo final" do capitalismo, no sentido de que o risco faz parte da lógica desse sistema?
Giddens -
Se eu usar a expressão "triunfo final", estarei cometendo um erro. Tudo o que posso dizer é que no momento ninguém consegue enxergar uma alternativa à sociedade de mercado global. Nesse sentido, risco e capitalismo se relacionam, porque as inovações científicas e tecnológicas são muitas vezes impulsionadas ou por interesses de grandes companhias, ou por interesses de mercado.
Folha - Em seu último livro, o sr. lembra que os 20 países mais ricos do planeta vêm experimentando um avanço constante de prosperidade desde 1980. Por outro lado, 30% da população mundial vive na linha de pobreza. O sr. acha que o risco e a imprevisibilidade afetam da mesma maneira o cidadão em São Paulo e em Londres?
Giddens -
Em muitos sentidos, todos enfrentam os novos riscos. É preciso entender que é uma situação totalmente nova e não importa se você mora em uma favela no Rio ou no bairro de Mayfair, em Londres. Mas, quando falamos dos setores empobrecidos do planeta, temos muitas vezes uma situação de duplo risco. Há os novos riscos associados ao mundo globalizado e também os riscos que chamo de antigos -aqueles associados à falta de saneamento, à falta de educação adequada, à falta de atendimento de saúde. O Estado de Bem-Estar Social tende a proteger o cidadão desse segundo tipo de risco.
Folha - A Terceira Via quer superar o Estado de Bem-Estar Social. Mas como isso se daria em países como o Brasil, onde o Estado de Bem-Estar Social nunca funcionou de fato?
Giddens -
Há muitos países que não têm um Estado de Bem-Estar Social. Talvez a questão seja construir instituições de bem-estar social. É difícil fazer isso em um país que ainda tem grandes disparidades sociais. O Brasil tem, dependendo da metodologia que você usar, o maior índice de desigualdade do mundo. Por outro lado, as tradicionais estruturas de bem-estar social nos países ocidentais, apesar de terem alcançado muitas coisas, trazem consigo uma série de problemas. Essas estruturas produziram contradições que as levaram a se tornar obsoletas diante das novas incertezas e outras mudanças.
Países que não implementaram sistemas de bem-estar social em um certo sentido podem se aproveitar disso, porque eles não têm que confrontar interesses já cristalizados em países que têm estes sistemas. Portugal, onde eu estive recentemente, pode ser um bom exemplo disso. Os portugueses estão tentando construir um sistema de bem-estar social mais eficaz -e o fato de eles terem tido instituições de bem-estar mais frágeis, em um certo sentido, ajuda. A Alemanha, que tem um sistema de bem-estar social muito sólido, é um país onde as mudanças são muito difíceis. Quem recebe o benefício o trata como um direito natural.
Folha - Voltando à questão da imprevisibilidade e do risco, como o sr. analisa a atual ordem internacional? Teria sido possível imaginar, dois anos atrás, que aviões B-52 estariam bombardeando Belgrado? Quais são as regras dessa nova ordem?
Giddens -
A guerra no Kosovo, se é que podemos chamar o que está acontecendo exatamente de uma guerra, teria levado alguns anos atrás a uma guerra mundial ou a um conflito europeu de grandes proporções. O fato de que é muito improvável que isso ocorra agora é uma amostra da transformação da ordem internacional. A princípio, as nações hoje em dia podem trabalhar de maneira mais cooperativa do que no passado. Em um certo sentido, o Kosovo pode ser um teste para isso, apesar das coisas horríveis que estão acontecendo lá. Se os chineses e os russos concordarem em integrar forças internacionais, isso vai ser um passo importante para o fim definitivo da Guerra Fria.
A nova ordem internacional precisa ser entendida dentro de um contexto em que as relações entre os países estão mudando. A natureza da soberania nacional está mudando por conta do impacto das forças globalizantes. A própria estrutura da guerra tende a mudar. O conflito no Kosovo é um conflito entre Estados que estão desintegrando, muito mais do que uma guerra entre Estados-nações. Há novas possibilidades para se forjar novas instituições transnacionais, para enfrentar problemas globais. Eu sou muito favorável a isso. Isso incluiria reformar o papel das Nações Unidas, mas também a elaboração de instrumentos para se administrar com mais eficácia a economia mundial e a inauguração de formas transnacionais de democratização. Essas não são mais utopias em um mundo integrado, em que há técnicas avançadas de comunicação.
Folha - O sr. acredita que essa guerra também traduz interesses hegemônicos dos Estados Unidos? O que conta não é a tecnologia militar americana?
Giddens -
Conta e não conta. É possível ver as limitações disso no Kosovo. A força militar dos Estados Unidos não autoriza os EUA a governar a sociedade mundial. A aliança militar dos EUA era muito mais influente durante a Guerra Fria do que é hoje. Eu não sou antiamericano. Acho que se você vai fazer qualquer coisa em uma esfera global, você precisa ter os EUA envolvidos. Portanto é importante ter um governo de centro-esquerda nos EUA. Em parte, eles cometem erros porque o poder das grandes corporações é muito grande. As grandes corporações americanas têm seus interesses. No entanto, sem os americanos você não chega a lugar algum.
Folha - Por quê?
Giddens -
Você precisa de uma liderança liberal norte-americana que seja tanto quanto possível direcionada a uma agenda global, digamos, decente. O importante é tentar puxar os americanos para os objetivos a que eu estava me referindo antes (democracia transnacional, instrumentos de administração da economia mundial mais efetivos etc.). O mundo seria bem pior se os governos americanos fizessem aquilo que a direita nos Estados Unidos quer, que é o isolamento.
A direita americana quer abrir mão de qualquer papel de liderança global. De toda forma, é claro que uma liderança liberal norte-americana vem misturada a uma série de interesses materiais e de americanização da cultura mundial. É um quadro confuso. Acho que é importante para a esquerda não ser contra as grandes corporações como se elas fossem as vilãs. Governos já fizeram muito mais mal do que estas grandes corporações -e muitos governos fizeram coisas bem piores que qualquer governo norte-americano.


Rogério Pacheco Jordão é jornalista e mestrando em política comparada na London School of Economics and Political Science.



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