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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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EM "AVENTURAS DE UM MENINO DE SUBÚRBIO", RECÉM-PUBLICADA NA INGLATERRA, O DIRETOR JOHN BOORMAN INCORPORA O MITO DO REI ARTUR AO RELEMBRAR A INFÂNCIA POBRE PASSADA NA LONDRES DOS ANOS 40 E 50 E A INFLUÊNCIA DO CATOLICISMO

por David Lodge

EM BUSCA DO SANTO GRAAL

Tenho um motivo pessoal para me sentir grato a John Boorman (1933). Em 1981, eu fazia anotações para um romance cômico sobre acadêmicos e escritores que percorrem o mundo de avião entre uma conferência internacional e outra. Não me faltavam episódios divertidos, situações e personagens representativos típicos, mas durante muito tempo me vi num impasse porque me faltava uma estrutura narrativa que pudesse conter a todos. Anotei em meu caderno a pergunta: "Será que algum mito daria conta do recado, por exemplo o de Ulisses? Ou a lenda do Santo Graal?". Mas não fiz nada com a idéia até que, algum tempo mais tarde, assisti por acaso a "Excalibur", de John Boorman, e me encantei por completo com a maneira exuberante como o filme narra a história arturiana. Isso me levou a refletir sobre as correspondências entre a lenda do Santo Graal, conforme ela aparece nos romances da cavalaria, e uma história moderna sobre professores universitários e escritores que competem entre si por glória profissional e conquistas amorosas, em diversos ambientes e paisagens exóticos. Comecei a escrever "Small World". Há muitos prazeres a serem derivados da leitura de "Adventures of a Suburban Boy" [Aventuras de um Menino de Subúrbio, ed. Faber and Faber, 314 págs., 20 libras], a excelente autobiografia de John Boorman, mas a revelação mais interessante feita no livro é a de que o mito incorporado por Mallory em "The Matter of Britain" [expressão usada para designar as lendas de Artur, Camelot e do Santo Graal] e reinterpretado em tempos modernos por Jessie Weston, T.S. Eliot e John Cowper Powys, entre outros, tem correspondência na vida e na psique do próprio Boorman, além de ser a chave para a compreensão de sua obra. O título do livro, enganosamente ameno, encerra um significado heróico codificado: a busca pelo Graal cinematográfico, o filme transcendental, foi a aventura serial que permitiu a Boorman fugir do deserto espiritual dos subúrbios de Surrey. A primeira casa em que o cineasta viveu quando criança foi uma casa "semi-detached" -ou geminada de um só lado-, na avenida Rosehill, em Carshalton, na periferia de Londres -uma entre 4 milhões de casas construídas no período do entreguerras. "Quatro milhões de casas...", pergunta o diretor, retoricamente. "Alguma outra vez já se viu uma revolução social tão sorrateira quanto a ascensão dos subúrbios feitos de sobrados "semi-detached'?" Os acadêmicos, os políticos e as classes altas ou não se deram conta de nada ou não souberam interpretar o que aconteceu. Enquanto se preocupavam com o socialismo e o fascismo, o cuco já tinha botado ovos em seus ninhos, e desses ovos acabaria nascendo Margaret Thatcher."

Avenida simulada
Quando Boorman recriou sua infância em "Esperança e Glória" ["Hope and Glory"], foi obrigado a construir uma avenida Rosehill simulada numa pista de pouso abandonada, porque as ruas ladeadas pelas casinhas geminadas do entreguerras tinham sido irremediavelmente aburguesadas -enfeitadas com antenas de TV, parabólicas, varandinhas ladrilhadas e outros apetrechos que acompanharam a prosperidade do pós-guerra.
A família Boorman tinha sido próspera no passado. O avô paterno de John Boorman foi um inventor e empresário alegremente excêntrico -suficientemente bem de vida para que seus filhos estudassem numa das escolas particulares inglesas de grande prestígio-, mas que perdeu todo seu dinheiro pouco depois da Primeira Guerra Mundial. O pai de John, George, voltou da Índia, onde fizera seu serviço militar, e encontrou a família vivendo em situação penosamente restrita, sendo forçado a se empregar num cargo burocrático que odiava.
Ele e seu amigo Herbert eram igualmente apaixonados por Ivy, a bela filha do dono de um bar em Wimbledon. George foi o primeiro a pedi-la em casamento e conseguiu seu intento, mas Ivy sempre tivera uma preferência secreta por Herbert, e, à medida que seu casamento foi perdendo a alegria, restrito pelos limites da avenida Rosehill, ela passou a buscar consolo junto de Herbert, com frequência cada vez maior. Desse modo, o triângulo amoroso de Artur, Guinevere e Lancelot foi recriado na "Metroland". Ainda jovem, John percebia o que estava acontecendo e se sentia culpado, cúmplice na traição de seu pai -mas George, amargurado pela rotina enfadonha de sua vida, não inspirava amor filial. Às vezes John, de maneira desleal, desejava que seu pai tivesse sido Herbert. O início da Segunda Guerra Mundial proporcionou a todos uma saída daquela existência insípida. "Como era maravilhosa a guerra!... Ela nos proporcionou aquela coisa essencial que nos fazia falta: um mito. Um mito nutrido pelo rádio, os jornais, o cinema, um mito com o qual nós, o povo das "semi-detached", podíamos pular por cima de nossos portões, passar facilmente por cima de nossos constrangimentos, caindo diretamente nos braços do patriotismo." Apesar de ter 40 anos, George mal podia esperar para se alistar -mas, ironicamente, como muitos outros recrutas, acabou sendo aquartelado em segurança na zona rural da Inglaterra, enquanto as bombas caíam sobre a avenida Rosehill. "Nós, crianças, passeávamos pelos escombros, víamos as casas geminadas abertas, como se fossem casinhas de boneca, sua preciosa privacidade vergonhosamente exposta. Nós nos orgulhávamos de nossas coleções de fragmentos de bomba", conta. O prazer e o senso de maravilhamento que garotos jovens, não incomodados pelas preocupações adultas, podiam derivar da "Blitzkrieg" alemã foram vividamente evocados em um dos melhores trabalhos de Boorman, "Esperança e Glória", mas a cena mais memorável do filme retrata um momento posterior da guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, para escapar da ameaça dos zepelins alemães, Ivy e suas irmãs tinham fugido para o vilarejo de Shepperton, às margens do Tâmisa, onde seu pai tinha uma casa de campo. Agora, movida por alguma espécie de impulso atávico, ela levou seus filhos de volta a Shepperton (que ainda era um povoado simples e atrasado) para garantir sua segurança, e foi assim que teve início o romance de John Boorman com os rios, dos quais o Tâmisa era o arquétipo -algo que perduraria por toda sua vida.


