São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Iluminismo ibérico

Historiador defende vigor das ideias de tolerância religiosa na Espanha, em Portugal e nas Américas na época da Inquisição

DA REPORTAGEM LOCAL

O historiador norte-americano Stuart Schwartz tinha já uma carreira consolidada como especialista no período colonial brasileiro, autor de grossos e clássicos volumes repletos de estatísticas -como o "valor das exportações baianas de açúcar" entre 1698 e 1766, em seu livro "Segredos Internos"-, quando decidiu se ocupar de um tema que escapa a quantificações, em "Cada Um na Sua Lei" (Companhia das Letras/ Edusc, 488 págs., R$ 58).
Ali ele apresenta a existência de grande tolerância religiosa, entre pessoas comuns, na península Ibérica e sua colônias entre os séculos 16 e 18.
Foi ao ler "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg, que Schwartz se surpreendeu com o fato de o "personagem" do livro, o moleiro italiano Menocchio, interrogado pela Inquisição, parecer em suas declarações tão "tolerante e moderno". Dizia Menocchio, de maneira aparentemente extravagante para o século 16, que a salvação era possível em qualquer religião. Schwartz mostra em seu novo livro que o moleiro não era exceção, e encontra nos arquivos das inquisições espanhola e portuguesa dezenas de exemplos de pessoas comuns, católicas, que questionavam os princípios teológicos e hierárquicos da igreja, e defendiam a primazia da caridade -de Deus e dos não cristãos- em detrimento da "verdade" católica.
Mesmo nos países mais identificados com a rigidez católica e inquisitorial, no início do período moderno, afirma o historiador, havia já um "solo" de tolerância e relativismo para o florescimento, mais tarde, das ideias iluministas.
(RAFAEL CARIELLO)

 

FOLHA - Esse ambiente de tolerância religiosa a que o sr. se refere tem raízes especificamente ibéricas?
STUART SCHWARTZ
- Não sei se são ibéricas ou se são cristãs. A península Ibérica tem essa história particular de convivência das três religiões monoteístas [cristianismo, judaísmo e islamismo] na Idade Média. Certamente alguma influência houve. Claro que não havia uma convivência absolutamente pacífica, mas as pessoas aprendiam, no contato direto, cotidiano, a viverem juntas essas "três leis", como eles as chamavam. Palavra que indica que a religião não era apenas uma crença, mas um padrão de comportamento, um conjunto cultural mais amplo. Mas seria errado pensar que se trata de um fenômeno exclusivamente ibérico. Se você vai ver a história do resto da Europa, encontra também tolerância religiosa na França, na Itália, no Reino Unido etc. O importante é notar que, na história da tolerância religiosa, Portugal e Espanha nunca são tratados, porque são vistos como o exemplo, o modelo da intolerância: a Inquisição, a expulsão dos judeus, a expulsão dos mouros. O que tratei de mostrar é que essa ideia é errada. Houve sentimento de tolerância, embora não tenha havido política de tolerância por parte do Estado e da Igreja. O livro trata da dissidência das pessoas comuns, do povo, diante de uma política de intolerância.

FOLHA - O que há na própria religião cristã que permite essa prática de tolerância, apesar do que desejaria a igreja àquela altura?
SCHWARTZ
- O cristianismo sempre teve dois lados: caridade e verdade. Essa gente que aparece no meu livro, pessoas simples, queria enfatizar a caridade, enquanto os teólogos buscavam reforçar a "verdade". Muitos diziam que a religião sem a caridade não faz sentido, e que dentro da Bíblia há trechos que enfatizam a caridade. Há aí exemplos de lavradores, artesãos, que questionam seus inquisidores, dizendo: "Não é na Bíblia que Cristo diz "Perdoai-os, ó Pai, porque eles não sabem o que fazem?'". Sem formação teológica, essas pessoas interpretam trechos das Sagradas Escrituras que acreditam serem a explicação da religião. Não estão convencidas de que haja somente uma verdade, mas creem que a verdade poderia ser diversa. Como dizem alguns: o Deus que criou o cristianismo também criou a lei dos mouros e a dos judeus. Se eles nasceram naquela lei, era a vontade de Deus que eles buscassem a salvação desse modo.

FOLHA - Em geral associamos essas ideias de respeito à diferença e de tolerância ao iluminismo. De certa forma o sr. recua, no tempo, a vigência dessa mentalidade. É isso?
SCHWARTZ
- Exatamente. Meu argumento é que, quando chega o século 18, e a influência das ideias de Locke, Voltaire e outros, já existia um solo para que essas ideias florescessem, também na América Latina e no mundo ibérico de forma geral. Ao mesmo tempo, as forças contrárias a essa vigência da tolerância, a autoridade dos governos e da religião, eram muito fortes. A batalha pela liberdade de consciência só foi se dar, afinal, no século 19.

FOLHA - Além desse solo antigo, cristão, medieval, há um contexto específico do século 16 que contribui para essas ideias, certo? O descobrimento contribuiu para a tolerância religiosa?
SCHWARTZ
- Os descobrimentos eram, primeiro, uma empreitada de ampliação da fé cristã, católica, uma oportunidade de expansão da cristandade. Essa era a justificativa de portugueses e espanhóis para navegarem para novas terras e conquistá-las. Mas ao mesmo tempo era uma revelação de que havia milhares, milhões de pessoas fora da igreja, que nunca haviam conhecido a palavra de Deus. Muitos se perguntavam se isso deveria, de fato, condená-los a ficarem excluídos da salvação.

FOLHA - E essas questões eram feitas só por pessoas simples ou também por integrantes da hierarquia da igreja?
SCHWARTZ
- Também. Esse debate acontecia desde os primórdios da igreja: se a salvação depende apenas da graça de Deus ou das ações, das obras dos homens. A linha que ganhou foi a de que não há salvação fora da igreja. Mas os franciscanos questionavam se a salvação pela lei natural, pelo entendimento que Deus dá a todos os seres humanos do que é bom e do que é mau, mesmo fora da igreja, não seria possível.

FOLHA - Havia espaço maior para a tolerância nas Américas?
SCHWARTZ
- A América representava uma terra de liberdade, para onde os colonos podiam ir, e se libertar do controle que havia na Espanha ou em Portugal.

FOLHA - Apenas para os judeus convertidos, os cristãos-novos, ou também para os cristãos-velhos?
SCHWARTZ
- Às vezes essa ideia, de que cada um se salva na sua lei, é tida na historiografia como uma atitude exclusiva dos convertidos. "Isso é coisa dos cristãos-novos que tratam de justificar a religião de seus antepassados." Mas há evidências de que os cristãos-velhos pensavam da mesma maneira.


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