São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GILBERTO & SÉRGIO

por Ronaldo Vainfas

Prefaciando uma das reedições de "Raízes do Brasil", Antonio Candido não teve dúvida em incluí-lo entre os três livros-chave para a compreensão da formação brasileira, ao lado de "Casa Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre, e de "Formação do Brasil Contemporâneo" (1942), de Caio Prado Jr. E foi além, ao dizer que exprimiam, cada um a seu modo, na época em que foram publicados, "um sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930".
Não resta dúvida de que esses livros se tornaram autênticos monumentos em nossa bibliografia, a começar pela inovação da abordagem histórica que ofereceram, rompendo completamente, por meio de uma análise histórico-sociológica, as "prisões de Varnhagen" -com sua história oficial dos grandes feitos e instituições portuguesas. É certo que Capistrano de Abreu já invertera, no início do século 20, muitos esquemas de Varnhagen, embora seu "Capítulos de História Colonial" (1907) seja em muitos pontos um livro convencional. O mesmo fizera Manuel Bonfim, antecipando-se a Gilberto Freyre no que toca à valorização da mestiçagem, ou também Paulo Prado, nos anos 1920, autor de um agudo ensaio, "Retrato do Brasil", livro de um pessimismo que não poupava nenhum dos atores da cena colonial, portugueses, negros, índios, vistos como partícipes de uma colonização luxuriosa e degradante.
Poderíamos multiplicar os exemplos de interpretações inovadoras, quer nas idéias, quer no estilo, mas nenhum se compararia ao radicalismo intelectual que Antonio Candido viu naqueles livros fundamentais. De todos o mais célebre foi, sem dúvida, a obra-prima de Gilberto Freyre traduzida em dezenas de línguas, sempre lembrada pelo elogio aos portugueses, sua mobilidade, adaptabilidade, miscibilidade -o que deles teria feito colonizadores excelentes.
Lembrada também pela imagem de uma escravidão suavizada pela ausência, entre os lusos, de preconceitos raciais, fruto da bicontinentalidade do país em sua formação, entre a Europa e a África, e matriz histórica da chamada "democracia racial" brasileira. No pólo oposto, o livro de Caio Prado se transformaria em referência das mais fecundas interpretações históricas entre os anos 1950 e 1980, sobretudo por sua problematização teórica do sistema colonial em que o Brasil fora inserido, como área explorada, desde o século 17.
Como todo grande livro -por isso mesmo longevo-, essas obras de Gilberto Freyre e Caio Prado cumpriram e cumprem trajetórias variadas, apropriadas de diversas formas, conforme a época. "Casa Grande & Senzala" seria festejadíssimo nos anos 1940 por vislumbrar em nossas origens sociais uma vocação à concórdia afetivizada, mesma razão pela qual seria verdadeiramente execrado pelo ensino universitário de esquerda, nos anos 1960-70, enquanto, no Portugal salazarista, recebia condecorações oficiais por louvar a vocação colonialista lusitana.


AS DUAS PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES DO BRASIL FEITAS NO SÉCULO 20 RESSALTAM A CORDIALIDADE E A AUSÊNCIA DE PRECONCEITO RACIAL NO COLONIZADOR, MAS DIVERGEM RADICALMENTE QUANTO AO FUTURO DO PAÍS


A partir dos anos 1980, seria revisto pela historiografia brasileira, que nele passou a ver os primeiros sinais de uma antropologia histórica, além de uma valorização sem precedentes das africanidades em nossa formação. Já o livro de Caio Prado, passou de "vade mecum" da história colonial a alvo de críticas acérrimas, quer pela sua ênfase no sistema colonial em detrimento das dinâmicas internas da colônia, quer pelo seu descaso, para dizer o mínimo, diante do peso das culturas africanas na formação do Brasil. Comparado aos livros de Gilberto Freyre e Caio Prado, "Raízes do Brasil" foi, em vários sentidos, menos célebre e mais acanhado. Menos reeditado, menos lido, muitas vezes confundido com a tese do brasileiro como "homem cordial", entendida a cordialidade como concórdia, bondade, quase subserviência.

