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O suplício de Papai Noel
Inédito em livro no Brasil e previsto para ser lançado
na 2ª semana de dezembro pela Cosac Naify, ensaio de 1952
discute a criação do mito moderno do Natal
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Há cerca de três
anos, ou seja, desde que a atividade
econômica voltou
quase ao normal, a
comemoração do Natal assumiu na França uma dimensão
desconhecida antes da [Segunda] Guerra.
Esse desenvolvimento, tanto
por sua importância material
quanto pelas formas em que se
apresenta, certamente é resultado direto da influência e do
prestígio dos Estados Unidos.
Assim, vimos surgir os grandes pinheiros, montados nos
cruzamentos ou nas avenidas
principais, iluminados à noite;
os papéis decorativos para embrulhar os presentes de Natal;
os cartões de boas-festas e o
costume de expô-los em cima
da lareira dos destinatários na
semana fatídica; as campanhas
do Exército da Salvação erguendo nas ruas e nas praças
seus caldeirões como se fossem
potinhos de pedintes; por fim,
as pessoas vestidas de Papai
Noel para receber os pedidos
das crianças nas grandes lojas
de departamentos.
Todos esses costumes que,
poucos anos atrás, pareciam
pueris e barrocos aos franceses
que visitassem os EUA, como
um dos sinais mais evidentes
da profunda incompatibilidade
entre as duas mentalidades,
agora se implantaram e se aclimataram na França com uma
facilidade e uma amplitude que
se tornam assunto a ser estudado pelo historiador das civilizações.
Nesse campo, como em outros, estamos assistindo a uma
vasta experiência de difusão,
não muito diferente daqueles
fenômenos arcaicos que estávamos acostumados a estudar
nos exemplos distantes do
"briquet à piston" ou da "pirogue à balancier".
Mas é mais fácil e ao mesmo
tempo mais difícil estudar fatos que se desenrolam sob nossos olhos, tendo como palco
nossa própria sociedade.
Empréstimo
Mais fácil, porque a continuidade da experiência está salvaguardada, com todos os seus
momentos e cada uma de suas
nuanças; e também mais difícil,
porque são nessas raríssimas
ocasiões que percebemos a extrema complexidade das transformações sociais, mesmo as
mais tênues; e porque as razões
aparentes que atribuímos aos
acontecimentos nos quais somos atores são muito diferentes das causas reais que neles
nos determinam algum papel.
Assim, seria simplista demais explicar o desenvolvimento da comemoração do Natal na França apenas pela influência dos EUA.
O empréstimo é inegável,
mas não traz consigo razões suficientes para explicar o fenômeno. Enumeremos brevemente as mais evidentes: há
muitos americanos na França,
os quais comemoram o Natal à
sua maneira; o cinema, os "digests", os romances e também
algumas reportagens da grande
imprensa tornaram conhecidos os costumes americanos, e
estes gozam do prestígio atribuído à potência militar e econômica dos EUA.
Tampouco se exclui a conjectura de que o Plano Marshall
tenha favorecido, direta ou indiretamente, a importação de
algumas mercadorias ligadas
ao rito natalino.
Mas tudo isso não basta para
explicar o fenômeno.
Costumes importados dos
EUA impõem-se a camadas da
população que lhes desconhecem a origem; os meios operários, onde a influência comunista poderia desacreditar tudo
o que traz a marca "made in
USA", os adotam com a mesma
disposição dos demais.
Assim, em vez de uma difusão simples, cabe invocar aquele processo tão importante que
Kroeber, o primeiro a identificá-lo, chamou de "difusão por
estímulo" ("stimulus diffusion"): o costume importado
não é assimilado, mas funciona
como catalisador, ou seja, provoca com sua presença o surgimento de um uso semelhante
que já estava potencialmente
presente no meio secundário.
Ilustremos esse ponto com
um exemplo diretamente relacionado ao nosso tema.
O industrial fabricante de papel que vai aos EUA, a convite
dos colegas americanos ou como membro de uma missão
econômica, constata que lá fabricam papéis especiais para os
pacotes de Natal; ele adota a
idéia, e temos aí um fenômeno
de difusão.
Exigência estética
A dona-de-casa parisiense
que vai à papelaria do bairro
comprar o papel necessário para embrulhar seus presentes vê
na vitrine papéis mais bonitos e
de melhor acabamento do que
aqueles que costumava usar;
ela ignora totalmente os costumes americanos, mas esse papel satisfaz uma exigência estética e exprime uma disposição
afetiva que já existia, só não dispunha de meios de expressão.
