São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

O escritor Michel Butor fala da influência de Júlio Verne, que morreu há cem anos, sua relação dúbia com o progresso e a guinada da crítica, que passou a valorizar suas obras, antes consideradas apenas "literatura para a juventude"

Quero ser grande

FERNANDO EICHENBERG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O escritor francês Michel Butor foi um dos primeiros a escrever um artigo de análise da obra de Júlio Verne, em 1949, quando o autor de "Viagens Extraordinárias", especialmente lembrado neste ano pelo centenário de sua morte, ainda não havia alcançado notoriedade mundial. Viajante incansável, leitor voraz e "possuído pelo demônio da escrita", como definiu num trecho autobiográfico, Butor proclama sua admiração por Júlio Verne, um dos escritores de que reivindica influência e que se tornou, ao longo dos anos, seu objeto de estudo.


Há em Verne um grande sentimento da fragilidade do meio terrestre; nesse sentido, é um precursor dos ecologistas


Ele descobriu o autor de "Vinte Mil Léguas Submarinas" (Ediouro) e "Volta ao Mundo em 80 Dias Dias" (Ática) ainda adolescente, na biblioteca de sua avó. "Era algo muito surpreendente para mim; eu acompanhava os personagens nas suas descobertas do mundo", disse em entrevista à Folha, de sua casa em Lucinges, pequena cidade francesa na fronteira com a Suíça.
 

Folha - Do seu primeiro artigo sobre Júlio Verne até hoje, o que mudou na percepção da obra dele?
Michel Butor -
Ele era considerado um escritor para a juventude, não se dava atenção suficiente às suas qualidades literárias, e tentei mostrar que era um escritor notável. Hoje, fico muito feliz em ver que é estudado com tanta paixão por tantas pessoas. O que disse há mais de 50 anos encontrou um eco, há novas edições interessantes, pesquisadores sobre Verne e cada vez mais nos damos conta de que se trata de um escritor apaixonante. Sua obra é impressionante, com quantidades de mistérios que estudamos e esclarecemos pouco a pouco.

Folha - O sr. menciona que muitos livros adotados pelos jovens não foram originalmente escritos com esse fim, como "Robinson Crusoé", de Daniel Defoe, e "As Viagens de Gulliver", de Jonathan Swift. E no caso de Verne?
Butor -
Verne escreveu para os jovens, o que, realmente, não foi o caso de Defoe e Swift. Foram os pais e professores que pensaram que seria interessante indicar esses livros para crianças e adolescentes. Já todos os grandes romances de Verne foram lançados numa publicação destinada à juventude, chamada "Magasin d'Éducation et Récreation" [Revista de Educação e Recreação]. Isso implicava um certo número de censuras e ele não podia dizer tudo o que quisesse. Seu editor, Hetzel, vigiava-o de muito perto.
Temos os manuscritos de Verne, com anotações freqüentes de Hetzel, que dizia "você não pode escrever isso por causa de nosso público, jovens e crianças, e dos pais que acompanham a leitura de seus filhos". Mas isso não o impediu de conseguir dizer muitas coisas usando diferentes caminhos.

Folha - Hetzel, inclusive, o obrigou a alongar certos romances.
Butor -
Ele era obrigado a publicar nessa revista de educação dois romances por ano, o que fez com que, ao final, publicasse 62 romances. Era algo enorme. Ele não descansava. Pode-se compreender que, após um certo tempo, houvesse um pouco de nariz-de-cera.
Mas, mesmo assim, ele se renovou de forma notável dentro desse conjunto. Preocupou-se muito em escolher diferentes regiões do mundo. Cada livro descreve mais ou menos uma viagem, um trajeto que permite mostrar essa ou aquela região do mundo. Empenhou-se em sempre mudar esses itinerários e também em mudar os temas e formas que utilizava.
Há um número de temas bastante importantes que encontramos, sobretudo nos primeiros livros, como o da busca do pai ou de algum membro da família. A busca do pai, da mãe ou da criança perdida. Outro tema caro a Verne é o de Robinson Crusoé: um personagem ou um grupo se encontra perdido numa ilha deserta e é obrigado a refazer, em parte, a história da civilização.

Folha - O sr. foi influenciado por escritores como Marcel Proust, James Joyce ou Ezra Pound mas também por Verne. Onde podemos encontrá-lo em sua obra?
Butor -
Verne foi tema de alguns de meus ensaios. Há também um de meus livros que estuda um pouco o meio ao qual ele se dirigia. Trata-se do último romance que escrevi, já há bastante tempo, chamado "Degrés" [Graus], que descreve o funcionamento de uma escola. É um pouco datado, pois é um colégio dos anos 50. Mas isso tem a ver com Verne. Ele escrevia para jovens dessa idade, inseridos nesse sistema educacional, principalmente para melhorar o sistema e tornar as coisas mais interessantes para os alunos.
Em alguns de meus livros, utilizei citações suas em meio a citações de outros escritores. Muitos de meus livros são como um "patchwork", mosaicos de mármores de diferentes cores. Verne foi útil para me dar uma cor particular.

