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Mesquinharia moral
Editor do "Financial Times" desmascara
Hitchens ao denunciar artimanhas metodológicas de "Deus Não É Grande"
MICHAEL SKAPINKER
Dentro de dois
anos, celebraremos o 150º aniversário da publicação de "A Origem das Espécies", de Charles Darwin. Um ano depois,
fará 400 anos que Galileu observou quatro luas orbitando
Júpiter e concluiu, como Copérnico, que a Terra não era o
centro do universo.
Esses dois eventos destruíram a compreensão humana
sobre a maneira pela qual nós
e o mundo em que vivemos
surgimos. Como observa
Christopher Hitchens em
"Deus Não É Grande", as pessoas continuam a tentar subverter as conclusões de Darwin, com conceitos como o
"design inteligente", enquanto o fundamentalismo islâmico ameaça nossas vidas.
Hitchens conhece os textos
sacros. Ele ama "a esplêndida
liturgia da Bíblia do rei James". Seu primeiro casamento foi celebrado por um padre
ortodoxo grego, e o segundo,
por um rabino gay. Mas agora
tudo que deseja da religião é
que ela o deixe em paz.
A recíproca, porém, não é
verdadeira. Ele detesta a religião. Relata em detalhes sanguinolentos os pecados de
seus praticantes, da sodomia
de meninos à mutilação genital, passando pela cumplicidade em episódios de homicídio em massa.
Ele menciona como exemplo a história de Deus instruindo Abraão a sacrificar
seu único filho, Isaac, e da intervenção do anjo que impede que ele consuma o ato no
último momento. O fascínio
por essa história está longe de
ser surpreendente. Como
uma divindade amorosa poderia ordenar coisa assim?
Outras pessoas compreendem a história de maneira diferente. Muitos alegam que
sacrificar filhos era comum
na época, e que a história de
Abraão e Isaac representa na
verdade uma injunção para
pôr fim à prática. Da mesma
maneira, Hitchens descreve a
prescrição do "olho por olho,
dente por dente", que consta
do Velho Testamento, como
"brutal e estúpida". Muitos
estudiosos a encaram, porém,
como um alerta contra vinganças excessivas.
Hitchens ou não está ciente
dessas interpretações ou prefere não mencioná-las porque poderiam demonstrar
que a religião também é capaz de promover o progresso.
O problema com a tese de
Hitchens é como explicar os
que a usam para fazer o bem.
Como explica Martin Luther
King? Eis: King não era realmente cristão. Sério? Em nenhum momento King sugeriu
que aqueles que o criticavam
seriam punidos neste mundo
ou no próximo. Assim, "pelo
menos no sentido real, em
oposição ao nominal, ele não
era cristão".
Deixemos de lado a possibilidade de que a falta de interesse de King por vingança
tenha derivado dos evangelhos; em lugar disso, empreguemos as ferramentas de
um pensador que Hitchens
recomenda: Karl Popper.
Popper afirmou que, para
que qualquer teoria possa ser
considerada científica, é necessário que seja passível de
prova em contrário. Será que
"a religião envenena tudo" é
passível de prova em contrário? Potencialmente -bastaria que encontrássemos alguma coisa que a religião não
envenenou, e veríamos como
a teoria se sai. Martin Luther
King não envenenou tudo.
Ah, diz Hitchens, mas ele não
era religioso.
Qualquer estudioso de
Popper reconhece a artimanha: trata-se de uma hipótese
"ad hoc", criada para explicar
fatos desconfortáveis que sirvam para refutar uma teoria.
E as pessoas que não crêem
em qualquer deus e ainda assim fazem o mal? Hitchens
não alega que o nazismo era
cristão, mas dedica páginas à
cumplicidade entre as igrejas
e o nazismo, e ao número
muito pequeno de líderes religiosos que se opuseram a
ele. É tudo verdade, mas o nazismo continua responsável
por seus crimes.
Quanto a Stálin, Hitchens
diz, basta observar "a busca
permanente de heréticos e
promotores de cismas; a mumificação de líderes mortos
como ícones e relíquias". Isso
nos lembra algo? Hitchens
afirma que Stálin compreendia as superstições religiosas
de seu povo e as imitava. Assim, King não era religioso,
mas Stálin era. Se essa forma
de mesquinharia intelectual e
moral o agrada, o livro de Hitchens também o fará.
Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci
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