São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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O vôo do falcão

O jornalista Christopher Hitchens, que vem ao Brasil para lançar "Amor, Pobreza e Guerra", diz que os EUA precisam aumentar sua presença no Oriente Médio, elogia Trótski e chama Bento 16 de "burocrata de carreira"

O presidente Bush tem tido sua ação bastante limitada na região, e há gente que acha que ele deveria agir mais


MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Um dos grandes polemistas da imprensa de língua inglesa, Christopher Hitchens é um nome na melhor tradição dos autores anglo-saxões que interferem no debate público utilizando a verve irônica e ácida. Para irritação dos liberais americanos, esse ex-trotskista é uma das principais vozes nos EUA em defesa da política de George W. Bush de intervenção no Iraque.
Inglês radicado em Washington, jornalista e crítico literário, em 2005 foi escolhido um dos cem principais intelectuais do mundo pelas revistas "Prospect" e "Foreign Policy".
Conhecido por suas posições anticlericais e iconoclastas, ficou famoso em uma série de ataques a madre Teresa de Calcutá, ao ex-presidente Bill Clinton e ao ex-secretário de Estado dos Estados Unidos Henry Kissinger.
Uma de suas vítimas mais recentes é Michael Moore, diretor de "Fahrenheit 11 de Setembro". Seu artigo na revista on-line "Slate", em que acusa uma das principais obras anti-Bush de ser um "espetáculo de abjeta covardia política", está incluído em "Amor, Pobreza e Guerra" (Ediouro, tradução de Alexandre Martins e Marcos José da Cunha, 368 págs.).
Hitchens lançará o livro na quarta edição da Festa Literária Internacional de Parati, entre 9 e 13 de agosto, de que será uma das estrelas. O livro reúne ensaios, prefácios e artigos que abordam política externa, religião, cultura, personalidades e escritores como Jorge Luis Borges, James Joyce e Aldous Huxley -uma das suas grandes referências. O autor de "Cartas a um Jovem Contestador" (Cia. das Letras) e "O Julgamento de Kissinger" (Boitempo) disse em entrevista à Folha por que acha a esquerda brasileira melhor do que a venezuelana, fala que não é neoconservador, chama o papa Bento 16 de "reacionário medíocre" e justifica a ação militar no Iraque.

 

FOLHA - O senhor defende a política externa de George W. Bush e defendeu publicamente os "falcões" do Partido Republicano. O sr. se considera neoconservador?
CHRISTOPHER HITCHENS -
Não me defino como neoconservador, não acho que seja nenhum tipo de conservador. De qualquer forma, é uma descrição estúpida para definir os que defendem uma mudança de regime no Iraque, no Afeganistão etc. Você pode chamá-los do que quiser, mas não pode chamá-los de conservadores. Como querem mudar esses regimes, são radicais, por definição. Dediquei um de meus últimos livros ao presidente do Iraque, Jalal Talabani, um líder revolucionário que liderou a resistência a Sadam Hussein por várias décadas. É o primeiro presidente eleito do Iraque. Tomei seu lado contra as forças do fascismo e de Bin Laden.

FOLHA - O fortalecimento do regime iraniano é usado como exemplo para demonstrar o fracasso da ação americana no Iraque.
HITCHENS -
O problema do Irã não é novo. Por um quarto de século, o país teve um regime teocrático que falhou completamente como governo. Ele arruinou e corrompeu a sociedade iraniana e tenta compensar isso com aventuras além de suas fronteiras, como a tentativa de assassinar Salman Rushdie ou os líderes curdos da oposição, em Berlim. E, claro, ao ajudar os sírios que tentam dominar o Líbano, além de causar problemas com mulás reacionários, como o clérigo radical Muqtada al Sadr, no Iraque. Esse é um problema antigo, um desafio que ainda não decidimos enfrentar.

FOLHA - A tensão no Oriente Médio aumentou com as ações do Hizbollah e a resposta militar israelense no Líbano. Isso não significa que, de alguma forma, a política externa americana está em xeque?
HITCHENS -
Não é exatamente culpa dos EUA que o Hizbollah esteja atuando no Líbano. Há raízes históricas, ligações com a população xiita na região. E, em outro aspecto, há assassinos que obtêm algum suporte do governo de Bashar al Assad [presidente sírio]. Isso não é culpa do presidente Bush. Na verdade, o presidente Bush tem tido sua ação bastante limitada, e há gente em Washington que acha que ele deveria agir mais.

FOLHA - O sr. atacou publicamente os críticos do presidente Bush, como o cineasta Michael Moore. O sr. voltou a debater com ele?
HITCHENS -
Michael Moore recusou todas as oportunidades de debater comigo. Recusou discutir comigo na TV, no rádio. Sei que ofereceram muitas oportunidades. Debati com vários representantes dos movimentos contrários à intervenção no Iraque. Nunca recusei esse debate. Mas, agora, eles não desejam mais debater. E Michael Moore sempre recusou, mesmo que tenha prometido publicamente que discutiria com quem criticasse seu filme. Ele nem mesmo respondeu ao meu artigo. O que eu disse é verdade, seu filme está cheio de mentiras. Ninguém rebateu meu ensaio, mas isso não importa. Não ligo se gostam ou não de mim, não me preocupo em ser popular.

