São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007 |
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+ autores Escravos do amanhã
Média de um terço de mulheres entre os cativos africanos incentivou a reprodução natural e amenizou os efeitos da mortalidade
A
andar por Minas
Gerais em 1818, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853)
topou com um africano cujo destino já não admitia ilusões. Havia muito no Brasil, o escravo queria casar, pois,
como explicou, "quando se fica
assim, sempre só, o coração
não vive satisfeito". Mas não
com uma brasileira: "As crioulas desprezam os negros da
costa; vou me casar com outra
mulher que a minha senhora
acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua".
Suas palavras evocam a cisão
entre os crioulos e os escravos
nascidos na África. Aludem
igualmente ao estímulo enviesado do tráfico para o fim da
solidão de nosso africano -a
dinâmica do comércio negreiro
era mais intrincada do que se
imagina.
Sabe-se que em Minas Gerais, por exemplo, os escravos conheciam índices positivos de crescimento vegetativo desde a segunda metade do século 18. Tudo mudou com a corte no Brasil. A euforia econômica dos primeiros anos deu lugar ao aumento das importações de africanos, dos quais apenas 25% eram mulheres. De 1815 em diante, entretanto, os fazendeiros fluminenses passaram a utilizar o próprio tráfico para enfrentar o vitorioso abolicionismo inglês que emergiu do Congresso de Viena. De início, intensificaram a compra de mulheres adultas, que logo alcançaram um terço dos desembarcados. Era o máximo que a África podia oferecer. Apostaram depois no potencial produtivo e reprodutivo dos meninos e das meninas que adquiriam em números crescentes em Angola e Moçambique. Os resultados não tardaram: as crianças somavam 6% de seus africanos em fins da década de 1810, das quais 20% eram meninas. Tráfico incerto A Independência tornou incerto o destino do comércio negreiro. Embora a nova nação pudesse continuar a traficar, obter o imprescindível reconhecimento britânico fragilizava os partidários do tráfico. Os temores resultantes logo se traduziram na importação de mais crianças ainda -de 1820 a 1822, elas eram 12% do total de africanos das grandes fazendas, e as meninas, quase metade de todos os infantes nascidos na África. A extinção do tráfico foi por fim acertada em 1826. Três anos após a ratificação do acordo por Londres -ocorrida em 13 de março do ano seguinte-, o comércio negreiro passaria à condição de pirataria. Resultado: entre 1830 e 1850, segundo o historiador David Eltis, os africanos menores de 15 anos alcançaram 60% ou mais dos contingentes transportados pelos navios negreiros. Embora o contrabando de africanos tenha perdurado até 1850, a sociedade imperial não tinha dúvidas quanto ao seu fim. E se preparou para isso. Chega a ser pueril imaginar que daí pela frente, como num passe de mágica, o cativeiro tenha retirado seu imenso fôlego apenas da transferência de escravos do Nordeste para o Sudeste. Havia muito a escravidão se nutria da enorme plasticidade demográfica da "plantation", atestada na acumulação de trabalho e procriação potenciais encarnados nas crianças que comprava. Entre 1850 e 1888, a contínua aquisição de mulheres férteis a pequenos e médios escravocratas do próprio Sudeste pode ter sido mais importante para a sua perenidade do que as compras de escravos nordestinos. A verdade é que muitos se esmeram em desenhar uma "plantation" devoradora de adultos masculinos e nada mais. Não se toma em justa conta autores como Stuart Schwartz e John Monteiro, que mostram terem as primeiras plantações da Bahia e de São Paulo prescindido da África e de homens -nelas predominavam mulheres indígenas. A lógica senhorial Joaquim Nabuco (1849-1910) é culpado de muitas coisas: de ter sido bonito -Quincas, o belo, era como o chamavam-, de não haver levado a sério a paixão por Eufrásia Teixeira Leite (1870-1930), de ser dono de uma prosa por vezes bela e seca como a de João Cabral de Mello Neto. Foi igualmente um dos primeiros a disseminar essa perspectiva inacabada sobre a grande propriedade escravista. A pena abolicionista de Nabuco elidiu a lógica da reprodução natural. Não sem razão: posturas municipais proibiam o enterro de cativos ainda vivos, pois seus gritos incomodavam os vizinhos. No entanto daí a imaginar que todo senhor de escravos possuísse tão somente dois neurônios vai uma distância enorme. Da lógica senhorial fundada em saldos entre nascimentos e mortes falam os números que expus. De sua eficiência são testemunhas os milhares de africanos a viver no Brasil mais de meio século após o término do tráfico atlântico. Disse um deles a João do Rio, em 1904: "Por um negro cabinda é que se compreende que o africano foi escravo de branco. Cabinda é burro e sem-vergonha!". Nada que surpreenda. Afinal, o italiano Primo Levi (1919-1987) demonstrou, tristemente, que nem os campos de extermínio nazistas conseguiam dissolver indivíduos em um todo solidário. MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! . Texto Anterior: Discoteca básica: Tropicália Próximo Texto: + Sociedade: Tela legal Índice |
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