São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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PONTO DE FUGA

Garganta profunda

JORGE COLI
em Nova York

Thomas Adès é um jovem prodígio. Nasceu em 1971; desde os 18 anos que suas composições são admiradas e, espantoso para obras contemporâneas, entraram para o repertório das orquestras, dos pianistas, dos quartetos de corda. Adès surge como o sucessor de Benjamin Britten na música inglesa. Em 1995, terminou uma ópera, "Powder Her Face" (Passem o Pó-de-Arroz em Seu Rosto), apresentada há algumas semanas em Nova York e já gravada pela EMI. História real de uma duquesa, multimilionária e belíssima, célebre ao ponto de ser citada numa canção de Cole Porter. Na velhice, sem dinheiro, é expulsa de um hotel de luxo para morrer na miséria. Teve um divórcio rumoroso, no qual um juiz assinala "atividades sexuais nojentas" como motivo principal. A duquesa era uma perita na prática da felação, e nenhum homem que se aproximasse dela escapava, nem mesmo seus empregados. Numa das árias principais, ela se contenta em fazer "hmmmm, hmmmm", porque é impossível articular palavras quando se está com a boca cheia. Com esse assunto escabroso, Adès inventa uma mistura de humor, crueldade e abandono patético. Ele vai buscar sua inspiração em Weill, no Stravinsky do "The Rake's Progress", em Berg, em Wagner, no tango e no que mais se quiser, pondo cada nota a serviço do teatro. Tudo soa "moderno", mas sem experiências, com acertos seguros de quem não busca, embora saiba encontrar.

RISO - Ótimo o balanço dos filmes cômicos americanos do ano que passou, em que a mistura de escatologia com uma certa delicadeza renova o gênero. "Quem Vai Ficar com Mary", dos irmãos Farrelly, é o melhor exemplo, comédia subestimada no Brasil, mas muito inventiva e, sobretudo, hilariante. Woody Allen também aderiu ao melhor cômico "grosseiro" na cena da banana, em seu último "Celebrity". O paradoxo é que John Waters, imperador absoluto da baixaria suburbana, fez, em "Pecker", seu último filme, uma crônica um pouco amalucada, mas muito fina. Ele opõe a falsa cultura sofisticada das galerias nova-iorquinas ao mundo ingênuo, simpático e provinciano de Baltimore. Pecker é um adolescente obcecado, que fotografa seu bairro -incluindo latas de lixo ou um teatro de striptease onde as moças são lésbicas e insultam os homens com cara de nojo. Ele é descoberto e quase destruído pela efervescência histérica dos promotores culturais da grande cidade. Termina triunfando, mas Nova York inventa um novo grande fotógrafo, bonito como um galã, e muito original, porque completamente cego.

FLAUTA - No Metropolitan Opera House, uma nova produção de "Lucia di Lamermoor", de Donizetti, ópera condenada por Flaubert em "Madame Bovary" por parecer-lhe concentrar o pior da deliquescência romântica. "Lucia" é espantosa, traçando os caminhos da loucura e do feminino. Mas o espetáculo atual, suntuosíssimo, assinado por Nicolas Joël, não tem remédio, de tão indiferente e sem inspiração. Resta a estréia de Ruth Ann Swenson no terrível papel-título. Sua voz é por ora magnífica.

GÓTICO - Em nova edição atualizada, pela Syracuse University Press, "Life at the Dakota", para quem quiser descobrir os segredos de um edifício singular. Stephen Birmingham escreve sem pretensões, mas traça um panorama histórico e social muito hábil à volta desse prédio que, de Tchaikovsky a John Lennon, passando por Polanski, Lauren Bacall, Boris Karloff e Leonard Bernstein, concentrou fatos de cultura de grande interesse. Ótimo debate sobre a preservação de monumentos em Nova York.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com



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