|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
O escritor Michel Butor fala da influência de Júlio Verne, que morreu há cem anos, sua relação dúbia com o progresso
e a guinada da crítica, que passou a valorizar suas obras, antes consideradas apenas "literatura para a juventude"
Quero ser grande
FERNANDO EICHENBERG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O
escritor francês Michel
Butor foi um dos primeiros a escrever um artigo de
análise da obra de Júlio
Verne, em 1949, quando o autor de
"Viagens Extraordinárias", especialmente lembrado neste ano pelo centenário de sua morte, ainda não havia alcançado notoriedade mundial.
Viajante incansável, leitor voraz e
"possuído pelo demônio da escrita",
como definiu num trecho autobiográfico, Butor proclama sua admiração por Júlio Verne, um dos escritores de que reivindica influência e que
se tornou, ao longo dos anos, seu objeto de estudo.
Há em Verne um grande sentimento da fragilidade
do meio terrestre;
nesse sentido, é
um precursor
dos ecologistas
|
Ele descobriu o autor de "Vinte
Mil Léguas Submarinas" (Ediouro)
e "Volta ao Mundo em 80 Dias Dias"
(Ática) ainda adolescente, na biblioteca de sua avó. "Era algo muito surpreendente para mim; eu acompanhava os personagens nas suas descobertas do mundo", disse em entrevista à Folha, de sua casa em Lucinges, pequena cidade francesa na
fronteira com a Suíça.
Folha - Do seu primeiro artigo sobre
Júlio Verne até hoje, o que mudou na
percepção da obra dele?
Michel Butor - Ele era considerado
um escritor para a juventude, não se
dava atenção suficiente às suas qualidades literárias, e tentei mostrar
que era um escritor notável. Hoje, fico muito feliz em ver que é estudado
com tanta paixão por tantas pessoas.
O que disse há mais de 50 anos encontrou um eco, há novas edições
interessantes, pesquisadores sobre
Verne e cada vez mais nos damos
conta de que se trata de um escritor
apaixonante. Sua obra é impressionante, com quantidades de mistérios que estudamos e esclarecemos
pouco a pouco.
Folha - O sr. menciona que muitos livros adotados pelos jovens não foram
originalmente escritos com esse fim,
como "Robinson Crusoé", de Daniel
Defoe, e "As Viagens de Gulliver", de
Jonathan Swift. E no caso de Verne?
Butor - Verne escreveu para os jovens, o que, realmente, não foi o caso
de Defoe e Swift. Foram os pais e
professores que pensaram que seria
interessante indicar esses livros para
crianças e adolescentes. Já todos os
grandes romances de Verne foram
lançados numa publicação destinada à juventude, chamada "Magasin
d'Éducation et Récreation" [Revista
de Educação e Recreação]. Isso implicava um certo número de censuras e ele não podia dizer tudo o que
quisesse. Seu editor, Hetzel, vigiava-o de muito perto.
Temos os manuscritos de Verne,
com anotações freqüentes de Hetzel,
que dizia "você não pode escrever isso por causa de nosso público, jovens e crianças, e dos pais que acompanham a leitura de seus filhos".
Mas isso não o impediu de conseguir dizer muitas coisas usando diferentes caminhos.
Folha - Hetzel, inclusive, o obrigou a
alongar certos romances.
Butor - Ele era obrigado a publicar
nessa revista de educação dois romances por ano, o que fez com que,
ao final, publicasse 62 romances. Era
algo enorme. Ele não descansava.
Pode-se compreender que, após um
certo tempo, houvesse um pouco de
nariz-de-cera.
Mas, mesmo assim, ele se renovou
de forma notável dentro desse conjunto. Preocupou-se muito em escolher diferentes regiões do mundo.
Cada livro descreve mais ou menos
uma viagem, um trajeto que permite
mostrar essa ou aquela região do
mundo. Empenhou-se em sempre
mudar esses itinerários e também
em mudar os temas e formas que
utilizava.
Há um número de temas bastante
importantes que encontramos, sobretudo nos primeiros livros, como
o da busca do pai ou de algum membro da família. A busca do pai, da
mãe ou da criança perdida. Outro tema caro a Verne é o de Robinson
Crusoé: um personagem ou um grupo se encontra perdido numa ilha
deserta e é obrigado a refazer, em
parte, a história da civilização.
Folha - O sr. foi influenciado por escritores como Marcel Proust, James
Joyce ou Ezra Pound mas também por
Verne. Onde podemos encontrá-lo em
sua obra?
Butor - Verne foi tema de alguns de
meus ensaios. Há também um de
meus livros que estuda um pouco o
meio ao qual ele se dirigia. Trata-se
do último romance que escrevi, já há
bastante tempo, chamado "Degrés"
[Graus], que descreve o funcionamento de uma escola. É um pouco
datado, pois é um colégio dos anos
50. Mas isso tem a ver com Verne.
Ele escrevia para jovens dessa idade,
inseridos nesse sistema educacional,
principalmente para melhorar o sistema e tornar as coisas mais interessantes para os alunos.
Em alguns de meus livros, utilizei
citações suas em meio a citações de
outros escritores. Muitos de meus livros são como um "patchwork",
mosaicos de mármores de diferentes
cores. Verne foi útil para me dar
uma cor particular.
Folha - Há em comum em vocês dois
um interesse particular pelos EUA.
