São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

O BARDO FRANCÊS


No bicentenário do nascimento de Victor Hugo, sai na França uma nova biografia que equipara o autor de "Os Miseráveis" a Dante e Shakespeare


Alcino Leite Neto
de Paris

Este é o "ano Victor Hugo" na França. Todo o sistema da cultura está comemorando o bicentenário de nascimento do escritor, ocorrido em 26 de fevereiro de 1802, em Besançon. Escolas, editoras, prefeituras, bibliotecas e órgãos públicos se mobilizaram para celebrar o maior mito literário francês e também a figura que encarna como nenhuma outra os seus ideais republicanos e democráticos no país. Os eventos estariam fadados à esterilidade e ao oficialismo, incapazes de revitalizar a imagem e a obra do escritor, se não tivesse sido publicado em janeiro o primeiro tomo da biografia "Victor Hugo", de Jean-Marc Hovasse (ed. Fayard, 44,50 euros).
Com 1.366 páginas, o livro lança um sopro, ou melhor, um furacão de vida sobre o personagem monumentalizado, trazendo-o para o coração de nossa época. Construída com capítulos curtos, num ritmo febril e emocionante, é uma obra que assusta pelo tamanho, mas entusiasma pelo estilo, o rigor e a erudição.
Na imprensa francesa, a biografia foi considerada "o evento editorial do bicentenário" ("Magazine Littéraire"). O segundo volume, um pouco menor, sairá no ano que vem e vai abranger desde o exílio de Hugo (a partir de 1851) até a sua morte (em 22 de maio de 1885). A biografia chega às livrarias acompanhada de mais de cem novas obras ou reedições de Victor Hugo ou sobre o escritor.
Hovasse, que tem parentes no Brasil e admira Villa-Lobos, é um professor de 32 anos, apaixonado pela obra e pela vida de Hugo, a quem tem dedicado boa parte de sua vida. Ele levou dois anos para fazer o primeiro volume, mesclando o método e a precisão dos biógrafos ingleses com a análise e a reflexividade características de um francês. Resultado: o livro é também um estudo literário, uma gênese da obra hugoliana.
A obra de Hugo é titânica -22 livros de poesia, 14 peças, 8 romances e assim vai. Ele não é apenas um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, mas também um de seus principais romancistas, dramaturgos, ensaístas, polemistas e homens públicos. Sua influência, em vida, é incalculável, atingindo até países remotos, como o Brasil. Ele influiu não apenas literariamente, como um dos pilares do romantismo, mas também no plano da vida política.
Monarquista na juventude, se tornou um fervoroso republicano mais tarde e um aliado da democracia moderna, da defesa dos direitos individuais, dos ideais de justiça e da luta contra a miséria. Sua oposição a Luís Bonaparte, que por meio de um golpe se sagrou Napoleão 3º, levou Hugo a um exílio de 19 anos.
A sua poesia é hoje menos lida do que sua prosa, mas é um dos monumentos do século 19. Os seus romances chegaram aos cinemas e ao desenho animado -incorporando-se ao imaginário da época. "Notre Dame de Paris", com a história de amor do corcunda Quasímodo pela cigana Esmeralda, teve dezenas de adaptações cinematográficas, assim como "Os Miseráveis", que até virou musical (no Brasil, o livro será republicado pela Cosac & Naify em agosto).
"Se haveria alguma coisa a reter da existência de Hugo como princípio político seria uma permanente insatisfação com as coisas existentes. Ele sempre esteve sistematicamente na oposição, baseado na fé de que poderia mudar as coisas", diz Hovasse na entrevista a seguir.

Há muitos livros sobre Hugo na França. O que sua biografia traz de novo?
Antes de mais nada, ela é a primeira biografia na França escrita por um especialista em Victor Hugo. Há muitos especialistas no país, mas em geral eles não escrevem biografias, que são feitas por gente que não conhece direito o personagem ou que conhece a vida, mas não a obra. Eu sempre trabalhei com Hugo, minha tese de doutorado foi a seu respeito.
A segunda novidade do livro é que, pela primeira vez, há uma biografia francesa com notas, em que todas as citações são referenciadas. Isso constituiu um instrumento de trabalho extremamente eficaz e importante. Eu não a teria escrito se não tivesse a ambição de fazer algo diferente. No estilo, a única biografia que pode ser comparada à minha é a do inglês Graham Robb ["Victor Hugo", publicado no Brasil pela ed. Record".

O sr. se sente mais próximo do modelo anglo-saxão de biografia?
Sim, mas do modelo inglês, que é diferente do americano. O modelo inglês é bom de ler e é diferente da biografia à americana, que é horrivelmente detalhada e sem construção. A biografia anglo-saxã em geral é também escrita por especialistas. Robb, por exemplo, é um especialista na literatura do século 19. Ele escreveu sobre Baudelaire, Hugo, Rimbaud... Na França, o que existe são biógrafos profissionais, que escrevem sobre qualquer assunto, depois do trabalho dos documentaristas, que fazem a pesquisa para eles. A mistura de rigor, de qualidade e proximidade com o público é, para mim, o que faz a especificidade inglesa.

