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Iluminismo ibérico
Historiador defende vigor das ideias de tolerância religiosa na Espanha, em Portugal e nas Américas na época da Inquisição
DA REPORTAGEM LOCAL
O historiador norte-americano Stuart
Schwartz tinha já
uma carreira consolidada como especialista no período colonial
brasileiro, autor de grossos e
clássicos volumes repletos de
estatísticas -como o "valor das
exportações baianas de açúcar"
entre 1698 e 1766, em seu livro
"Segredos Internos"-, quando
decidiu se ocupar de um tema
que escapa a quantificações,
em "Cada Um na Sua Lei"
(Companhia das Letras/
Edusc, 488 págs., R$ 58).
Ali ele apresenta a existência
de grande tolerância religiosa,
entre pessoas comuns, na península Ibérica e sua colônias
entre os séculos 16 e 18.
Foi ao ler "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg, que
Schwartz se surpreendeu com
o fato de o "personagem" do livro, o moleiro italiano Menocchio, interrogado pela Inquisição, parecer em suas declarações tão "tolerante e moderno". Dizia Menocchio, de maneira aparentemente extravagante para o século 16, que a
salvação era possível em qualquer religião.
Schwartz mostra em seu novo livro que o moleiro não era
exceção, e encontra nos arquivos das inquisições espanhola e
portuguesa dezenas de exemplos de pessoas comuns, católicas, que questionavam os princípios teológicos e hierárquicos
da igreja, e defendiam a primazia da caridade -de Deus e dos
não cristãos- em detrimento
da "verdade" católica.
Mesmo nos países mais identificados com a rigidez católica
e inquisitorial, no início do período moderno, afirma o historiador, havia já um "solo" de tolerância e relativismo para o
florescimento, mais tarde, das
ideias iluministas.
(RAFAEL CARIELLO)
FOLHA - Esse ambiente de tolerância religiosa a que o sr. se refere tem
raízes especificamente ibéricas?
STUART SCHWARTZ - Não sei se
são ibéricas ou se são cristãs. A
península Ibérica tem essa história particular de convivência
das três religiões monoteístas
[cristianismo, judaísmo e islamismo] na Idade Média. Certamente alguma influência houve. Claro que não havia uma
convivência absolutamente pacífica, mas as pessoas aprendiam, no contato direto, cotidiano, a viverem juntas essas
"três leis", como eles as chamavam. Palavra que indica que a
religião não era apenas uma
crença, mas um padrão de comportamento, um conjunto cultural mais amplo.
Mas seria errado pensar que
se trata de um fenômeno exclusivamente ibérico. Se você vai
ver a história do resto da Europa, encontra também tolerância religiosa na França, na Itália, no Reino Unido etc. O importante é notar que, na história da tolerância religiosa, Portugal e Espanha nunca são tratados, porque são vistos como o
exemplo, o modelo da intolerância: a Inquisição, a expulsão
dos judeus, a expulsão dos
mouros. O que tratei de mostrar é que essa ideia é errada.
Houve sentimento de tolerância, embora não tenha havido política de tolerância por
parte do Estado e da Igreja. O livro trata da dissidência das pessoas comuns, do povo, diante
de uma política de intolerância.
FOLHA - O que há na própria religião cristã que permite essa prática
de tolerância, apesar do que desejaria a igreja àquela altura?
SCHWARTZ - O cristianismo
sempre teve dois lados: caridade e verdade. Essa gente que
aparece no meu livro, pessoas
simples, queria enfatizar a caridade, enquanto os teólogos
buscavam reforçar a "verdade".
Muitos diziam que a religião
sem a caridade não faz sentido,
e que dentro da Bíblia há trechos que enfatizam a caridade.
Há aí exemplos de lavradores, artesãos, que questionam
seus inquisidores, dizendo:
"Não é na Bíblia que Cristo diz
"Perdoai-os, ó Pai, porque eles
não sabem o que fazem?'".
Sem formação teológica, essas pessoas interpretam trechos das Sagradas Escrituras
que acreditam serem a explicação da religião. Não estão convencidas de que haja somente
uma verdade, mas creem que a
verdade poderia ser diversa.
Como dizem alguns: o Deus
que criou o cristianismo também criou a lei dos mouros e a
dos judeus. Se eles nasceram
naquela lei, era a vontade de
Deus que eles buscassem a salvação desse modo.
FOLHA - Em geral associamos essas
ideias de respeito à diferença e de
tolerância ao iluminismo. De certa
forma o sr. recua, no tempo, a vigência dessa mentalidade. É isso?
SCHWARTZ - Exatamente. Meu
argumento é que, quando chega o século 18, e a influência das
ideias de Locke, Voltaire e outros, já existia um solo para que
essas ideias florescessem, também na América Latina e no
mundo ibérico de forma geral.
Ao mesmo tempo, as forças
contrárias a essa vigência da tolerância, a autoridade dos governos e da religião, eram muito fortes. A batalha pela liberdade de consciência só foi se
dar, afinal, no século 19.
FOLHA - Além desse solo antigo,
cristão, medieval, há um contexto
específico do século 16 que contribui para essas ideias, certo? O descobrimento contribuiu para a tolerância religiosa?
SCHWARTZ - Os descobrimentos eram, primeiro, uma empreitada de ampliação da fé
cristã, católica, uma oportunidade de expansão da cristandade. Essa era a justificativa de
portugueses e espanhóis para
navegarem para novas terras e
conquistá-las. Mas ao mesmo
tempo era uma revelação de
que havia milhares, milhões de
pessoas fora da igreja, que nunca haviam conhecido a palavra
de Deus. Muitos se perguntavam se isso deveria, de fato,
condená-los a ficarem excluídos da salvação.
FOLHA - E essas questões eram feitas só por pessoas simples ou também por integrantes da hierarquia
da igreja?
SCHWARTZ - Também. Esse debate acontecia desde os primórdios da igreja: se a salvação
depende apenas da graça de
Deus ou das ações, das obras
dos homens. A linha que ganhou foi a de que não há salvação fora da igreja. Mas os franciscanos questionavam se a salvação pela lei natural, pelo entendimento que Deus dá a todos os seres humanos do que é
bom e do que é mau, mesmo fora da igreja, não seria possível.
FOLHA - Havia espaço maior para a
tolerância nas Américas?
SCHWARTZ - A América representava uma terra de liberdade,
para onde os colonos podiam ir,
e se libertar do controle que havia na Espanha ou em Portugal.
FOLHA - Apenas para os judeus
convertidos, os cristãos-novos, ou
também para os cristãos-velhos?
SCHWARTZ - Às vezes essa ideia,
de que cada um se salva na sua
lei, é tida na historiografia como uma atitude exclusiva dos
convertidos. "Isso é coisa dos
cristãos-novos que tratam de
justificar a religião de seus antepassados." Mas há evidências
de que os cristãos-velhos pensavam da mesma maneira.
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