São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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Do "love" à guerra

Inspirada em pop romântico, música-símbolo de "Tropa de Elite" dissemina-se em discos, celulares e estádios de futebol

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

A canção pop "Your Love" atingiu a 6ª posição na parada Billboard em 1986, ficando 22 semanas entre os "100 mais" da lista elaborada pela revista norte-americana homônima. Desde essa época a composição, do primeiro álbum do grupo britânico The Outfield, não pára de nos atravessar por ondas de rádio.
Mesmo que esses nomes não sejam lembrados por muitos leitores, a canção faz parte da paisagem sonora no Brasil. E, antropofagicamente apropriada, participa cada vez mais da cultura do país: sua melodia é a base do "Rap das Armas", criação de 1992 alçada a sucesso nacional no ano passado, com o filme "Tropa de Elite".
"Your Love", aquela do refrão "I just wanna use your love tonight/ I don't wanna lose your love tonight" [Só quero usar teu amor nesta noite/ Não quero perder teu amor nesta noite], começa com as mesmas notas que, nas versões em português, são cantadas com a onomatopéia bélica "parapapapapapapapapapa".
Enquanto o pop tipicamente oitentista falava de relações românticas de uma maneira descompromissada, o "Rap das Armas" oficial, cantado pela dupla MC Junior e MC Leonardo, denuncia a violência. Em sua invocação, a letra de Leonardo anuncia que vai "falar de um problema nacional", antes de listar mais de 20 nomes de armas -técnicos, como M-16, ou coloquiais, como "oitão".
Seria uma ironia? MC Leonardo diz à Folha que sua inspiração em "Your Love" foi puramente musical, e que desconhece a letra em inglês. Segundo o autor, a composição surgiu originalmente como uma descrição das belezas do Rio de Janeiro, mas só emplacou depois que ele acedeu à sugestão de incluir as armas na letra.

Glamourização
Simone Pereira de Sá, professora de comunicação na Universidade Federal Fluminense que pesquisa o funk na condição de "música eletrônica popular brasileira", ri da ironia involuntária: "É a polissemia, o deslize dos significantes, que faz parte da história da música "massiva", gravada. Você escreve a música com um sentido e não sabe o que vão fazer dela".
Na controvertida reinterpretação que circulou com os milhões de DVDs piratas comercializados antes do lançamento do filme, a denúncia é deixada de lado em favor de uma violenta e bem-humorada descrição do conflito entre facções armadas de duas favelas.
A apropriação da canção pelos colegas de baile e pela pirataria deu azo a críticas que põem a cultura funk no mesmo balaio de filmes que fazem a "estetização da violência", como "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite".
A teórica do funk apressa-se em defender seu campo de estudo: "Para circular, há "estetização", de seja o que for: a política, a violência, o amor. Isso não anula o potencial político, social, de discutir a violência", diz Simone Sá.

Antropofagia nos une
A versão mais violenta não prejudicou tanto Leonardo, pois tanto ele e o irmão Junior quanto Cidinho e Doca estão na trilha sonora de "Tropa de Elite", que já vendeu mais de 28 mil CDs. Segundo a gravadora EMI, já foram vendidos mais de 50 mil toques de celular com o "Rap das Armas". Leonardo esclarece que não ficaram rusgas entre os dois grupos.
O toque de celular pode ser ouvido em estádios como o Morumbi, em São Paulo, onde o deslocamento temático atingiu um nível mais extremo.
A canção melosa, transformada em funk por um jornaleiro que admirava as paisagens fluminenses, mas era atento à crise social, e foi apropriada como ode à guerra do tráfico, espalhou-se por outros Estados brasileiros como hino da guerra lúdica do futebol, entoado pelas torcidas organizadas. "Parapapapapapapapa clac bum, Torcida Independente derrubou mais um."

NA INTERNET - Leia a íntegra deste texto e ouça trechos de "Your Love" e "Rap das Armas" em www.folha.com.br/080521


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