São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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Por mais que a oposição grite, é impossível retornar ao tempo da pré-globalização e derrotar as reformas de FHC
Para o passado ou para o futuro

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES
especial para a Folha

A crise econômica para as oposições, e especialmente para as esquerdas, pode suscitar a esperança de que as reformas neoliberais de FHC fracassaram. Finalmente, poderíamos voltar aos anos dourados do passado recente, quando, a julgar pelas críticas que fazem ao governo de FHC, não havia desemprego, pobreza, analfabetismo, corrupção, carestia, nem multinacionais e capital financeiro no país; não devíamos para ninguém e, se devêssemos, não pagávamos. É certo que a inflação corria solta, mas não tinha importância, porque existia a indexação que salvava as classes médias e altas e remetia seus custos para os que não possuíam correção automática e não estavam no overnight.
Mas será que a crise atual do real abre finalmente uma chance para derrotar o neoliberalismo de FHC e pôr fim à globalização? Será que os bons tempos do cruzeiro e do cruzado poderão retornar?
Tentar responder a essas indagações pressupõe imaginar um cenário do que seria necessário fazer para a "superação do neoliberalismo", para voltar ao passado. A partir desse rápido exercício teremos mais elementos para prognosticar se esse regresso ("avanço" para alguns) é efetivamente possível no Brasil e no mundo atual. Uma das condições para retornar ao modelo getulista seria a reestatização das empresas privatizadas, o que supõe a recuperação da capacidade de investimento do Estado; outra condição seria o fim das reformas da administração pública, da Previdência.
A lógica das críticas ao modelo supõe a manutenção de todas as vantagens do funcionalismo público, se possível a reposição do que foi tirado por FHC; a redução do coeficiente de importações; o retorno às emissões e à inflação; a adoção de medidas contra o capital estrangeiro; a moratória, o rompimento com o FMI. A afirmação da soberania do Estado e o nacionalismo devem levar, se formos consequentes, ao fim do Mercosul. A partir daí, poderíamos efetivamente ter políticas econômicas autônomas.
O retorno ao intervencionismo e ao nacionalismo econômico poderia fazer com que a navegação de cabotagem voltasse a ser uma prerrogativa de embarcações nacionais, o mercado brasileiro voltaria a ser protegido e poderíamos ter de volta os bons tempos dos uísques e dos computadores nacionais. Finalmente, poderíamos todos ficar mais descansados, sem tanta preocupação com eficiência, competição, produtividade...
Os leitores mais velhos podem perfeitamente acrescentar nessa lista muitas outras medidas da época do nacional-populismo que deveriam ser ressuscitadas para trazer de volta o passado e que, em princípio, a esquerda (se for coerente com o que prega na oposição) deveria aplicar para a derrota do neoliberalismo e da globalização.
A enumeração desordenada e sumária das medidas acima destinou-se a dramatizar a idéia principal desse artigo: os enormes obstáculos, a quase impossibilidade, de retorno ao passado pré-liberal e pré-globalização, mesmo que erros setoriais tenham ocorrido por parte do governo e que correções tenham que ser introduzidas no curso da economia.
Independentemente dos julgamentos de valor e das preferências ideológicas, por mais que a oposição grite contra os males do neoliberalismo (e da globalização), não é possível o regresso ao passado (aí incluindo o socialismo), nem no plano interno nem no plano externo. Para nos limitarmos ao espaço deste artigo, basta lembrar que, internamente, a substituição do modelo neoliberal suporia, como condição básica, a existência de um Estado com capacidade de investimento, capaz de chamar a si a responsabilidade pelo crescimento econômico e pela realização da justiça social. Externamente, o fim da URSS e o triunfo do capitalismo tornaram o Terceiro Mundo mais dependente do que nunca do mundo capitalista.
As observações acima deixaram de lado uma observação mais geral: em toda parte, o modelo anterior, que sob modalidades diferenciadas existiu em todo o mundo ocidental, caracterizou-se, no plano econômico, por alguns traços comuns: intervencionismo estatal, alta dose de regulamentação do mercado, políticas de bem-estar social; no plano dos valores, trazia consigo a hegemonia das doutrinas coletivistas; no plano político, implicava o poder da tecnocracia estatal, dos grandes sindicatos e dos partidos de esquerda; no plano produtivo, apoiava-se nas grandes unidades de produção, no sistema taylorista-fordista, na produção padronizada, de massas. Enfim, correspondia à sociedade industrial de massas. Esse mundo desapareceu, ou está em via de desaparecer, em todos os países, para dar lugar à sociedade de serviços e de lazer cujos contornos ainda não são claros.
A passagem para esse novo tipo de sociedade (ou de civilização) é dramática. Os países em que os padrões culturais e práticas burocráticas e corporativas estavam mais bem implantados, como no Brasil, devem opor maior resistência à transição para uma sociedade e uma economia abertas. O retorno ao passado, como dissemos, suporia um conjunto de medidas regressivas difíceis ou mesmo impossíveis de serem aplicadas na civilização pós-industrial. Mas, se o retorno ao mundo pré-neoliberal (no nosso caso, ao modelo getulista) parece impossível, a superação do modelo dirigista, burocrático, corporativo, nacionalista, antiliberal (que tem muitos traços fascistóides), está longe de ser favas contadas.
Como pano de fundo das contendas miúdas pró ou contra os projetos reformistas, entendo que um combate mais fundamental e decisivo se trava hoje na sociedade brasileira. Ele separa, de um lado, o bloco das forças ligadas à sociedade burocrática, agrupando uma gama heterogênea de segmentos sociais voltados, por interesse e/ou ideologia, para a conservação e, de outro, o bloco das forças que, pelos mesmos motivos, estão interessadas na mudança.
Seria equivocado realizar um corte simples, horizontal ou vertical, para separar os dois grandes blocos porque, no interior de cada um deles, estão facções dos mesmos segmentos sociais, ainda que distribuídos desigualmente. Mas, pelo menos à guisa de hipótese, parece que o critério principal de alinhamento político dos vários grupos deriva das vinculações diferenciadas ao Estado ou ao mercado e das vantagens que auferem dessas vinculações, isto é, de contextos protegidos ou competitivos.
O desfecho do combate entre os dois grandes blocos não está decidido. Os interesses burocráticos e corporativos criados pelo modelo getulista, se não têm o futuro à sua frente, têm variegada capacidade de resistência setorial, capaz de frustrar tentativas reformistas e levar a situações de impasse. Nesse caso, a sociedade brasileira não voltaria para o passado, mas não seria capaz de romper definitivamente com as amarras do subdesenvolvimento.


Leôncio Martins Rodrigues é professor do departamento de ciência política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de "Partidos e Sindicatos" (Ática), entre outros.



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