São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O suplício de Papai Noel

Inédito em livro no Brasil e previsto para ser lançado na 2ª semana de dezembro pela Cosac Naify, ensaio de 1952 discute a criação do mito moderno do Natal

CLAUDE LÉVI-STRAUSS

Há cerca de três anos, ou seja, desde que a atividade econômica voltou quase ao normal, a comemoração do Natal assumiu na França uma dimensão desconhecida antes da [Segunda] Guerra.
Esse desenvolvimento, tanto por sua importância material quanto pelas formas em que se apresenta, certamente é resultado direto da influência e do prestígio dos Estados Unidos.
Assim, vimos surgir os grandes pinheiros, montados nos cruzamentos ou nas avenidas principais, iluminados à noite; os papéis decorativos para embrulhar os presentes de Natal; os cartões de boas-festas e o costume de expô-los em cima da lareira dos destinatários na semana fatídica; as campanhas do Exército da Salvação erguendo nas ruas e nas praças seus caldeirões como se fossem potinhos de pedintes; por fim, as pessoas vestidas de Papai Noel para receber os pedidos das crianças nas grandes lojas de departamentos.
Todos esses costumes que, poucos anos atrás, pareciam pueris e barrocos aos franceses que visitassem os EUA, como um dos sinais mais evidentes da profunda incompatibilidade entre as duas mentalidades, agora se implantaram e se aclimataram na França com uma facilidade e uma amplitude que se tornam assunto a ser estudado pelo historiador das civilizações.
Nesse campo, como em outros, estamos assistindo a uma vasta experiência de difusão, não muito diferente daqueles fenômenos arcaicos que estávamos acostumados a estudar nos exemplos distantes do "briquet à piston" ou da "pirogue à balancier".
Mas é mais fácil e ao mesmo tempo mais difícil estudar fatos que se desenrolam sob nossos olhos, tendo como palco nossa própria sociedade.

Empréstimo
Mais fácil, porque a continuidade da experiência está salvaguardada, com todos os seus momentos e cada uma de suas nuanças; e também mais difícil, porque são nessas raríssimas ocasiões que percebemos a extrema complexidade das transformações sociais, mesmo as mais tênues; e porque as razões aparentes que atribuímos aos acontecimentos nos quais somos atores são muito diferentes das causas reais que neles nos determinam algum papel.
Assim, seria simplista demais explicar o desenvolvimento da comemoração do Natal na França apenas pela influência dos EUA.
O empréstimo é inegável, mas não traz consigo razões suficientes para explicar o fenômeno. Enumeremos brevemente as mais evidentes: há muitos americanos na França, os quais comemoram o Natal à sua maneira; o cinema, os "digests", os romances e também algumas reportagens da grande imprensa tornaram conhecidos os costumes americanos, e estes gozam do prestígio atribuído à potência militar e econômica dos EUA.
Tampouco se exclui a conjectura de que o Plano Marshall tenha favorecido, direta ou indiretamente, a importação de algumas mercadorias ligadas ao rito natalino.
Mas tudo isso não basta para explicar o fenômeno.
Costumes importados dos EUA impõem-se a camadas da população que lhes desconhecem a origem; os meios operários, onde a influência comunista poderia desacreditar tudo o que traz a marca "made in USA", os adotam com a mesma disposição dos demais.
Assim, em vez de uma difusão simples, cabe invocar aquele processo tão importante que Kroeber, o primeiro a identificá-lo, chamou de "difusão por estímulo" ("stimulus diffusion"): o costume importado não é assimilado, mas funciona como catalisador, ou seja, provoca com sua presença o surgimento de um uso semelhante que já estava potencialmente presente no meio secundário.
Ilustremos esse ponto com um exemplo diretamente relacionado ao nosso tema.
O industrial fabricante de papel que vai aos EUA, a convite dos colegas americanos ou como membro de uma missão econômica, constata que lá fabricam papéis especiais para os pacotes de Natal; ele adota a idéia, e temos aí um fenômeno de difusão.

Exigência estética
A dona-de-casa parisiense que vai à papelaria do bairro comprar o papel necessário para embrulhar seus presentes vê na vitrine papéis mais bonitos e de melhor acabamento do que aqueles que costumava usar; ela ignora totalmente os costumes americanos, mas esse papel satisfaz uma exigência estética e exprime uma disposição afetiva que já existia, só não dispunha de meios de expressão.
Ao escolhê-lo, a dona-de-casa não adota diretamente (como o fabricante) um costume estrangeiro, mas esse costume, tão logo é reconhecido, estimula nela o nascimento de um costume igual. Em segundo lugar, não se pode esquecer que a comemoração natalina, já antes da guerra, estava em processo ascendente na França e em toda a Europa. Isso estava relacionado, inicialmente, à melhoria progressiva do nível de vida, mas também a motivos mais sutis.
Com as características que conhecemos, o Natal é uma festa essencialmente moderna, apesar dos múltiplos traços arcaizantes. O uso do visco não é, pelo menos em primeira instância, uma herança druídica, pois parece ter voltado à moda na Idade Média.