Hugo tinha uma enorme vitalidade e deixou uma obra vasta. Como trabalhava?
Ele escreveu todas as peças de teatro e "Notre Dame de Paris" (1831) de modo extremamente rápido. Trabalhava muito, todos os dias. Corrigia bastante, também. Escrevia num só fôlego e juntava coisas em seguida. Sua obra está sempre em desenvolvimento. Dizia que era capaz de escrever tão facilmente em verso quanto em prosa, o que eu acho que era verdade. Suas peças foram escritas em uma semana ou 15 dias, mesmo em versos. Ele fazia até 80 versos por dia, depois voltava e corrigia. Ele é menos rápido em prosa, mas esta é muito precisa também. Em relação a nós, essa vitalidade parece inacreditável, mas é preciso pensar em Balzac. É claro que Hugo tem uma energia louca, com grande variedade de domínios de intervenção, mas ele não escreveu mais que Balzac ou Lamartine. A diferença é que estes estavam pressionados pelo dinheiro. Eram obrigados a produzir bastante para viver. Com Hugo, é o inverso, salvo por "Notre Dame de Paris", para o qual ele tinha um contrato.

Hugo ficou rico?
Sim, graças ao teatro, que na época era como o cinema hoje. Uma coletânea de poemas tinha a metade do público de uma apresentação teatral. Então, era preciso escrever para o teatro para ficar rico. Foi o que aconteceu. Ele não era nobre, não tinha propriedades, sua riqueza vinha dos palcos. Teve a noção de que precisava construir sua fortuna. Não era avaro, um falso juízo que se faz dele. Apenas não dilapidou sua fortuna, como Chateaubriand, que tinha o desprezo aristocrático pelo dinheiro. E, ao contrário de Balzac e Lamartine, também não entrou em operações financeiras duvidosas. Ele se julgava no dever de garantir uma herança a sua família.

Ao contrário da imagem que se faz comumente dos autores românticos, Hugo sempre cultivou a família e teve uma vida tipicamente burguesa, não?
Isso se deve ao fato de que sua infância foi muito caótica e, para ele, o sentido da família era muito forte. Ele tinha o desejo absoluto de manter a família ao seu redor. Mas Hugo também foi inovador, porque as crianças eram importantes para ele. Na época, elas não eram valorizadas senão a partir dos 10 anos de idade. Ele, ao contrário, protegeu suas crianças e valorizou a infância. Foi o primeiro a colocar crianças na poesia. Há muitas nos seus poemas, desde os anos 1830. No século 18, e mesmo no começo do 19, a criança não era propriamente um tema da poesia.

Como as viagens que fez na infância à Itália e à Espanha influenciaram Hugo? O sr. acha que seus constantes deslocamentos à Espanha ajudaram a aproximá-lo do romantismo, contra o classicismo francês?
Sim, certamente. Foi sobretudo a Espanha que o marcou, porque quando foi à Itália ele era muito novo. Seria possível explicar muito de Hugo estudando suas viagens à Espanha, por isso dedico muito espaço a elas. Dou algumas pistas. O que ele vê no país, as igrejas barrocas, os monstros, a relação entre morte e sublime religioso, tudo o influencia. É uma passagem muito importante para a sua obra. O barroco também o atinge. Penso, por exemplo, em "O Homem Que Ri", que foi menos bem-sucedido, mas é um romance barroco. Na maior parte de "Cromwell" (1827), Shakespeare é sua grande referência, claro, mas poderiam ser também os autores do Século de Ouro espanhol.
O romantismo, ao pensar em fontes estrangeiras, falava na Inglaterra e na Alemanha. Mas, para Hugo, isso era antes de tudo pensar na Espanha. As suas grandes peças, "Hernani" (1830) e "Ruy Blas" (1838), se passam na Espanha, como ocorre aliás em Corneille, que, antes de ser um clássico, foi um barroco.

Shakespeare é uma influência verdadeira em sua obra ou é mais um símbolo, um motivo polêmico, literário e político?
Se pegarmos toda a sua vida e sua obra, temos a impressão que ele é sobretudo um símbolo literário, do gênio universal. Em "William Shakespeare" (1864), efetivamente, ele fala mais de si próprio do que do inglês. Mas ele conhecia bem "Hamlet" e outras peças. Seu filho François-Victor traduziu todo o Shakespeare quando estava no exílio. É a primeira tradução integral para o francês, bastante boa, na qual ele trabalhou enormemente. No exílio, François-Victor e Hugo moravam juntos, falavam-se todos os dias, liam juntos. Então, com seu filho, Hugo teve um conhecimento bastante completo de Shakespeare.
Agora, no prefácio de "Cromwell" (1827), anterior a essa época, o conhecimento de Shakespeare é de fato menos evidente. Havia atores ingleses que encenavam as peças na França, mas duas ou três, não o conjunto. Apesar disso, Shakespeare foi uma grande revelação para Hugo. Então, as duas coisas são verdadeiras. Hugo teve certamente um conhecimento preciso dos textos de Shakespeare e, no geral, este representa para ele o modelo de gênio literário, a figura que encarna a nação inglesa.

