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PONTO DE FUGA
A mão afiada
Jorge Coli
especial para a Folha
Lucio Fontana talhava a superfície da tela. Eram cortes precisos, cirúrgicos. Deles resultaram cicatrizes nítidas, tendendo para o imaterial. O prodígio está aí: o gesto de ruptura, que destrói a unidade, se conclui intacto e
imóvel. Fontana associava a essas obras a palavra sugestiva: "Attese", ou seja, "Esperas". Concentram uma rarefeita poesia. Foram criadas para a eternidade da arte,
incisivas, ao mesmo tempo completas e incompletas.
O plano unido, incólume, é necessário aqui. Desde
épocas muito antigas que pintores buscaram as superfícies mais cristalinas para dividi-las com o traço seguro:
veja-se, ao acaso, um Simone Martini, um Duccio. Veja-se, mais recente, Ingres, empregando o desenho como
um corte sutilíssimo sobre a lisura impecável da tela.
Fontana ama essa nitidez, que pode adquirir aspecto
esmaltado, vítreo. Em certos casos, em que a violência
dos golpes sucessivos faz a superfície deflagrar uma
constelação de buracos irregulares, o resultado parece
mineralizar-se. A eles caberia bem o título caro a Pierre
Boulez: "Explosante Fixe". Não é o fim do quadro, como se supôs, mas o reforço de sua existência. Mesmo
suas cerâmicas, dos anos 30, dissolvendo formas nas
massas, revestem-se de uma vitrificação que as expõe,
contém e preserva. O "Retrato de Teresita", em busto,
cobre-se de mosaico brilhante e precioso, unificando e
fragmentando a epiderme da escultura. As formas
ovais, trabalhadas por Fontana, revelam um purismo
que quer negar-se a si próprio, mas que renasce, violentando-se e fixando-se na qualidade de arte.
Tangível - Fontana como uma espécie de Brancusi
raivoso: isso poderia indignar alguns dos estudiosos
mais ortodoxos, imersos nos debates históricos das
vanguardas. Na verdade, a obra de Fontana encontra-se
para além dessas discussões, dos raciocínios teóricos,
do que podia o próprio autor declarar sobre si. Basta a
noção de "conceito espacial", que inventa para substituir a idéia de "obra": a fórmula, por si só, já desvia o
olhar e se abre para as argumentações mentais. Acrescente-se o dinamismo, introduzido pela arte contemporânea, que busca afirmar, por achados, as precedências. Por exemplo: quem é mais original, vanguardeiro,
definitivo: Fontana ou Pollock? Questão nela mesma
bastante inútil, e sem dúvida pueril, mas que foi discutida e levada a sério.
A prova dos nove, em tudo, é sempre a obra. Por felicidade, abriu-se, no Centro Cultural do Banco do Brasil
do Rio de Janeiro, uma exposição admirável que viajará, em seguida, para São Paulo e Brasília. Apresenta
uma retrospectiva de Fontana e o associa a artistas brasileiros estimulados por ele ou que mostram afinidades
com seu mundo. Oferece uma dimensão essencial que
nem conceitos ou reproduções sabem atingir.
Laços - A mostra Fontana é exemplar: clara, precisa,
suscita relações com a produção brasileira que a incorpora. Conduz à percepção inteligente, um artista iluminando outro. Da série sugestiva "Homenagem a Fontana", datada de 1967, de Nelson Leiner, onde o zíper, na
tela, substitui o talho, com ironia, mas com mistério
também, chega-se à "Parede com Incisões à la Fontana", de Adriana Varejão, do ano 2000, em que o rasgo
desventra uma superfície de azulejos, por onde se percebe uma inquietante podridão. Aqui, a pureza do mestre foi intuída de maneira a revelar estranhezas orgânicas e perturbadoras.
Compreensão - "Lucio Fontana - A Ótica do Visível"
é o título da exposição. Seu catálogo, muito cuidado, incorpora textos históricos, sobretudo brasileiros. Segue
o fio de um estudo escrito por Paulo Herkenhoff que retraça a trajetória de Fontana, da Argentina à Itália, e discute seu impacto no Brasil. Fontana é um homem de
outros tempos, um clássico do século 20: nasceu em
1899, morreu em 1968. Ao contrário do predador que
talvez ele se imaginasse ou, em todo caso, que foi imaginado, fecundou a tradição das artes, renovando-a e projetando-a para o futuro.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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