Ao escolhê-lo, a dona-de-casa não adota diretamente (como o fabricante) um costume
estrangeiro, mas esse costume,
tão logo é reconhecido, estimula nela o nascimento de um costume igual. Em segundo lugar,
não se pode esquecer que a comemoração natalina, já antes da guerra, estava em processo
ascendente na França e em toda a Europa.
Isso estava relacionado, inicialmente, à melhoria progressiva do nível de vida, mas também a motivos mais sutis.
Com as características que
conhecemos, o Natal é uma festa essencialmente moderna,
apesar dos múltiplos traços arcaizantes. O uso do visco não é,
pelo menos em primeira instância, uma herança druídica,
pois parece ter voltado à moda
na Idade Média.
Árvore de Natal
O pinheiro de Natal não é
mencionado em parte nenhuma antes de certos textos alemães do século 17; ele segue para a Inglaterra no século 18 e
chega à França apenas no século 19. O dicionário "Littré" parece conhecê-lo pouco ou sob
forma muito diferente da nossa, pois o define (no verbete
"Natal") com a designação:
"Em alguns países, de um ramo
de pinheiro ou de azevinho
com diferentes enfeites, guarnecido principalmente de balas
e brinquedos para serem dados
às crianças, que fazem uma tremenda festa".
A variedade de nomes dados
ao personagem incumbido de
distribuir os brinquedos às
crianças -Papai Noel, São Nicolau, Santa Claus- também
mostra que ele é resultado de
um fenômeno de convergência,
e não um protótipo antigo conservado por toda parte.
O desenvolvimento moderno, porém, não é uma invenção:
ele se limita a recompor peças e
fragmentos de uma antiga comemoração, cuja importância
nunca foi totalmente esquecida. Se a árvore de Natal, para o
"Littré", é quase uma instituição exótica, Cheruel nota de
maneira significativa, em seu
"Dicionário Histórico das Instituições": "O Natal [...] foi, durante vários séculos e até uma
época recente, a ocasião de festas em família"
Assim, estamos diante de um
ritual cuja importância flutuou
bastante ao longo da história;
teve apogeus e declínios. A forma americana é apenas sua encarnação mais moderna.
Aliás, essas rápidas indicações bastam para mostrar que,
diante desse tipo de problema,
é preciso desconfiar das explicações demasiado fáceis que
apelam automaticamente aos
"vestígios" e às "sobrevivências". Se nunca tivesse existido
um culto às árvores nos tempos
pré-históricos, que se prolongou em várias tradições folclóricas, a Europa moderna certamente não teria "inventado" a
árvore de Natal.
No entanto -como mostramos mais acima-, ela é uma invenção recente.
Essa invenção, porém, não
nasceu do nada. Pois outros
costumes medievais são plenamente comprovados: a chamada lenha de Natal (que inspirou
um bolo natalino em Paris), um
tronco espesso para arder a
noite toda; os círios de Natal,
com uma dimensão própria para a mesma finalidade; a decoração das casas (desde as Saturnais romanas, sobre as quais
voltaremos a falar) com ramos
verdes: hera, azevinho, pinheiro; por fim, e sem nenhuma relação com o Natal, os romances
da Távola Redonda mencionam uma árvore sobrenatural
recoberta de luzes.
Solução sincrética
Em tal contexto, a árvore de
Natal surge como uma solução
sincrética, isto é, concentra
num só objeto exigências até
então dispersas: árvore mágica,
fogo, luz duradoura, verde persistente. Inversamente, Papai
Noel, em sua forma atual, é
uma criação moderna, e ainda
mais recente é a crença que situa sua morada na Groenlândia, possessão dinamarquesa (o
que obriga o país a manter uma
agência de correio especial para responder às cartas de crianças do mundo inteiro), e o mostra viajando em um trenó puxado por renas.
Consta que esse aspecto da
lenda se desenvolveu principalmente na última guerra, devido à presença de tropas americanas na Islândia e na Groenlândia.
E, no entanto, as renas não
estão ali por acaso, visto que
existem documentos renascentistas ingleses mencionando
troféus de renas durante as
danças de Natal, antes de qualquer crença em Papai Noel, e
quem dirá da formação de sua
lenda.
Assim, fundem-se e refundem-se elementos muito antigos, introduzem-se novos, encontram-se fórmulas inéditas
para perpetuar, transformar ou
reviver usos de velha data. Não
há nada de especificamente novo -sem jogo de palavras- no
renascimento do Natal.
Por que, então, ele desperta
tanta emoção e por que é em
torno da figura de Papai Noel
que se concentra a animosidade de algumas pessoas?
Trecho de "O Suplício de Papai Noel" (ed. Cosac
Naify, 56 págs., R$ 25).
Tradução de DENISE BOTTMANN .
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