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Liberdade doutrinária
Antonio Penalves Rocha
especial para a Folha
Trabalhos sobre a história russa e a soviética deram notoriedade a Richard Pipes, ex-professor
de história da Universidade Harvard, e também a
idéia básica de seu livro "Propriedade e Liberdade". De fato, ao notar que a Rússia se diferenciou do resto da Europa devido ao "fraco desenvolvimento da propriedade", Pipes supôs que havia uma "ligação íntima
entre garantias públicas de propriedade e liberdade individual: que, enquanto a propriedade de certa forma
existe sem as liberdades públicas, o contrário é inconcebível". Da soma dessa suposição com uma demonstração de historiadores econômicos sobre o forte vínculo
que há entre propriedade privada e crescimento econômico, Pipes formulou uma hipótese: liberdade política e
crescimento econômico são corolários da propriedade
privada; o livro em tela pretende comprová-la por meio de uma série de evidências históricas, a saber:
1) a fundação do conceito de propriedade por Aristóteles e o seu triunfo em
nossos dias, a despeito dos golpes contra
ele desferidos por utopistas e comunistas
durante 2.500 anos;
2) a prova histórica e antropológica de
que a ganância é um fenômeno universal
e intemporal ligado ao instinto de autopreservação e a
sentimentos de "autoconfiança e aptidão". Partindo
dessa prova, Pipes adota a idéia de Locke de que a posse
antecede o Estado, criado para garantir que ela e a liberdade individual fossem indissociáveis; mas avança ao
argumentar que, de uma só vez, o Estado a protege como um "direito" e ela protege o indivíduo do Estado ao
limitar poderes, assegurando, por conseguinte, a liberdade. A ausência de liberdade nas antigas monarquias
orientais decorreu da apropriação dos recursos produtivos pelos monarcas; inversamente, em Atenas, a propriedade privada garantiu o governo dos proprietários
e a liberdade. Enfim, os conceitos modernos de liberdade e direito derivaram dessas experiências históricas;
3) dois casos de história da propriedade: na Inglaterra,
a propriedade privada gerou a liberdade individual, assegurada por instituições democráticas vigorosas; isso
porque as despesas de seus monarcas os tornaram dependentes dos impostos cobrados das
classes proprietárias e os obrigaram a negociar com o Parlamento, particularmente com os representantes dessas
classes na Câmara dos Comuns. Na Rússia, em contrapartida, foi débil a tradição
da propriedade privada, devido à existência de um Estado "patrimonial", que
deu aos monarcas a condição de proprietários do reino; assim, como concessão, a propriedade privada ficou na órbita do Estado,
acarretando o descaso pelas atividades parlamentares e
pela liberdade.
Depois de apresentar essas evidências, Pipes disserta a
respeito da brutal ameaça que o comunismo, o fascismo e o Estado de Bem-Estar Social exerceram sobre a
propriedade no século 20. Com o colapso da União Soviética, no entanto, só o Estado de Bem-Estar Social a
coloca em perigo, com políticas que limitam a liberdade
de contrato, redistribuem riquezas e concedem benefícios a certos grupos à custa de uma parte da população;
o virtual ganho em igualdade social que delas resultará
será proporcional à perda de liberdade, reduzindo cada
nação "a nada além de um rebanho de animais tímidos
e trabalhadores, cujo pastor é o governo", como Tocqueville pressagiou.
No fim das contas, isso tudo revela que as evidências
apresentadas são insuficientes para a demonstração da
hipótese, porque os casos concretos se limitam às histórias da Inglaterra e da Rússia; portanto, não correspondem à universalidade da hipótese, cuja demonstração
demandaria, a rigor, o exame de quadros históricos
não-europeus. E o próprio Pipes tem consciência disso,
pois justifica essa omissão.
O reconhecimento de que sua tese se sustenta apesar
dessa falha indica que o texto privilegia a lógica da argumentação filosófica para fins doutrinários e usa o passado para autenticar esses mesmos fins. Com efeito, Richard Pipes faz a história com fins políticos e, para tanto, assenta o texto em pressupostos filosóficos intemporais e universais que inscrevem a ordem social na
ordem natural, como, por exemplo, a "ganância é comum a todos os seres vivos", a natureza humana é imutável e "certos aspectos do comportamento humano
são imunes à mudança", repetindo-se sempre em todos
lugares.
Esses pressupostos desempenham dois papéis no texto: primeiro, articulam a hipótese com as evidências para mostrar que o predomínio de valores naturais conduziu o implacável rumo do passado em direção ao status quo da década de 90; segundo, fundamentam prescrições para a reforma do Estado de Bem-Estar Social.
Assim, o livro destina-se a legitimar o mundo dos vencedores da Guerra Fria ao mesmo tempo em que propõe a eliminação do que resta de intervencionismo estatal do Estado de Bem-Estar para liberar o acesso ao melhor dos mundos de riqueza e de liberdade.
Alguns dados sobre o autor e a produção do livro confirmam esse comprometimento doutrinário. Richard
Pipes jamais mascarou sua militância anticomunista e
foi assessor para Assuntos Soviéticos e do Leste Europeu do governo Reagan. Numa resenha de sua autoria,
"The West & the Rest" (O Ocidente e o Resto), publicada pela "Commentary" (vol.103, março de 1997), identificou-se com a quintessência da ideologia dos vencedores da Guerra Fria ao endossar um princípio e uma predição de Francis Fukuyama, respectivamente o de que
não mais haverá "progresso ulterior no desenvolvimento dos princípios e instituições básicos, porque as questões verdadeiramente importantes foram resolvidas", e
a de que era inelutável "o triunfo definitivo da ocidentalização".
O seu livro foi financiado pela mesma instituição que
promoveu os trabalhos de Fukuyama, a John M. Olin
Foundation, que objetiva incentivar "estudos profundos das conexões entre as liberdades econômicas e políticas, e da herança cultural que sustentam [as instituições americanas"".
Certamente não faria sentido nenhum entrar no campo em que está o livro, opondo-lhe qualquer outra doutrina. Torna-se, no entanto, um dever destacar que
"Propriedade e Liberdade" faz política ao fazer a história e usa as palavras "não [...como" relhas de arado para
revolver a planície imensa do pensamento contemplativo, porém [como" gládios para acometer os adversários
ou, numa palavra, meios de combate", de acordo com
uma frase de Max Weber.
Enfim, o livro é um notável documento histórico sobre as relações de alguns acadêmicos americanos com o
Estado e dos seus esforços para formular representações políticas para o establishment; porém, procurar
nele os resultados de uma pesquisa histórica desprovida de comprometimento político sobre a propriedade e
a liberdade é comprar gato por lebre.
Antonio Penalves Rocha é professor de história da USP e organizador de "Visconde de Cairu" (ed. 34).
Propriedade e Liberdade
392 págs., R$ 45,00
de Richard Pipes. Trad. de Carlos Humberto Pimentel D. da
Fonseca e Luiz Guilherme B.
Chaves. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel.
0/xx/ 21/585-2000).
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