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Por mais que a oposição grite, é impossível retornar ao tempo da pré-globalização e derrotar as reformas de FHC
Para o passado ou para o futuro
LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES
especial para a Folha
A crise econômica para as oposições, e especialmente para as esquerdas, pode suscitar a esperança
de que as reformas neoliberais de
FHC fracassaram. Finalmente, poderíamos voltar aos anos dourados do passado recente, quando, a
julgar pelas críticas que fazem ao
governo de FHC, não havia desemprego, pobreza, analfabetismo, corrupção, carestia, nem
multinacionais e capital financeiro
no país; não devíamos para ninguém e, se devêssemos, não pagávamos. É certo que a inflação corria solta, mas não tinha importância, porque existia a indexação que
salvava as classes médias e altas e
remetia seus custos para os que
não possuíam correção automática e não estavam no overnight.
Mas será que a crise atual do real
abre finalmente uma chance para
derrotar o neoliberalismo de FHC
e pôr fim à globalização? Será que
os bons tempos do cruzeiro e do
cruzado poderão retornar?
Tentar responder a essas indagações pressupõe imaginar um cenário do que seria necessário fazer
para a "superação do neoliberalismo", para voltar ao passado. A
partir desse rápido exercício teremos mais elementos para prognosticar se esse regresso ("avanço" para alguns) é efetivamente
possível no Brasil e no mundo
atual. Uma das condições para retornar ao modelo getulista seria a
reestatização das empresas privatizadas, o que supõe a recuperação
da capacidade de investimento do
Estado; outra condição seria o fim
das reformas da administração
pública, da Previdência.
A lógica das críticas ao modelo
supõe a manutenção de todas as
vantagens do funcionalismo público, se possível a reposição do
que foi tirado por FHC; a redução
do coeficiente de importações; o
retorno às emissões e à inflação; a
adoção de medidas contra o capital estrangeiro; a moratória, o
rompimento com o FMI. A afirmação da soberania do Estado e o
nacionalismo devem levar, se formos consequentes, ao fim do Mercosul. A partir daí, poderíamos
efetivamente ter políticas econômicas autônomas.
O retorno ao intervencionismo e
ao nacionalismo econômico poderia fazer com que a navegação de
cabotagem voltasse a ser uma
prerrogativa de embarcações nacionais, o mercado brasileiro voltaria a ser protegido e poderíamos
ter de volta os bons tempos dos
uísques e dos computadores nacionais. Finalmente, poderíamos
todos ficar mais descansados, sem
tanta preocupação com eficiência,
competição, produtividade...
Os leitores mais velhos podem
perfeitamente acrescentar nessa
lista muitas outras medidas da
época do nacional-populismo que
deveriam ser ressuscitadas para
trazer de volta o passado e que, em
princípio, a esquerda (se for coerente com o que prega na oposição) deveria aplicar para a derrota
do neoliberalismo e da globalização.
A enumeração desordenada e
sumária das medidas acima destinou-se a dramatizar a idéia principal desse artigo: os enormes obstáculos, a quase impossibilidade, de
retorno ao passado pré-liberal e
pré-globalização, mesmo que erros setoriais tenham ocorrido por
parte do governo e que correções
tenham que ser introduzidas no
curso da economia.
Independentemente dos julgamentos de valor e das preferências
ideológicas, por mais que a oposição grite contra os males do neoliberalismo (e da globalização), não
é possível o regresso ao passado (aí
incluindo o socialismo), nem no
plano interno nem no plano externo. Para nos limitarmos ao espaço
deste artigo, basta lembrar que,
internamente, a substituição do
modelo neoliberal suporia, como
condição básica, a existência de
um Estado com capacidade de investimento, capaz de chamar a si a
responsabilidade pelo crescimento econômico e pela realização da
justiça social. Externamente, o fim
da URSS e o triunfo do capitalismo tornaram o Terceiro Mundo
mais dependente do que nunca do
mundo capitalista.
As observações acima deixaram
de lado uma observação mais geral: em toda parte, o modelo anterior, que sob modalidades diferenciadas existiu em todo o mundo
ocidental, caracterizou-se, no plano econômico, por alguns traços
comuns: intervencionismo estatal,
alta dose de regulamentação do
mercado, políticas de bem-estar
social; no plano dos valores, trazia
consigo a hegemonia das doutrinas coletivistas; no plano político,
implicava o poder da tecnocracia
estatal, dos grandes sindicatos e
dos partidos de esquerda; no plano produtivo, apoiava-se nas
grandes unidades de produção, no
sistema taylorista-fordista, na
produção padronizada, de massas.
Enfim, correspondia à sociedade
industrial de massas. Esse mundo
desapareceu, ou está em via de desaparecer, em todos os países, para dar lugar à sociedade de serviços e de lazer cujos contornos ainda não são claros.
A passagem para esse novo tipo
de sociedade (ou de civilização) é
dramática. Os países em que os
padrões culturais e práticas burocráticas e corporativas estavam
mais bem implantados, como no
Brasil, devem opor maior resistência à transição para uma sociedade
e uma economia abertas. O retorno ao passado, como dissemos,
suporia um conjunto de medidas
regressivas difíceis ou mesmo impossíveis de serem aplicadas na civilização pós-industrial. Mas, se o
retorno ao mundo pré-neoliberal
(no nosso caso, ao modelo getulista) parece impossível, a superação
do modelo dirigista, burocrático,
corporativo, nacionalista, antiliberal (que tem muitos traços fascistóides), está longe de ser favas
contadas.
Como pano de fundo das contendas miúdas pró ou contra os
projetos reformistas, entendo que
um combate mais fundamental e
decisivo se trava hoje na sociedade
brasileira. Ele separa, de um lado,
o bloco das forças ligadas à sociedade burocrática, agrupando uma
gama heterogênea de segmentos
sociais voltados, por interesse
e/ou ideologia, para a conservação
e, de outro, o bloco das forças que,
pelos mesmos motivos, estão interessadas na mudança.
Seria equivocado realizar um
corte simples, horizontal ou vertical, para separar os dois grandes
blocos porque, no interior de cada
um deles, estão facções dos mesmos segmentos sociais, ainda que
distribuídos desigualmente. Mas,
pelo menos à guisa de hipótese,
parece que o critério principal de
alinhamento político dos vários
grupos deriva das vinculações diferenciadas ao Estado ou ao mercado e das vantagens que auferem
dessas vinculações, isto é, de contextos protegidos ou competitivos.
O desfecho do combate entre os
dois grandes blocos não está decidido. Os interesses burocráticos e
corporativos criados pelo modelo
getulista, se não têm o futuro à sua
frente, têm variegada capacidade
de resistência setorial, capaz de
frustrar tentativas reformistas e levar a situações de impasse. Nesse
caso, a sociedade brasileira não
voltaria para o passado, mas não
seria capaz de romper definitivamente com as amarras do subdesenvolvimento.
Leôncio Martins Rodrigues é professor do departamento de ciência política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de
"Partidos e Sindicatos" (Ática), entre outros.
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