|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Obra defende que aliança entre calvinismo e sensibilidade
romântica deu origem ao consumismo moderno
Comoção, lágrimas e finas roupas
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Por que somos tão consumistas?
Pode-se pôr a culpa na publicidade, na superabundância de bens
industrializados, na mania de imitar os
outros ou mesmo falar de uma tendência
natural do ser humano para buscar conforto e prestígio. São explicações demasiado simplistas, e este fascinante estudo
sociológico de Colin Campbell rebate-as
com inteligência.
A começar pelo próprio título do livro
-"A Ética Romântica e o Espírito do
Consumismo Moderno"-, Campbell se
inspira no clássico de Max Weber, "A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Como se sabe, Weber descobriu
surpreendentes afinidades entre os rigorosos mandamentos da teologia calvinista e o comportamento do capitalista típico, dedicado à busca racional do lucro.
Enquanto a Igreja Católica condenava a
procura do enriquecimento, para o calvinismo o sucesso material de uma pessoa
seria sinal de que estava entre os eleitos
de Deus. Curiosamente, assim, uma
doutrina fundamentada na renúncia aos
valores terrenos terminaria tendo papel
determinante na constituição de uma sociedade materialista, racionalizada e
bem pouco piedosa.
Pois bem, pergunta Campbell, como
foi que aquele velho capitalista ascético e
parcimonioso veio a dar no esbanjador
que conhecemos hoje? A resposta já vem
indicada no título do livro: o comportamento consumista tem origens no romantismo. Para comprovar essa tese,
Campbell mobiliza um respeitável aparato de erudição, além de doses consideráveis de criatividade sociológica.
Cabe-lhe, antes de tudo,
caracterizar o "espírito do
consumismo moderno".
Não se trata de invenção
do século 20. Já em finais
do século 18, a propensão
ao consumo de luxo e a
obediência aos ditames da
moda assemelhavam-se
em muito aos padrões
contemporâneos. Pode-se pensar que, naquela
época, o gosto pelo supérfluo era exclusivo da nobreza, enquanto a classe média
se mantinha adstrita a um comportamento puritano.
Não é verdade, diz Campbell. Já em inícios do século 19, o consumismo atingia
a classe média. Seria essa "classe média"
composta, em sua maioria, de herdeiros
do calvinismo? É algo que este livro não
comprova empiricamente; mas é desse
pressuposto que Campbell parte para estabelecer, no âmbito da história das
idéias, os pontos de contato entre o calvinismo e a sensibilidade romântica, por
meio de todos os movimentos ideológicos que se encarregaram de adocicar os
rigores da doutrina.
Basta invocar, aliás, o nome de Jean-Jacques Rousseau para sugerir que entre
a antipatia calvinista e a efusão romântica há mais semelhanças do que parece à
primeira vista. O veio rousseauniano não
é, entretanto, explorado
em profundidade por
Campbell, cujo foco de
atenções se restringe ao
ambiente britânico.
Das teorizações sobre o
bom gosto escritas por
Lord Chesterfield (1694-1773) aos pré-românticos
poemas de Young (1773-1829), passando pelos romances de Jane Austen
(1775-1817), o livro descreve a gradual
passagem da sombria tese da "predestinação" calvinista para a idéia de que o espírito melancólico, o sentimentalismo, a
comoção, as lágrimas, a delicadeza, o
bom gosto e por fim até as roupas refinadas também valeriam como sinais da salvação. Um consumidor exigente estaria
revelando tanta virtude, tanta santidade
de alma, quanto o mais austero industrial. A riqueza do livro de Campbell
-que se dá ao luxo de propor, ademais
de sua tese principal, uma teoria do dandismo, uma análise do artista boêmio,
uma comparação entre o hedonismo antigo e o moderno- supera em muito o
que seu raciocínio tem de duvidoso.
Há, com efeito, vários
pontos discutíveis na argumentação do autor. Será lícito imaginar uma
"conversão" do calvinista
weberiano ao consumismo moderno (um pouco
como se tratasse do mesmo personagem social ao
longo dos séculos) por
meio dos rebuscados argumentos filosóficos de
Leibniz e dos neoplatonistas de Cambridge, como
faz Campbell? Não seria
mais plausível acreditar
numa tendência "natural" ao abrandamento da
religião puritana?
Afinal de contas, o problema de Weber estava
em entender como uma atitude tão
"imoral" como o acúmulo de riqueza poderia encontrar justificação religiosa. Seria preciso uma justificação religiosa, ou
ética, para consumir bens supérfluos?
Em que medida o consumista típico
(personagem cujo perfil não é traçado a
contento neste estudo) se sente de fato
"justificado" no que faz? Não proviria
dessa fraca justificação, aliás, a importância da publicidade, que Campbell minimiza? Muitas outras questões poderiam ser levantadas contra o livro. O certo é que "A Ética Romântica e o Espírito
do Consumismo Moderno" propõe,
com originalidade e vigor, uma discussão de grande interesse.
A Ética Romântica e o Espírito
do Consumismo Moderno
400 págs., R$40,00
de Colin Campell. Trad. de Mauro Gama. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP: 20011-040, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2507-2000).
Texto Anterior: Eventos celebram bicentenário Próximo Texto: Lançamentos Índice
|