São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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Programas como "Big Brother" e "Casa dos Artistas" fascinam espectador ao acenar com a promessa de domesticação do desconhecido

Os formatos da intimidade

Esther Hamburger
especial para a Folha

Os chamados "reality shows" vêm marcando a cena cultural em diversos países nos últimos anos. Versões diferentes de gincanas dramáticas com participação de pessoas selecionadas dentre um contingente de milhares de candidatos circulam provocando polêmica por onde passam. Programas como "Big Brother Brasil" ou "Casa dos Artistas" -versões locais de matrizes estrangeiras- geram repercussão inédita na mídia. Durante os anos de 2000 e 2001, respeitáveis jornais diários, como "Le Monde", na França, ou "The Guardian", na Inglaterra, dedicaram páginas e páginas ao gênero televisivo. Vale lembrar que a curiosidade do público sobre a intimidade das personagens em cena pode ser saciada nos episódios editados e televisados em horário nobre -o número e a duração dos episódios varia conforme a edição do programa- mas também em canais a cabo ou sites que exibem o "copião" do drama, ou seja, 24 horas de gravação diária, em tempo real. O caráter global do fenômeno estimula a especulação, frequentemente na chave moral. Discute-se a natureza perversa ou inofensiva do fascínio exercido por programas que explorariam a humilhação de "pessoas reais" diante das câmeras. A crítica acusa o voyeurismo que esses experimentos estimulariam. Pouco se fala nas novidades do formato propriamente dito.

As regras do jogo
A trajetória de "Big Brother", o programa inventado na Holanda pela Endemol, uma pequena produtora, que cresceu com o sucesso da invenção, é ilustrativa. A primeira versão do "reality show" estreou em setembro de 1999 naquele país. O formato foi logo exportado para a Inglaterra, Alemanha, Espanha e Estados Unidos. O número de países cresceu para os atuais 17, que incluem países nórdicos mas também latinos. Além de Noruega, Dinamarca, Suécia e Bélgica, o programa existe também em países como o Brasil, Argentina, México, Austrália e África do Sul. Os limites de permissividade variam. Em Portugal, onde "Big Brother" já está na terceira edição, um casal transou ao vivo, desencadeando debate sobre a adequação de tal conduta na TV. A transgressão foi punida com a "eliminação" do jogo. Ao voltar à "vida real", os dois participantes trataram de se redimir sacramentando rapidamente a união em casamento oficial. Na Holanda, câmeras registram os detalhes mais escatológicos do cotidiano. Já a versão inglesa é mais pudica. Mas naquele país uma personagem gerou reações apaixonadas ao ameaçar um concorrente no ar e ao vivo, com uma faca no pescoço: "E se eu te matasse agora?". Na Alemanha a produção quase não foi ao ar devido a ataques de líderes políticos e religiosos que acusaram o programa de violar a "dignidade humana", protegida pela Constituição. O "Big Brother" alemão só foi permitido com o compromisso de que as câmeras seriam desligadas diariamente durante uma hora. Mas o sucesso de público não necessariamente se deve à exibição de cenas consideradas aberrantes. A primeira edição de "Casa dos Artistas", por exemplo, parecia derivar seu apelo por, ao menos em parte, se dirigir à família reunida. Mas o frenesi que o programa inspira é parecido. Curiosamente, o resultado da exibição mais ou menos simultânea do mesmo gênero de programa em diversos países é que em cada um desses locais são discutidas mais ou menos as mesmas coisas. Há como que uma agenda comum vivida com especificidades ao redor do globo. Após alguns anos de debate, há quem arrisque afirmar que a onda da TV realidade já passou. Talvez seja mais sagaz pensar que esses formatos meio novela sem roteiro, calcados no sensacionalismo, têm vida curta. Mas eles introduzem novas demandas. O fenômeno vem associado a um conjunto de mudanças, que talvez possam ser entendidas como elementos de um novo paradigma do audiovisual, um paradigma que tem a ver com transformações que vêm compondo o que Manuel Castells denomina "sociedade em rede". Há exatos dez anos, a revista francesa "Esprit" publicou um dossiê premonitório intitulado ""Reality Shows", uma Nova Era Televisual?". A publicação acadêmica tematizou um fenômeno contemporâneo: a abundância de programas televisivos dedicados a divulgar histórias pessoais, íntimas e escabrosas, de pessoas anônimas que aceitavam revelar seus segredos diante das câmeras.


