São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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Obra defende que aliança entre calvinismo e sensibilidade romântica deu origem ao consumismo moderno

Comoção, lágrimas e finas roupas

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Por que somos tão consumistas? Pode-se pôr a culpa na publicidade, na superabundância de bens industrializados, na mania de imitar os outros ou mesmo falar de uma tendência natural do ser humano para buscar conforto e prestígio. São explicações demasiado simplistas, e este fascinante estudo sociológico de Colin Campbell rebate-as com inteligência.
A começar pelo próprio título do livro -"A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno"-, Campbell se inspira no clássico de Max Weber, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Como se sabe, Weber descobriu surpreendentes afinidades entre os rigorosos mandamentos da teologia calvinista e o comportamento do capitalista típico, dedicado à busca racional do lucro. Enquanto a Igreja Católica condenava a procura do enriquecimento, para o calvinismo o sucesso material de uma pessoa seria sinal de que estava entre os eleitos de Deus. Curiosamente, assim, uma doutrina fundamentada na renúncia aos valores terrenos terminaria tendo papel determinante na constituição de uma sociedade materialista, racionalizada e bem pouco piedosa.
Pois bem, pergunta Campbell, como foi que aquele velho capitalista ascético e parcimonioso veio a dar no esbanjador que conhecemos hoje? A resposta já vem indicada no título do livro: o comportamento consumista tem origens no romantismo. Para comprovar essa tese, Campbell mobiliza um respeitável aparato de erudição, além de doses consideráveis de criatividade sociológica.
Cabe-lhe, antes de tudo, caracterizar o "espírito do consumismo moderno". Não se trata de invenção do século 20. Já em finais do século 18, a propensão ao consumo de luxo e a obediência aos ditames da moda assemelhavam-se em muito aos padrões contemporâneos. Pode-se pensar que, naquela época, o gosto pelo supérfluo era exclusivo da nobreza, enquanto a classe média se mantinha adstrita a um comportamento puritano.
Não é verdade, diz Campbell. Já em inícios do século 19, o consumismo atingia a classe média. Seria essa "classe média" composta, em sua maioria, de herdeiros do calvinismo? É algo que este livro não comprova empiricamente; mas é desse pressuposto que Campbell parte para estabelecer, no âmbito da história das idéias, os pontos de contato entre o calvinismo e a sensibilidade romântica, por meio de todos os movimentos ideológicos que se encarregaram de adocicar os rigores da doutrina.
Basta invocar, aliás, o nome de Jean-Jacques Rousseau para sugerir que entre a antipatia calvinista e a efusão romântica há mais semelhanças do que parece à primeira vista. O veio rousseauniano não é, entretanto, explorado em profundidade por Campbell, cujo foco de atenções se restringe ao ambiente britânico.
Das teorizações sobre o bom gosto escritas por Lord Chesterfield (1694-1773) aos pré-românticos poemas de Young (1773-1829), passando pelos romances de Jane Austen (1775-1817), o livro descreve a gradual passagem da sombria tese da "predestinação" calvinista para a idéia de que o espírito melancólico, o sentimentalismo, a comoção, as lágrimas, a delicadeza, o bom gosto e por fim até as roupas refinadas também valeriam como sinais da salvação. Um consumidor exigente estaria revelando tanta virtude, tanta santidade de alma, quanto o mais austero industrial. A riqueza do livro de Campbell -que se dá ao luxo de propor, ademais de sua tese principal, uma teoria do dandismo, uma análise do artista boêmio, uma comparação entre o hedonismo antigo e o moderno- supera em muito o que seu raciocínio tem de duvidoso.
Há, com efeito, vários pontos discutíveis na argumentação do autor. Será lícito imaginar uma "conversão" do calvinista weberiano ao consumismo moderno (um pouco como se tratasse do mesmo personagem social ao longo dos séculos) por meio dos rebuscados argumentos filosóficos de Leibniz e dos neoplatonistas de Cambridge, como faz Campbell? Não seria mais plausível acreditar numa tendência "natural" ao abrandamento da religião puritana?
Afinal de contas, o problema de Weber estava em entender como uma atitude tão "imoral" como o acúmulo de riqueza poderia encontrar justificação religiosa. Seria preciso uma justificação religiosa, ou ética, para consumir bens supérfluos? Em que medida o consumista típico (personagem cujo perfil não é traçado a contento neste estudo) se sente de fato "justificado" no que faz? Não proviria dessa fraca justificação, aliás, a importância da publicidade, que Campbell minimiza? Muitas outras questões poderiam ser levantadas contra o livro. O certo é que "A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno" propõe, com originalidade e vigor, uma discussão de grande interesse.


A Ética Romântica e o Espírito
do Consumismo Moderno
400 págs., R$40,00
de Colin Campell. Trad. de Mauro Gama. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP: 20011-040, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2507-2000).




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