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Gozar das leis
Ao repensar
a obra de
Sacher-Masoch,
Deleuze associa
o sadismo
à ironia, e o masoquismo
ao humor ante
as regras,
aceitando-as
para melhor
subvertê-las
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sacher-Masoch: o Frio
e o Cruel", de Gilles
Deleuze [1925-95],
poderia parecer uma
obra menor no interior de uma experiência intelectual que nos deixou livros da
envergadura de "Diferença e
Repetição", "Mil Platôs" e "O
Anti-Édipo", além de comentários fundamentais sobre filósofos como Hume, Nietzsche,
Spinoza, Bergson e Kant.
Lançado na França como uma
grande introdução à tradução
de "A Vênus das Peles", de
Leopold von Sacher-Masoch
[1836-95], o texto de Deleuze,
que aparece agora ao público
brasileiro, pode parecer preencher apenas duas funções.
Por um lado, trata-se de reconhecer o lugar de Sacher-Masoch como grande escritor,
e não apenas como aquele que
forneceu seu nome a uma perversão (o masoquismo) graças
ao psiquiatra Richard von
Krafft-Ebing, responsável pelo
mais influente tratado de desvios sexuais do final do século
19 ("Psychophatia Sexualis",
de 1886).
Deleuze insiste na importância de sua obra, composta, em
larga medida, de contos baseados em material folclórico de
minorias que habitavam a Galícia [no Leste Europeu], como
judeus, russos, húngaros, prussianos. Da mesma forma, ele
não deixará de exaltar as qualidades literárias de "A Vênus
das Peles" e do outro volume
que compõe o ciclo "O Legado
de Caim".
A ironia e o humor
Mas Deleuze também aproveitará o comentário de Sacher-Masoch para mobilizar
um amplo aparato psicanalítico a fim de discutir a natureza
do masoquismo e a incongruência de pensar uma relação
de complementaridade com
seu oposto, criando com isso a
categoria do sadomasoquismo.
Não se trataria apenas de
duas perversões distintas, mas
de duas lógicas completamente
diferentes na constituição do
objeto do desejo e na relação à
lei moral. Essas duas lógicas
são descritas por Deleuze por
meio de uma associação que se
mostrará plena de consequências. Ela consiste em afirmar
que, no interior do sadismo, encontramos uma lógica que o associa à ironia, isso enquanto o
masoquismo seria a encarnação mais evidente do humor.
A princípio, essas associações podem parecer gratuitas.
No entanto, elas consistem em
dizer que uma perversão não é
simplesmente a descrição de
alguma forma de desvio em relação a um padrão de conduta
sexual socialmente partilhado.
Ela é uma maneira de distorcer
uma lei moral da qual o próprio
perverso reconhece a existência. Neste sentido, Deleuze poderá dizer que, dada uma lei
que reconhecemos, há duas
maneiras de não a seguir.
A primeira é através da ironia. Deleuze pode afirmar isso
por lembrar do conceito romântico de ironia, onde este
aparece como uma posição na
qual o sujeito sempre está para
além de seus enunciados.
Enunciar uma lei de maneira
irônica significa mostrar que
seu enunciador não está lá onde seu dizer aponta. Esse recurso a um lugar transcendente seria uma maneira de evidenciar
que sigo um princípio para
além da lei que enuncio.
Todo o
esforço de Deleuze no livro será
mostrar como a posição de Sade [escritor francês, 1740-1814]
em relação à lei moral pode ser
compreendida a partir desse
esquema.
A segunda seria através do
humor. O humor visaria torcer
a lei por meio do aprofundamento de suas consequências.
Não colocamos nenhum princípio de significação para além
da lei moral. Mas os efeitos da
lei são invertidos devido à possibilidade de torções nas designações: "a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto a
este que normalmente esperávamos (por exemplo, os golpes
de chicote, longe de punir ou
prevenir uma ereção, a provocam, a asseguram)".
Isto é Deleuze falando de Sacher-Masoch, este mesmo Sacher-Masoch em quem o filósofo vê uma insolência por obsequiosidade, uma revolta por
submissão.
A paródia do desejo
Essa maneira de torcer a lei
fará Deleuze insistir em que só
podemos compreender o masoquismo por meio de conceitos como a paródia. Afinal, que
nome poderíamos dar ao ato de
firmar um contrato onde abro
mão, livremente, de minha autonomia para me tornar escravo de uma dominatrix, ato absolutamente necessário no interior do cenário masoquista?
Mas, para além da descrição
de uma perversão, Deleuze age
como quem acredita que por
meio do humor, da paródia, da
passividade simulada, abre-se
uma possibilidade de desdobrar a relação com o desejo,
com a lei talvez mais próxima
de nossa situação contemporânea. Só não esperávamos nos
descobrir todos contemporâneos de Sacher-Masoch.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
A VÊNUS DAS PELES
Autor: Leopold von Sacher-Masoch
Tradução: Saulo Krieger
Editora: Hedra (tel. 0/xx/11/ 3097-8304)
Quanto: R$ 19 (160 págs.)
SACHER-MASOCH - O FRIO E O
CRUEL
Autor: Gilles Deleuze
Tradução: Jorge Bastos
Editora: Ed. Zahar (tel. 0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 29 (136 págs.)
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