São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002
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O PENSADOR DO DESTERRO
por Gabriel Cohn
Haverá então mais de Simmel (para não falar da historiografia alemã e de Dilthey) do que de Weber no Sérgio Buarque de "Raízes do Brasil"? (Pois é só desta obra que se trata aqui, talvez a mais "sociológica" do autor.) Um indício de que esse pode ser o caso está no próprio modo sinuoso e indireto como as questões vão aparecendo e sendo perseguidas na exposição. Nada dos duros recortes weberianos, mas sim do faro desse incansável perseguidor de significados fugidios que foi Simmel (outro desterrado na sua própria terra). Ambos, o brasileiro e o alemão, são a seu modo pensadores do desterro, da inadequação, da distância entre o fluxo espontâneo dos impulsos vitais e a forma que ele assume na sua conformação pela força ordenadora da cultura. Só que, se em Simmel há cultura demais (com a profusão de formas culturais ameaçando tolher o fluxo da vida, formulação cujo matiz irracionalista Sérgio Buarque repelia), a há de menos em Sérgio Buarque. No primeiro, temos o solo profundo e muitas vezes amanhado (estranhas ressonâncias, as dessa palavra, que evoca o amanhã tão remoto para o aventureiro de que fala Sérgio Buarque). No segundo, o solo ralo, o "desleixo", a inconveniência do uso do arado, o cultivo que mistura labor e abandono (em passagem inconfundível, ele fala dos "frutos do nosso trabalho e da nossa preguiça"), a cultura, enfim, que não encontra onde nem como lançar raízes e tampouco pode ser resultado de mero transplante. Dificuldade para organizar-se por conta própria e inconveniência da imposição de formas prontas: eis o dilema de Sérgio Buarque, que só se poderia resolver por algum tipo de convergência da razão ordenadora e do impulso espontâneo, de uma articulação, portanto, do mundo privado com o mundo público, que só as modernas instituições democráticas poderiam fazer. Uma análise radical, no exato sentido do termo, pois, afinal, em vez de lamentar a fragilidade ou a carência de raízes, ele propõe a erradicação dos implantes malogrados e o preparo do solo para as novas instituições reclamadas por novas personagens históricas. Isso suscita de novo o papel dos personagens na análise. Na perspectiva de Sérgio Buarque não há como reservar-lhes lugar de segundo plano na exposição. Pois, antes do formato institucional e, antes dele, cultural (para não falar da embaraçosa e muito alemã referência à "psicologia desses povos", hispânicos no caso) dessa sociedade brasileira cuja constituição histórica está em questão, cabe saber que tipos humanos se apresentam para assumir o encargo de dar-lhe forma, cultivá-la, em suma, civilizá-la. Assim a referência às raízes vai adquirindo, em Sérgio Buarque, um forte tom crítico, à medida que se vai tornando manifesto que elas se referem a mundos que representam mais propriamente lugares do que relações capazes de conformar uma sociedade. Um mundo rural que não é agrícola, que é lugar de permanência ou passagem, mas não de cultivo; um mundo urbano que é lugar subalterno ao rural, mas não se presta ao exercício da vida civil; uma cultura que não é cultivo, mas implante; tudo isso remete aos desencontros e mal-entendidos ("a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido", escreve Sérgio Buarque em hipérbole famosa) que marcam o trajeto histórico da sociedade brasileira. Tomados isoladamente, os personagens exibidos na obra não têm como resolver os dilemas dessa sociedade. Nem o trabalhador ou o aventureiro; nem o ladrilhador hispânico ou o semeador luso; muito menos o tristemente célebre homem cordial brasileiro, espécie de má síntese daquilo que nossas raízes, apesar de tudo, acabaram engendrando, esse idiota civil, confinado no seu horizonte privado e privatista; nenhum deles pode fazê-lo. Talvez pudessem, se combinados de alguma forma? Pois, ao concentrar o olhar nos personagens típicos, Sérgio Buarque é levado a dirigir sua atenção para as formas possíveis de relações entre eles, sejam elas de oposição, de afinidade, de combinação. Nisso ele está mais próximo de Simmel do que de Weber. Para além dos traços fisionômicos dos personagens e dos impulsos peculiares que os levam a agir estão as formas em que se vão cristalizando as suas ações também peculiares. Essa perspectiva, nas mãos de um analista fino como ele, permite um rendimento elevado nas análises de configurações pontuais de personagens e de relações. Perde-se, por outro lado, aquilo que o enfoque weberiano propicia, que é trazer à tona as tensões intrínsecas à conjugação de orientações diferentes da ação. É um pouco por isso que a escrita de Sérgio Buarque não é crispada, nada tem de angulosa, mas ao contrário parece amoldar-se aos temas na medida em que os expõe. É por isso que a leitores menos atentos pode passar despercebido o impulso crítico da obra. Posto à distância do seu solo de origem, Sérgio Buarque percebe quanto ele é mal cultivado. Mas, ao converter essa percepção em refinada experiência intelectual, converte o arraigado e o desterrado, o cultivo original e o implante, o mundo pretérito e o mundo a ser construído em matéria de uma obra que retira sua dinâmica da capacidade de colocar o tema das raízes num campo de referências cruzadas que permitem tratá-lo num registro crítico e não apologético; radical, enfim. Pois as raízes de que ele fala aludem àquilo que afinal importa: aos princípios formadores da sociedade brasileira, cuja reconstrução histórica abre caminho para desentranhar-se do emaranhado das raízes e repensar a tarefa da formação. Gabriel Cohn é professor titular do departamento de ciência política da USP e autor de "Crítica e Resignação" (ed. T.A. Queiroz) e "Weber" (ed. Ática), entre outros. Texto Anterior: A história total Próximo Texto: A terra reecantada Índice |
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