Butor - Sempre fui e ainda sou bastante interessado pelos EUA, país
que admiro e do qual também desconfio muito. Com Verne era a mesma coisa. É uma das regiões do planeta à qual retorna com mais freqüência. E é o único país além-mar
no qual realmente esteve. Ele viajou
com o Great Eastern e foi a Nova
York e às cataratas do Niágara. Isso é
bastante significativo. Verne não era
em si um grande viajante. Era marinheiro, teve barcos e fez périplos ao
longo da costa da França, mas a única vez em que deixou a Europa foi
para ir aos EUA.
Há um romance muito curioso,
que se chama "O Testamento de um
Excêntrico". É mais uma forma de
descrição dos EUA por meio da
transformação de um jogo, bastante
antigo, no qual aparece um número
de mitos importantes. Isso permite a
ele ligar a exploração dos EUA à noção de acaso.
Folha - O sr. define Verne como bastante ambíguo em relação aos EUA:
ele é, ao mesmo tempo, admirado e
desconfiado em relação ao potencial
imperialista do país?
Butor - Sim, os dois ao mesmo tempo. Os EUA, para ele, são uma das
regiões na qual se observam melhor
os avanços e o desenvolvimento do
progresso técnico -onde e se vê
melhor o que há de bom e de perigoso nisso.
Folha - Ele é fascinado pela técnica,
mas, ao mesmo tempo, demonstra
um profundo ceticismo em relação às
suas vantagens. Como o sr. vê isso?
Butor - Há em Verne uma espécie
de evangelho do progresso, que expressou melhor do que qualquer outro escritor de sua época. Mas, ao
mesmo tempo, há uma desconfiança em relação ao progresso técnico,
uma espécie de alerta.
Há nele um grande sentimento da
fragilidade do meio terrestre. Podemos dizer, nesse sentido, que é um
precursor dos ecologistas.
Folha - O sr. observa que alusões a
Verne podem ser encontradas em diferentes escritores do século 20. Poderia dar exemplos?
Butor - Há muitos escritores do século
20 que leram Verne quando eram jovens e
que foram marcados por essas leituras, como Proust, Claudel e muitos outros, como
Sartre, em "As Palavras". É curioso ver que
grandes escritores tinham a coragem de
dizer que admiravam Verne, enquanto oficialmente havia desconfiança em relação
ao "escritor da juventude".
Folha - Onde está a modernidade na
obra de Verne, que o sr. diz ver em
Balzac e Zola?
Butor - Balzac é, para mim, muito
rico e contemporâneo, e ainda há
muita coisa a ser descoberta nele.
Também admiro muito Zola, trata-se de um grande escritor. Verne é
moderno de uma outra forma. É
moderno por seu interesse pela técnica, que também existe nos outros,
mas que nele é muito mais evidente.
Folha - O sr. aponta o desprezo de
Verne pela política mas também sublinha seu posicionamento ao lado
dos rebeldes e desfavorecidos. Na
obra dele, a atitude reivindicatória e
revolucionária é uma constante?
Butor - Em sua obra, ele está sempre ao lado dos rebeldes, mas, em
sua vida, tinha necessidade de uma
certa tranqüilidade. Fez política,
pois integrou o conselho municipal
da cidade de Amiens, onde morava.
Mas, na vida pública, não era um revolucionário. Tinha vontade de participar de uma administração tranqüila, pois queria continuar sua obra
da forma mais tranqüila possível. Há
uma diferença entre o que encontramos na sua obra, aquilo em que sua
obra nos faz pensar, e o engajamento
político que possa ter tido o escritor.
Balzac, por exemplo, tinha um engajamento político muito forte. Era
um monarquista, queria a volta do
Antigo Regime, sempre se colocou
desse lado em sua vida pública. Mas,
nos romances, é constantemente
muito reivindicativo e faz uma crítica considerável justamente desse
Antigo Regime.
Já Verne tem uma atitude pública,
oficial, que, em grande parte, é uma
proteção, uma couraça, para que
seus sonhos e reivindicações pudessem se exprimir no interior de seus
livros. Por vezes, seu editor, Hetzel,
percebe isso e intervém, censurando. Mas o gênio de Verne encontra
meios de driblar essa censura.
Folha - O sr. poderia dar um exemplo de um desses "dribles"?
Butor - Por exemplo, no momento
do caso Dreyfus [um caso de perseguição a um oficial judeu do Exército francês], Verne é solicitado a dizer
o que pensa. Ele diz "não tenho nada
a ver com isso. Dreyfus foi julgado, e
não vale a pena voltar a falar desse
assunto". Zola, no mesmo momento, escreve "Eu Acuso". As atitudes
são completamente diferentes.
Mas, nos últimos livros, há um tema que é muito importante, que é o
do erro judiciário. Em alguns textos,
somente após a morte do personagem será reconhecida sua inocência
e o fato de ter sido acusado injustamente e também serão reveladas as
maquinações de seus perseguidores,
que mascararam a verdade.
Folha - Verne é também considerado um precursor da ficção científica.
Butor - Certamente. Mas tudo depende da definição exata que damos
de ficção científica. Se esta é uma literatura romanesca que toma como
ponto de partida noções ou hipóteses científicas, evidentemente que
ele é o seu precursor.
Folha - Além da reconhecida influência de Edgar Allan Poe sobre a
obra Verne, que outros escritores tiveram importância para ele?
Butor - Defoe também, mas somente por meio de "Robinson Crusoé" e na parte da ilha deserta. Outro
escritor que teve importância para
ele, como para muitos outros escritores do século 19, foi Fenimore
Cooper, autor de "O Último dos
Moicanos". Além desses, também
todos os grandes escritores da primeira metade do século 19, como
Balzac ou Alexandre Dumas.
Texto Anterior: + teatro: Tragédia das pequenas coisas Próximo Texto: Butor é expoente do "nouveau roman" Índice
|