FOLHA - O sr. dedicou "Amor, Pobreza e Guerra" ao escritor Martin Amis, que conheceu na revista "New Statesman". O sr. conhece vários nomes da literatura britânica; o que acha do trabalho deles?
HITCHENS -
Meu próximo livro será dedicado a Ian McEwan. Quando tínhamos uns 26 anos, aprendi muito com eles, sobre escrever e sobre crítica. Também aprendi algo importante, que não deveria fazer ficção... Deveria me tornar ensaísta, crítico. Não tinha talento para romances. Outros grandes nomes desse grupo são Julian Barnes, Salman Rushdie e o poeta James Fenton. Tínhamos uma espécie de camaradagem, que ainda perdura, mas não moramos mais na mesma cidade. Ainda mantemos contato.

FOLHA - Qual é o tema de seu próximo livro?
HITCHENS -
Acabei de escrever, seu título é "God Is Not Great" [Deus Não É Grande]. Faz um ataque geral à religião, diz que ela é uma má influência.

FOLHA - "Amor, Pobreza e Guerra" traz o artigo em que o sr. explica seu papel como testemunha contra a beatificação de madre Teresa de Calcutá. Isso lhe trouxe problemas?
HITCHENS -
Não, de jeito nenhum. Muitas pessoas desejavam ouvir que havia histórias falsas sobre ela. Meu livro "The Missionary Position - Mother Teresa in Theory and Practice" [A Posição Missionária - Madre Teresa na Teoria e na Prática] ainda é muito popular. Tomei como um cumprimento o fato de a Igreja Católica ter feito um convite para que eu testemunhasse contra o processo de beatificação dela.

FOLHA - Qual é a sua opinião sobre o papa Bento 16?
HITCHENS -
É um reacionário medíocre. Não é um homem de idéias, é um burocrata de carreira. Não tem a autoridade moral nem a coragem de João Paulo 2º. Ainda não teve tempo para mostrar se pode ser tão popular quanto Wojtyla, mas isso não é importante.

FOLHA - Em seu livro, o sr. aborda Jorge Luis Borges, de quem faz um retrato bem favorável. Mas cita elogios que ele dirigia ao general Pinochet... Até onde os escritores ou intelectuais devem participar do debate político?
HITCHENS -
Na nossa cultura, os escritores têm uma estatura moral, mas não acho que a opinião deles tenha valor maior do que a sua ou a minha. Sou cético em relação à idéia de escritores como celebridades. Acho que isso tende a corrompê-los. Um exemplo é o Nobel, que é concedido a escritores baseado em política. O exemplo mais óbvio e recente é Harold Pinter, mas Dario Fo e outros ficaram felizes ao defender posições políticas irresponsáveis.

FOLHA - O que o sr. acha da tese das duas esquerdas latino-americanas defendida pelo mexicano Jorge Castañeda? Uma boa, representada por Brasil e Chile, e outra ruim, representada pela Bolívia e a Venezuela de Hugo Chávez?
HITCHENS -
Eu visitei e estudei a Argentina há alguns anos e pude constatar o "nonsense" do peronismo, do populismo.
Concordo com Jorge Castañeda, de que é uma má esquerda. Na verdade, não acho em absoluto que seja uma esquerda. É um nacionalismo demagógico conquistado por meio de votos comprados com dinheiro público. Sempre toma uma forma anticosmopolita e antiamericana. Do ponto de vista da história da esquerda, isso é um caminho sem saída. Sou um admirador de Chico Mendes [líder do movimento sindical de seringueiros, assassinado em 1988], por exemplo. Lula e o PT mostraram posições internacionalistas e respeitam o debate democrático. Isso é muito diferente de uma pessoa como Chávez, que presenteou os mulás iranianos com uma estátua de Simón Bolívar, em Teerã [em novembro de 2004]. Ele mostrou quem são seus amigos. Não dá para descrever os mulás iranianos como esquerda. São de extrema direita e atuam por meio da corrupção e da violência. Em outras palavras, acho que Teerã está mais próximo do fascismo do que do socialismo.

FOLHA - O sr. está a par das acusações de corrupção envolvendo o PT no Brasil?
HITCHENS -
Sim, acho deplorável e muito triste. Mas ainda não vi conexões claras ligando o presidente Lula às acusações. Na verdade não tenho informações suficientes.

FOLHA - O sr. é ex-marxista e elogia Trótski em seu livro. Qual a sua opinião sobre o marxismo hoje?
HITCHENS -
Algumas conclusões do marxismo me parecem úteis. A concepção materialista da história, o desprezo pelo sobrenatural, a antecipação da globalização, que era inevitável... Tudo isso me parece muito útil. Mas não acho que alguém hoje ainda diria que o marxismo vai prevalecer como um programa para o futuro. Acho que é cada vez mais ridículo alguém dizer que é comunista ou socialista.

FOLHA - O sr. é um autor na tradição de escritores e polemistas como George Orwell, H.L. Mencken, Mark Twain... O que o sr. acha da imprensa atualmente?
HITCHENS -
Acho que a imprensa está se tornando um braço da indústria de entretenimento. Na maioria da publicações, até no "New York Times", há uma enorme quantidade de espaço para o showbiz e para as celebridades. Não há cobertura séria das notícias, não há um debate de idéias. Pelo menos na imprensa em língua inglesa, que é o que conheço bem.
Acho que essa é uma tendência geral na maior parte do mundo, e lamento muito. Por causa disso, acho que há muitos leitores que desejam algo mais sério e mais divertido, aliás. Se consigo me expressar bem e atrair o público para os meus livros, é o que eu posso esperar.
É verdade que alguns de meus artigos são polêmicos e feitos para isso. Mas, quando escrevo sobre Proust, Borges ou Joyce, minha intenção é fazer as pessoas apreciarem a literatura, que é o que importa.


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