São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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+ literatura

V.S. Naipaul, Prêmio Nobel de 2001, fala do aspecto autobiográfico de sua ficção, comenta suas relações com a Índia e aponta os autores preferidos

Um escritor sem opiniões

do "Le Monde"

Em seu comunicado, o júri do Prêmio Nobel classificou sir Vidiadhar Surajprasad Naipaul como um "circunavegador literário" e "filósofo moderno". V.S. Naipaul evoca sua trajetória de exilado, sua profissão de escritor e os autores que o acompanharam ao longo de sua vida. Ele refuta aqueles que o acusam de julgamentos extremistas sobre o Terceiro Mundo e sobre os muçulmanos, em lugar de considerar seus "sentimentos profundos sobre a humanidade".
Naipaul fala dos 45 anos de uma carreira literária singular. Aos 18 anos, saiu de Trinidad para estudar na Universidade de Oxford e escrever. Agora, aos 69 anos, sente que terminou a sua "viagem de escritor".
Que papel a autobiografia desempenha em seus escritos?
Tomemos um romance pessoal como "O Enigma da Chegada" (Cia. das Letras), que relata o estabelecimento na Inglaterra de um pretendente a escritor vindo do Caribe. O livro foi escrito espontaneamente. A periferia da narrativa é autobiográfica, mas não se trata da autobiografia completa do escritor. Ela não diz respeito nem à sua vida sentimental nem à profissional. Trata dos ímpetos do romancista, da maneira como ele acerta contas consigo e também entre ele e o resto do mundo. É nisso que sou um escritor "espontâneo".
Muitos leitores consideram que suas obras, entre ficção e autobiografia, definiram um novo território literário.
Vou lhe dizer como vejo as coisas. Quando se lê Somerset Maugham (1874-1965), ele está terrivelmente presente. Em todos os seus livros, adivinha-se a existência dele tal como a deseja apresentar: infância em Paris, estudos de medicina, viagens, autoria de peças de teatro etc. Maugham se refere constantemente a essas vidas e cria, em todos os seus livros, esse olhar que é o do narrador e o dele mesmo. Ao lê-lo você aceita isso. Eis o que considero a propósito do romance: os leitores não querem ler história completamente inventada. Estão em busca do modelo, do original. Desejam que o escrito se ligue a um fato real.
Em quatro décadas, sua escrita não evoluiu muito...
Nos primeiros livros eu era aprendiz. Apeguei-me a escrever simplesmente e a não criar frases longas demais. Desde que me tornei escritor aos meus próprios olhos -e isso aconteceu em "Uma Casa para o Sr. Biswas"-, comecei a desabrochar. Nesse livro, meu quarto, comecei a escrever frases mais longas. Mas o estilo é o mesmo, transparente.
O senhor escreve todos os dias?
Quando estou trabalhando em um livro, não faço mais nada. Vivo com o livro permanentemente. Trabalho o tempo todo. Mas não procuro ser original a qualquer preço.
Em seu famoso ensaio sobre Joseph Conrad (1857-1924), o sr. tomou como modelo definitivo a "fidelidade escrupulosa à verdade de suas sensações".
Penso muito em Conrad, sobretudo no que ele escreveu sobre a Malásia e as ilhas da Indonésia. Ele as levava a sério. Trata-se de um extraordinário esforço de simpatia, porque a Malásia fica tão longe de nós, você sabe, e no entanto ele aprendeu como falar dela. H.G. Wells ousou criticar Conrad por sua escrita lenta e tediosa.
Mas Conrad escrevia coisas muito mais profundas do que Wells no reino da ficção científica. Trata-se de um escritor maravilhoso. Você conhece a passagem em que Conrad explica como se sentiu ofuscado pelos aristocratas quando foi a Cambridge. Ele afirma que a melhor descrição da sensação é uma passagem em que Flaubert expõe a arrogante brutalidade gerada pelos ganhos excessivos, pelo fato de possuir e dominar bestas e homens na medida do necessário.
O entusiasmo pela Índia o levará a escrever outro livro de viagens sobre o país?
Não. Tenho o sentimento de ter acabado alguma coisa. Se me sugerissem um quarto livro, o prazer de renunciar a ele seria maior do que o de empreendê-lo. No primeiro livro, muito pessoal, escrito em 1962, descobri o país de meus ancestrais. O seguinte, de 1975, analisava o país. Mas foi o terceiro, em 1988, que me deu mais prazer e satisfação. Criou uma visão instantânea da cultura, da civilização, por meio da experiência de diversos personagens em diferentes partes do país. Acompanhei vidas que são um pequeno motim pessoal, como pude demonstrar.
A mídia o apresenta como simpatizante de um integralismo hinduísta...
Sei que me atribuem essas idéias. Mas falar de fundamentalismo hindu é uma contradição em termos. Isso não existe. O hinduísmo não é uma religião desse tipo. E há muitas forças no hinduísmo que não são representadas pelo BJP (partido nacionalista hindu). Meu interesse por esses movimentos deve-se ao fato de que atendem a pessoas que moram num país avassalado por cinco ou seis séculos de governo brutal da parte dos invasores muçulmanos. Essas populações, especialmente os camponeses, foram tão oprimidas que todo movimento que as represente se mostra feroz. Os esquerdistas que definem essas pessoas pobres como fascistas estão errados. Acredito apenas que eles reivindiquem um pouco sua identidade própria. Não se pode falar sobre isso empregando um vocabulário europeu.
O sr. disse um dia que não tinha opiniões. Foi o que proclamou Flaubert: um escritor não deveria julgar.
Verdade. Não tenho nem posição nem crença política. Nenhuma. Não tenho ideais políticos. Tenho emoções, reações, sentimentos profundos sobre a humanidade. E isso é certamente suficiente. Mal consigo entender as idéias políticas dos outros, é como aceitar uma teologia, e isso me é muito difícil.
Que autores o acompanham até hoje, além de Conrad, Maugham e Flaubert?
Gogol, o do início de carreira, que nos dava a primeira visão da Rússia, expondo a vida das pessoas, a passividade. Depois dessa descrição, ele não tinha muito mais a acrescentar. Ele realizara sua viagem de escritor, estava completa. E Balzac. Balzac criou pela primeira vez uma sociedade ao olhar em torno de si. No entanto senti um pequeno choque, outro dia, ao reler "A Pele de Onagro". Senti uma emoção viva ao lê-lo 27 anos atrás. Tentei reler o romance e percebi, ali, o trabalho de Balzac como escritor. Vi Balzac escrevendo. Eu o vi de verdade. A magia tinha desaparecido. É preciso que eu releia "As Ilusões Perdidas". Creio que a mágica funcionará. E também Stendhal, escritor estranho, educador, mestre da educação dos sentimentos. Maupassant é outro grande escritor, mesmo que seus romances sejam um pouco longos.
Para retomar sua expressão, o sr. tem a sensação de que concluiu sua viagem?
Não quero parecer vaidoso, mas creio que sim, concluí a viagem. Tudo que fizer de hoje em diante é só um acréscimo. Preencher lacunas.



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