Os "reality shows" emergem como agentes sobre noções de público e privado, cidadão e indivíduo, num contexto de declínio dos movimentos sociais


A França nos anos 80 quebrou o monopólio estatal da televisão. A introdução de canais privados, com sua lógica comercial, gerou uma mudança nos padrões de programação. Autores como Pierre Chambat e Alain Ehrenberg identificaram o crescimento dos "reality shows". Eram programas confessionais e/ou de auditório, parecidos com o programa de Jerry Springer nos Estados Unidos ou com alguns quadros de programas como o de Silvio Santos, Gugu Liberato ou Fausto Silva. Os autores chamaram a atenção para aspectos que permanecem atuais. Chambat e Ehrenberg procuram fugir das posições maniqueístas que identificam no debate no início dos anos 90 naquele país -e que em larga medida permanece atual- entre os que saudaram a nova programação como entretenimento inofensivo e os que reconheceram nela a prova cabal da decadência da moral e dos costumes. Para além do esforço em definir o conteúdo ideológico dos programas, há aqui um esforço em entender o fenômeno nos seus próprios termos. Os "reality shows" emergem como agentes sobre noções de público e privado, cidadão e indivíduo, em um contexto de declínio dos movimentos sociais que marcaram a cena política francesa nas décadas de 60 e 70. Os "reality shows" seriam indicadores da diluição das fronteiras entre os gêneros da ficção e do documentário, como índices do aumento da participação do público na programação, como substitutos da programação política, expulsa do horário nobre pelos jogos televisivos. Chambat e Ehrenberg apontam o que provavelmente se constitui no maior diferencial desses programas, que se mantém e cuja presença outros autores, como Roger Silverstone, detectam em fenômenos de massa ligados à TV, como o funeral da princesa Diana. Com os "reality shows", a TV deixa de ser meramente uma vitrina para voyeurs, telespectadores entendidos como receptores passivos do que vai na tela. Aqui a TV acena com a possibilidade de interação. E interação é intervenção. Como o casal de participantes do "Big Brother" português, eliminado da gincana graças ao preconceito contra o arroubo sexual em cena, que, ao sair da casa do espetáculo, se casou. Aqui a experiência dos atores-personagens deles mesmos perpassa o palco e a platéia. Telespectadores e produtores da TV contemporânea buscam obsessivamente "a vida como ela é", para citar a vinheta do "Aqui, Agora", programa que marcou época justamente por suas características de "reality show". O indivíduo, suas ações e seus esforços para se realizar estão no centro do palco. A busca da autenticidade emerge nesses programas como um mote que faz com que a ficção apareça quase como traição.

TV e internet
Possibilidades abertas pela internet migram para o meio de comunicação mais tradicional. O que começou como experimentos exibicionistas isolados em "webcams" foi discutido em filmes como "Truman Show" e se realiza de maneira coletiva e compartilhada no "reality show". Para além da intensidade e alcance elevados pela veiculação televisiva, os "reality shows" trazem em si a possibilidade da explicitação do caráter de construção do audiovisual. Longe do projeto ilusionista do cinema clássico de Hollywood, nos "reality shows" a existência não de uma, mas de cerca de 30 câmeras, é reconhecida pelos participantes dos jogos, universo que inclui o público. Na primeira versão de "Casa dos Artistas" a edição dos episódios que iam ao ar se tornou, ela mesma, tema de disputa e discussão entre os participantes, que sentiam que seus personagens escapavam de sua interpretação, uma vez que, aos olhos do público, em larga medida, sua atuação era filtrada pelos cortes e seleção de trechos.
No mesmo programa, os interesses pessoais de cada um com a participação no programa também apareciam de maneira explícita. Supla repetia sem parar o comercial de seu CD, e assim por diante. Alguns declaravam que sua carreira precisava de um empurrão. A suspeita de manipulação dos telefonemas selecionados para votar foi levantada na mídia e enfrentada por Sílvio Santos, que rebateu as acusações dentro do programa. Mais do que escândalos e sensacionalismos, "reality shows" de ontem e de hoje, nos diversos países, compartilham um elemento que talvez tenha vindo para ficar.
Nem todas, mas as versões de maior sucesso do gênero envolvem, em alguma medida, a criação de redes de interação social. É como se a imagem superficial do aparelho televisivo finalmente ensejasse uma profundidade não de campo, mas de acesso ao que pode estar acontecendo agora em um outro lugar. Alguém em casa telefona, fala com Silvio Santos, comenta o que viu na casa, emite um voto que pode modificar o rumo do jogo. Seu voto pode ser influenciado pelo auditório, que se manifesta ativamente, pela notícia de jornal lida pelo apresentador, pelo discurso do participante isolado. No momento em que ele está ao telefone, a rede conecta vários desses pontos. Essa sensação de tocar o distante e desconhecido, torná-lo familiar, domesticá-lo e, principalmente, atuar sobre ele, faz o fascínio do "reality show".
As versões mais atraentes descartam a figura do autor, fazendo com que os rumos da trama se delineiem como resultante da atuação não de uma vontade criativa, mas de diversas vontades, com graus diferentes de força e poder de manipulação. O paradoxo é que a ausência de autoria quase sempre resulta em tramas fracas, com pouco fôlego e de desgaste rápido. Falta o invencionismo do autor, mas não para repetir velhas fórmulas do melodrama, rígidas e em certa medida já desgastadas. O desafio para a dramaturgia contemporânea talvez se situe aqui, na fronteira avançada pelo "reality show".


Esther Hamburger é antropóloga e professora na Escola de Comunicações e Artes da USP. É editora do site "Trópico" (www.uol.com.br/tropico).


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