Árvore de Natal
O pinheiro de Natal não é mencionado em parte nenhuma antes de certos textos alemães do século 17; ele segue para a Inglaterra no século 18 e chega à França apenas no século 19. O dicionário "Littré" parece conhecê-lo pouco ou sob forma muito diferente da nossa, pois o define (no verbete "Natal") com a designação: "Em alguns países, de um ramo de pinheiro ou de azevinho com diferentes enfeites, guarnecido principalmente de balas e brinquedos para serem dados às crianças, que fazem uma tremenda festa".
A variedade de nomes dados ao personagem incumbido de distribuir os brinquedos às crianças -Papai Noel, São Nicolau, Santa Claus- também mostra que ele é resultado de um fenômeno de convergência, e não um protótipo antigo conservado por toda parte.
O desenvolvimento moderno, porém, não é uma invenção: ele se limita a recompor peças e fragmentos de uma antiga comemoração, cuja importância nunca foi totalmente esquecida. Se a árvore de Natal, para o "Littré", é quase uma instituição exótica, Cheruel nota de maneira significativa, em seu "Dicionário Histórico das Instituições": "O Natal [...] foi, durante vários séculos e até uma época recente, a ocasião de festas em família"
Assim, estamos diante de um ritual cuja importância flutuou bastante ao longo da história; teve apogeus e declínios. A forma americana é apenas sua encarnação mais moderna. Aliás, essas rápidas indicações bastam para mostrar que, diante desse tipo de problema, é preciso desconfiar das explicações demasiado fáceis que apelam automaticamente aos "vestígios" e às "sobrevivências". Se nunca tivesse existido um culto às árvores nos tempos pré-históricos, que se prolongou em várias tradições folclóricas, a Europa moderna certamente não teria "inventado" a árvore de Natal.
No entanto -como mostramos mais acima-, ela é uma invenção recente. Essa invenção, porém, não nasceu do nada. Pois outros costumes medievais são plenamente comprovados: a chamada lenha de Natal (que inspirou um bolo natalino em Paris), um tronco espesso para arder a noite toda; os círios de Natal, com uma dimensão própria para a mesma finalidade; a decoração das casas (desde as Saturnais romanas, sobre as quais voltaremos a falar) com ramos verdes: hera, azevinho, pinheiro; por fim, e sem nenhuma relação com o Natal, os romances da Távola Redonda mencionam uma árvore sobrenatural recoberta de luzes.

Solução sincrética
Em tal contexto, a árvore de Natal surge como uma solução sincrética, isto é, concentra num só objeto exigências até então dispersas: árvore mágica, fogo, luz duradoura, verde persistente. Inversamente, Papai Noel, em sua forma atual, é uma criação moderna, e ainda mais recente é a crença que situa sua morada na Groenlândia, possessão dinamarquesa (o que obriga o país a manter uma agência de correio especial para responder às cartas de crianças do mundo inteiro), e o mostra viajando em um trenó puxado por renas.
Consta que esse aspecto da lenda se desenvolveu principalmente na última guerra, devido à presença de tropas americanas na Islândia e na Groenlândia.
E, no entanto, as renas não estão ali por acaso, visto que existem documentos renascentistas ingleses mencionando troféus de renas durante as danças de Natal, antes de qualquer crença em Papai Noel, e quem dirá da formação de sua lenda.
Assim, fundem-se e refundem-se elementos muito antigos, introduzem-se novos, encontram-se fórmulas inéditas para perpetuar, transformar ou reviver usos de velha data. Não há nada de especificamente novo -sem jogo de palavras- no renascimento do Natal.
Por que, então, ele desperta tanta emoção e por que é em torno da figura de Papai Noel que se concentra a animosidade de algumas pessoas?


Trecho de "O Suplício de Papai Noel" (ed. Cosac Naify, 56 págs., R$ 25).

Tradução de DENISE BOTTMANN .


Texto Anterior: Trópicos não tão tristes
Próximo Texto: Entenda o que é Antropologia Estrutural
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.