Folha - Há em comum em vocês dois um interesse particular pelos EUA.
Butor -
Sempre fui e ainda sou bastante interessado pelos EUA, país que admiro e do qual também desconfio muito. Com Verne era a mesma coisa. É uma das regiões do planeta à qual retorna com mais freqüência. E é o único país além-mar no qual realmente esteve. Ele viajou com o Great Eastern e foi a Nova York e às cataratas do Niágara. Isso é bastante significativo. Verne não era em si um grande viajante. Era marinheiro, teve barcos e fez périplos ao longo da costa da França, mas a única vez em que deixou a Europa foi para ir aos EUA.
Há um romance muito curioso, que se chama "O Testamento de um Excêntrico". É mais uma forma de descrição dos EUA por meio da transformação de um jogo, bastante antigo, no qual aparece um número de mitos importantes. Isso permite a ele ligar a exploração dos EUA à noção de acaso.

Folha - O sr. define Verne como bastante ambíguo em relação aos EUA: ele é, ao mesmo tempo, admirado e desconfiado em relação ao potencial imperialista do país?
Butor -
Sim, os dois ao mesmo tempo. Os EUA, para ele, são uma das regiões na qual se observam melhor os avanços e o desenvolvimento do progresso técnico -onde e se vê melhor o que há de bom e de perigoso nisso.

Folha - Ele é fascinado pela técnica, mas, ao mesmo tempo, demonstra um profundo ceticismo em relação às suas vantagens. Como o sr. vê isso?
Butor -
Há em Verne uma espécie de evangelho do progresso, que expressou melhor do que qualquer outro escritor de sua época. Mas, ao mesmo tempo, há uma desconfiança em relação ao progresso técnico, uma espécie de alerta.
Há nele um grande sentimento da fragilidade do meio terrestre. Podemos dizer, nesse sentido, que é um precursor dos ecologistas.

Folha - O sr. observa que alusões a Verne podem ser encontradas em diferentes escritores do século 20. Poderia dar exemplos?
Butor -
Há muitos escritores do século 20 que leram Verne quando eram jovens e que foram marcados por essas leituras, como Proust, Claudel e muitos outros, como Sartre, em "As Palavras". É curioso ver que grandes escritores tinham a coragem de dizer que admiravam Verne, enquanto oficialmente havia desconfiança em relação ao "escritor da juventude".

Folha - Onde está a modernidade na obra de Verne, que o sr. diz ver em Balzac e Zola?
Butor -
Balzac é, para mim, muito rico e contemporâneo, e ainda há muita coisa a ser descoberta nele. Também admiro muito Zola, trata-se de um grande escritor. Verne é moderno de uma outra forma. É moderno por seu interesse pela técnica, que também existe nos outros, mas que nele é muito mais evidente.

Folha - O sr. aponta o desprezo de Verne pela política mas também sublinha seu posicionamento ao lado dos rebeldes e desfavorecidos. Na obra dele, a atitude reivindicatória e revolucionária é uma constante?
Butor -
Em sua obra, ele está sempre ao lado dos rebeldes, mas, em sua vida, tinha necessidade de uma certa tranqüilidade. Fez política, pois integrou o conselho municipal da cidade de Amiens, onde morava. Mas, na vida pública, não era um revolucionário. Tinha vontade de participar de uma administração tranqüila, pois queria continuar sua obra da forma mais tranqüila possível. Há uma diferença entre o que encontramos na sua obra, aquilo em que sua obra nos faz pensar, e o engajamento político que possa ter tido o escritor.
Balzac, por exemplo, tinha um engajamento político muito forte. Era um monarquista, queria a volta do Antigo Regime, sempre se colocou desse lado em sua vida pública. Mas, nos romances, é constantemente muito reivindicativo e faz uma crítica considerável justamente desse Antigo Regime.
Já Verne tem uma atitude pública, oficial, que, em grande parte, é uma proteção, uma couraça, para que seus sonhos e reivindicações pudessem se exprimir no interior de seus livros. Por vezes, seu editor, Hetzel, percebe isso e intervém, censurando. Mas o gênio de Verne encontra meios de driblar essa censura.

Folha - O sr. poderia dar um exemplo de um desses "dribles"?
Butor -
Por exemplo, no momento do caso Dreyfus [um caso de perseguição a um oficial judeu do Exército francês], Verne é solicitado a dizer o que pensa. Ele diz "não tenho nada a ver com isso. Dreyfus foi julgado, e não vale a pena voltar a falar desse assunto". Zola, no mesmo momento, escreve "Eu Acuso". As atitudes são completamente diferentes.
Mas, nos últimos livros, há um tema que é muito importante, que é o do erro judiciário. Em alguns textos, somente após a morte do personagem será reconhecida sua inocência e o fato de ter sido acusado injustamente e também serão reveladas as maquinações de seus perseguidores, que mascararam a verdade.

Folha - Verne é também considerado um precursor da ficção científica.
Butor -
Certamente. Mas tudo depende da definição exata que damos de ficção científica. Se esta é uma literatura romanesca que toma como ponto de partida noções ou hipóteses científicas, evidentemente que ele é o seu precursor.

Folha - Além da reconhecida influência de Edgar Allan Poe sobre a obra Verne, que outros escritores tiveram importância para ele?
Butor -
Defoe também, mas somente por meio de "Robinson Crusoé" e na parte da ilha deserta. Outro escritor que teve importância para ele, como para muitos outros escritores do século 19, foi Fenimore Cooper, autor de "O Último dos Moicanos". Além desses, também todos os grandes escritores da primeira metade do século 19, como Balzac ou Alexandre Dumas.


Texto Anterior: + teatro: Tragédia das pequenas coisas
Próximo Texto: Butor é expoente do "nouveau roman"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.