O bicentenário de Hugo acontece quando se implanta a moeda única européia, o euro, passo importante para a unificação do continente. O sr. acredita que a União Européia de hoje sejam os "Estados Unidos da Europa" com que ele sonhou?
Em todo caso, é o começo. Penso que ainda levará mais tempo para acontecer o que ele previu, como a livre circulação de bens e pessoas, o mercado econômico único... É preciso lembrar que essa Europa, para ele, não é senão a etapa intermediária antes de chegarmos à República Universal. Nos textos em que ele fala dos "Estados Unidos da Europa", está claro que é apenas uma etapa rumo aos "Estados Unidos do Mundo".

O que mais o mundo de hoje tem de hugoliano?
A Europa é uma idéia hugoliana. Na França, o direito de voto para as mulheres, a igualdade, a paridade, a abolição da pena de morte (ocorrida apenas nos anos 1980), a reflexão sobre a justiça, sobre a prisão, a miséria, em tudo isso há muito de Hugo. Fizemos muito progresso, desde então, mas nem tudo está acertado, longe disso. Então, o que há de hugoliano são essas interrogações permanentes na sua obra e na sua vida e que são também, ainda, as nossas. Quanto a sua obra, seus personagens viraram mitos e já não lhe pertencem mais. De um lado, isso é ruim, porque se fala deles sem relacioná-los às obras. Por outro lado, trata-se de uma conquista, algo muito raro de acontecer.

O que ele representa hoje para a França?
Mais e mais, ele representa o grande autor francês. Há Shakespeare na Inglaterra e Dante na Itália. Na França, há Victor Hugo. Ele buscou isso. Sua coincidência com a política instaurada em 1848 fez dele também uma espécie de pai fundador da República. Quando morreu (1885) a República começava a se instalar. Sua morte foi, então, a oportunidade de uma cerimônia gigantesca, com 2 milhões de pessoas da França e do mundo todo que permitiu cimentar a Terceira República. Ele realmente queria isso, tinha vontade de encarnar a França legítima sob a forma republicana.

Ele não teria se tornado hoje mais um símbolo de conservação do que de transformação social?
Hugo foi alguém que nunca parou de lutar. Ele disse, no fim da sua vida: "Quando eu parar o combate é porque estarei morto". Se há alguma coisa a reter de sua existência como princípio político é uma permanente insatisfação com as coisas existentes.
Mesmo na juventude, quando era monarquista, ele já estava na oposição. Sempre esteve sistematicamente na oposição, baseado na fé de que poderia mudar as coisas. Então, sim, ele encarna os valores da república, como o trabalho, que é importante para ele, a liberdade, a igualdade. Mas ele é também um personagem combatente. No século 20, foi ídolo de vários movimentos revolucionários, embora tenha sido sempre anticomunista.
O que o opõe ao comunismo é o sentido da propriedade, da herança. Ele sempre atacou os comunistas como sectários. Defendeu a liberdade individual. Há textos em que diz que na sociedade ideal não haverá mais Estado, que será quase invisível.

Dos dois principais candidatos à Presidência da França neste ano, quem é mais hugoliano: o primeiro-ministro Lionel Jospin (centro-esquerda) ou o presidente Jacques Chirac (centro-direita)?
(Ri) No fim da vida, Hugo disse: "Sou socialista". Eu acho que ele votaria, então, em Jospin.

O Brasil comparece alguma vez na obra de Hugo?
O texto mais importante de Hugo sobre o Brasil é uma carta "aos Membros do Comitê para o Monumento de Ribeyrolles, no Rio de Janeiro". Ribeyrolles foi exilado em Jersey ao mesmo tempo em que Hugo. Depois de passar por Londres, partiu para seu país, onde escreveu "Brasil Pitoresco", publicado em 1859. Morreu prematuramente, e os brasileiros quiseram erigir um monumento a ele. Escreveram então a Hugo, para lhe pedir que fizesse um epitáfio. Nele, Hugo escreve: "Vocês são homens nobres, vocês são uma nação generosa; vocês têm a dupla vantagem de uma terra virgem e de uma raça antiga; vocês se relacionam ao grande passado histórico do continente civilizador; vocês misturam ao Sol da América a luz da Europa. É em nome da França que eu os glorifico".
Agora, o episódio mais importante da sua vida em relação ao Brasil ocorreu quando ele já estava de volta do exílio, em 1877, e se encontrou com o imperador brasileiro. Dom Pedro 2º foi à casa de Hugo, que o apresentou assim aos seus filhos: "Eis o imperador do Brasil". Ao que Pedro 2º respondeu: "Se há aqui um imperador, ele é o senhor".



Texto Anterior: Arte Moderna e socialismo
Próximo Texto: Eventos celebram bicentenário
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.