Convergências
Entendimento errôneo, vale dizer, pois essa idéia era de Cassiano Ricardo (1895-1974), escritor com tendências integralistas, e não de Sérgio Buarque, que nem sequer inventou a expressão, tomando-a de empréstimo ao escritor Ribeiro Couto. De todo modo, a cordialidade de Sérgio Buarque significava passionalidade, aversão a todo convencionalismo ou formalismo social e tanto podia ser positiva como agressiva. "A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração, procedem da esfera do íntimo, do familiar, do privado." Esse conceito de cordialidade que Sérgio Buarque atribui ao caráter brasileiro tem a ver com certas raízes que remontariam ao período colonial. Ao tempo dos engenhos, da escravidão, do açúcar e, marcadamente, à influência dos negros a que o iberismo rígido sucumbiu nas fronteiras da Europa. "Uma suavidade dengosa e açucarada", afirma Sérgio Buarque, "uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional". A cordialidade ou afetividade, tanto para o bem como para o mal, que Sérgio Buarque viu em nossa formação histórica, bem se aproxima do pensamento de Gilberto Freyre. É possível mesmo dizer que a idéia de cordialidade integra, ainda que implicitamente, o modelo freyriano do patriarcalismo, chave para entender a formação brasileira. De modo que, nesse território, os dois autores se aproximam com nitidez. Ambos defendem a hipertrofia da família patriarcal, dilatada por escravos e agregados, que, crescendo à sombra de poderes públicos pífios, jogam papel decisivo na colonização, de sorte que o Estado, longe de ser uma "ampliação do círculo familiar", mantém com ele, segundo Sérgio Buarque, descontinuidades e oposições. É o mesmo que diz Gilberto Freyre, ao realçar o formidável triunfo do privatismo sobre a autoridade metropolitana e sobre a igreja, reduzida esta última -com certo exagero- à capela do engenho ou à ação dos jesuítas, "donzelões intransigentes" da época. Convergem os autores ainda num ponto essencial, isto é, na negativa de preconceitos raciais entre os portugueses. Em Gilberto Freyre essa idéia aparece com máxima eloquência, atribuída à própria formação bicontinental de Portugal, país onde a Europa reinava "sem governar; governando antes a África". Exagero de Gilberto Freyre que Sérgio Buarque endossaria, com atenuantes, sublinhando "a ausência completa", entre os portugueses, de "qualquer orgulho de raça". Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de compromissos", a exemplo dos povos do Norte europeu. Equivocados ou não, convém não esquecer que ambos escreveram isso nos anos 1930, tempo em que a raciologia cientificista, longe de ser apanágio de médicos e intelectuais racistas, adquiria o status de ideologia de Estado, como na Alemanha hitlerista, e não tardaria a dar mostras de sua vocação genocida. O Brasil, felizmente, sempre esteve longe disso, e tanto Gilberto Freyre como Sérgio Buarque enxergaram-no muito bem e nesse ponto acertaram. Convergências à parte, há diferenças importantes entre "Casa Grande" e "Raízes", algumas de estilo, outras de fundo. Falta ao segundo a exuberância que sobra no primeiro, a começar pela linguagem libérrima que nele viu Antonio Candido, ao que acrescentaríamos a riqueza das demonstrações, parte delas convincente, outra parte intuitiva, mais divertida que comprobatória, em contraste com o estilo sisudo de tipo sociológico, à moda de Weber, adotado em "Raízes". Falta a "Raízes" o erotismo que, em Gilberto Freyre, irriga o livro todo, desde cafunés ou deleites sexuais até a forma fálica dos doces, tudo como prova de uma sociedade amolengada e de hierarquias meio frouxas. Em Sérgio Buarque, a "suavidade dengosa" da colônia não vai além do enunciado. Nessa comparação, sendo as teses semelhantes, "Raízes do Brasil" é decerto mais tímido, menos impactante. A semelhança das teses fundamentais se esmaece, porém, entre sutilezas, de um lado, e divergências frontais, de outro. Em Gilberto Freyre o patriarcalismo é o conceito abrangente, que abriga tanto a crueldade senhorial como os afagos e chamegos, ao passo que em Sérgio Buarque é quase sinônimo de "ditadura dos domínios rurais", entre o "familismo" e a tirania do "pater familias", temperada por uma cordialidade ambivalente.

Saldos conflitantes
Diferença importante: em Gilberto Freyre, a comparação de fundo, muitas vezes implícita, mas decerto poderosa, se dá entre a colonização portuguesa, frouxa na hierarquia e por isso mesmo positiva na integração entre as raças, e a anglo-saxã, intolerante e rígida; em Sérgio Buarque, embora tal contraste não esteja ausente, prevalece a comparação, virtualmente pioneira, entre a colonização portuguesa e a espanhola da América, como no capítulo clássico "O Semeador e o Ladrilhador".
No caso hispânico, a colonização planejada, a interiorização desde cedo, a construção de cidades com seus quadriláteros filipinos ou sobre as ruínas pré-colombianas; em suma, a perspectiva civilizacional expressa até nos nomes com que os espanhóis batizaram suas terras: Nova Espanha, Nova Granada. No caso português, o improviso, a nostalgia do reino, a ocupação litorânea, como se fossem os portugueses caranguejos, já dizia frei Vicente; o ânimo meramente predatório, o desleixo na construção das cidades, poucas e rústicas, a prolongar o domínio rural, vergando-se as ruas à paisagem, tortuosamente, sem dominá-las.
Essa diferença de perspectiva ilumina o que parece ser uma divergência essencial: em Gilberto Freyre, o saldo da colonização portuguesa é positivo, pois foi graças a essa miscibilidade lusitana que se pôde construir no Brasil, diríamos hoje, uma sociedade aberta à negociação, ao convívio de alteridades e à mistura delas, racial e culturalmente. É por isso que Gilberto Freyre diz que a senzala colonizou a casa grande, justificando o título da obra, e também por isso trata o negro como o "colonizador africano" do Brasil. Em Sérgio Buarque, a senzala não triunfa, embora os negros suavizem o legado português. E esse mesmo legado é, para Sérgio, péssimo e deletério, responsável pela vitória do latifundismo predatório, pela inocuidade das instituições, pelo personalismo autoritário.
Divergência essencial, portanto, a separar dois autores inquietos no limiar dos anos 1930, cada qual exprimindo visões diametralmente opostas do que fora e, sobretudo, do que era ou poderia ser o Brasil. Gilberto Freyre complacente quanto ao passado e saudoso dele diante dos sinais de modernidade, nostálgico de um Brasil arcaico. Sérgio Buarque pessimista quanto às nossas raízes e desconfiadíssimo, com razão, de nossa modernidade incerta.

Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus).

Texto Anterior: Notas
Próximo Texto: Um crítico em mutação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.