"Como era maravilhosa a guerra!... Ela nos proporcionou aquela coisa essencial que nos fazia falta: um mito; um mito nutrido pelo rádio, os jornais, o cinema"


Castigo corporal
O garoto nadava, pescava e passeava de bote. Certa vez, caiu numa eclusa quando o canal de drenagem estava aberto, escapando por pouco de morrer afogado. Ele frequentava a escola local da Igreja Anglicana e cantava no coral da paróquia, mas, quando foi reprovado num exame, sua mãe o matriculou numa escola católica particular da ordem salesiana, onde ele pôde conhecer pessoalmente a cultura do castigo corporal, que era uma triste característica do ensino católico da época. "Os monges e padres mais jovens pareciam viver tensos, e a única forma que tinham de liberar essa tensão era infligir dor" (posso confirmar pessoalmente a precisão dessa descrição). Nenhuma tentativa foi feita de convertê-lo ao catolicismo, mas um colega devoto, embora pouco informado sobre a teologia relevante, fez questão de batizá-lo secretamente no banheiro da escola, puxando a descarga e captando a água com a mão antes que ela se poluísse no vaso sanitário. "De certo modo, posso dizer que me tornei um católico de armário", diz Boorman. É possível que essa educação católica tenha realmente proporcionado a Boorman uma afinidade com o ritual e o simbolismo, algo mais católico do que protestante, afinidade que deixou sua marca em seus filmes. Perto do final da guerra, a escola foi destruída por uma bomba voadora justamente quando o ano escolar estava para começar. É com esse episódio que Boorman encerra "Esperança e Glória". Alunos, vestindo o blazer do uniforme escolar, comemoram o desastre no próprio local onde aconteceu, e o diretor comenta, sem ser visto: "Em toda a minha vida, nada se equiparou à alegria perfeita daquele momento em que minha escola estava destruída, em ruínas, e o rio me acenava com a promessa de dias roubados". O idílio que se seguiu à destruição da escola foi perturbado quando Boorman matou um martim-pescador com um tiro de espingarda de ar comprimido e se arrependeu do que fizera. Impondo uma interpretação adulta aos fatos, ele comenta: "Eu me tornei o "rei pescador", cuja ferida não iria sarar até que o Graal fosse encontrado e a harmonia fosse restaurada". Quando a residência da família (não coberta por seguro) queimou num incêndio, pouco mais tarde, Boorman interpretou o fato como castigo pelo pecado que cometera e também por sua cumplicidade na infidelidade de sua mãe.

Mergulho ritual no Tâmisa
Se o relacionamento desta com Herbert se consumou ou não é algo que o livro não deixa claro, mas, quando Herbert adoeceu mortalmente, Ivy cuidou dele com dedicação e não tentou esconder de seu marido seu amor por ele. Seu filho adolescente se purificou com um mergulho ritual no Tâmisa, acreditando que, se conseguisse nadar sem provocar uma única ondulação na superfície da água, poderia recobrar o estado de graça que perdera.
Um professor salesiano de espírito independente, o frei John McGuire, incentivou Boorman a pensar que poderia se tornar escritor, mas a situação econômica de sua família o impediu de sequer pensar em estudar na universidade. Ele deixou o colégio e passou a ganhar a vida com dificuldade numa empresa de lavagem porta a porta que abriu com um amigo, ao mesmo tempo lendo promiscuamente e indo ao cinema constantemente, enquanto aguardava ser convocado para o serviço militar. Escreveu artigos especiais, alguns dos quais foram publicados pelo "Manchester Guardian", e fez algumas transmissões radiofônicas.
Ao lado de outro amigo, Barrie, formou um triângulo no estilo "Jules et Jim" com uma garota chamada Pat. Um dia, na ausência de Barrie, ele e Pat cederam ao desejo sexual, e ambos confessaram o que haviam feito a Barrie -que ficou devastado, mas apenas por algumas horas, depois das quais declarou ter percebido o quão superficial e banal era Pat. Era mais uma encenação, dessa vez cômica, do triângulo arturiano.

Onde encomendar
"Adventures of a Suburban Boy", de John Borrman, pode ser encomendado, em SP, na Fnac (tel. 0/ xx/11/3097-0022) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/2533-2237).

David Lodge é escritor inglês, autor de "Fora do Abrigo", "Pense..." (ed. Best Seller) e "Terapia" (ed. Scipione). Este texto foi publicado originalmente no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.


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