São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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"Os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo religiosas"

por Jürgen Habermas

O tema proposto para nossa discussão evoca uma pergunta que o historiador Ernst Wolfgang Böckenförde apresentou nos anos 60 por meio da seguinte fórmula concisa: o Estado liberal e secularizado consome pressupostos normativos que ele mesmo não pode garantir?
Nisso se expressa a incerteza de que o Estado constitucional democrático possa renovar os pressupostos da sua existência a partir de seus próprios recursos, assim como a suspeita de que ele está voltado para tradições autóctones quanto a concepções de mundo ou religiosas, em todo caso, de modo coletivamente obrigatório, éticas. Isso colocaria o Estado, obrigado a uma neutralidade quanto a concepções de mundo, em dificuldade em vista do "fato do pluralismo". Entretanto somente essa inferência não fala contra a própria suposição.


O peso das conseqüências da tolerância, como mostram as regras de aborto, não se divide simetricamente entre crentes e não-crentes


Em primeiro lugar, gostaria de especificar o problema de acordo com dois pontos de vista. Sob o ponto de vista cognitivo, a dúvida relaciona-se à questão se um domínio político, após uma total positivação do direito, ainda é acessível a uma justificação secular quer dizer, não religiosa ou pós-metafísica (1).
Ainda que se conceda uma tal legitimação, subsiste, quanto ao ponto de vista motivacional, a dúvida se uma coletividade pluralista quanto a concepções de mundo pode ser estabilizada de um modo normativo, portanto para além de um simples modus vivendi, pela subordinação a um entendimento de fundo, na melhor das hipóteses formal, limitado a procedimentos e princípios (2).
Mesmo que se possa desmanchar tal dúvida, permanece o fato de que ordenamentos liberais se encontram direcionados para a solidariedade de seus cidadãos, e suas fontes poderiam, em conseqüência de uma secularização "descarrilada", fracassar completamente. Esse diagnóstico não pode ser recusado, mas não precisa ser entendido como se os cultos entre os defensores da religião estivessem, a partir disso, criando, até certo ponto, uma mais-valia (3).
Em vez disso, vou sugerir que se entenda a secularização cultural e social como um processo didático duplo, que obriga as tradições do Iluminismo assim como as doutrinas religiosas a uma reflexão acerca de suas respectivas fronteiras (4).
Em vista de sociedades pós-seculares, coloca-se a questão acerca de que atitudes cognitivas e quais expectativas normativas o Estado liberal precisa atribuir aos seus cidadãos crentes e descrentes no convívio entre si (5).

1. O liberalismo político (que eu defendo sob a forma especial de um republicanismo kantiano) é entendido como uma justificação não-religiosa e pós-metafísica dos fundamentos normativos do Estado constitucional democrático.
Essa teoria encontra-se na tradição de um direito racional, que prescinde das suposições fortemente cosmológicas ou soteriológicas das doutrinas do direito natural clássicas e religiosas.
A história da teologia cristã na Idade Média, especialmente a escolástica tardia espanhola, pertence naturalmente à genealogia dos direitos humanos. Mas os fundamentos da legitimação da violência neutra quanto a concepções de mundo do Estado têm sua origem, no final das contas, nas fontes profanas próprias da filosofia dos séculos 17 e 18. Somente muito mais tarde, a teologia e a igreja dominaram as exigências espirituais do Estado constitucional revolucionário. No século 20, a fundamentação pós-kantiana dos princípios constitucionais liberais ocupou-se menos com os vestígios do direito natural objetivo (como da ética material de valores) do que com formas históricas e empíricas de crítica. A tarefa central é a de esclarecer por que o processo democrático vale como um procedimento de uma normatização legítima: enquanto ele preencher as condições de uma formação de opiniões e vontades inclusiva e discursiva, ele fundamenta uma suposição da aceitabilidade racional das conseqüências; e por que a democracia e os direitos do homem, no processo de elaboração de uma Constituição, delimitam-se mutuamente a partir de uma mesma fonte: a institucionalização jurídica do procedimento de normatização democrática exige a garantia concomitante dos direitos fundamentais políticos e liberais.
O ponto de referência dessa estratégia de justificação é a Constituição, que os cidadãos associados dão para si mesmos, e não a domesticação de uma violência do Estado subsistente, pois essa precisa primeiro ser gerada nos caminhos que perfazem a entrega da Constituição democrática. Uma violência de Estado "constitutiva" (e não apenas domada constitucionalmente) é legítima até o seu âmago. Ao passo que o positivismo da vontade do Estado -com raízes no período imperial- na teoria do direito de Estado alemã deixou um esconderijo para uma substância ética "do Estado" ou "do político" livre do direito, não há, no Estado constitucional, um sujeito dominador que se nutra de uma substância anterior ao direito.
À luz dessa herança problemática, a pergunta de Böckenförde foi entendida como se uma ordem constitucional completamente positivada tivesse necessidade da religião ou de algum outro "poder de contenção" para a segurança cognitiva de seus fundamentos de validade. De acordo com tal leitura, a reivindicação de validade do direito positivo deve estar dirigida para uma fundamentação nas convicções pré-políticas e éticas de comunidades religiosas ou nacionais, pois uma tal ordem jurídica não pode ser somente legitimada, auto-referencialmente, a partir de procedimentos jurídicos gerados democraticamente.
Mas, contra uma compreensão do Estado constitucional baseada no direito hegeliano, a Constituição processualista, inspirada por Kant, insiste numa fundamentação dos fundamentos constitucionais autônoma, racionalmente aceitável para todos os cidadãos, de acordo com sua pretensão.

2. Parto do princípio de que a Constituição do Estado liberal pode financiar sua necessidade de legitimação de modo auto-suficiente, ou seja, a partir dos efetivos cognitivos de um orçamento argumentativo independente de tradições religiosas e metafísicas. Todavia, mesmo sob essa premissa, permanece uma dúvida quanto ao ponto de vista motivacional. Os pressupostos de existência normativos do Estado constitucional democrático são, com respeito ao papel dos cidadãos do Estado, que se compreendem como sujeitos do direito, mais exigentes do que em relação ao papel dos cidadãos da sociedade, que são objetos do direito.
De quem é objeto do direito espera-se somente que, ao apreenderem suas liberdades (e reivindicações) subjetivas, não ultrapassem as fronteiras legais.
Algo diverso do que ocorre com a obediência diante de leis de liberdade compulsórias dá-se com as motivações e atitudes que se esperam de cidadãos do Estado no papel de co-legisladores. Estes deveriam apreender seus direitos de comunicação e participação de forma ativa, e não somente tendo em vista seus próprios interesses, mas de um modo que seja orientado pelo bem da comunidade. Isso exige um gasto motivacional dispendioso, que não pode ser obrigado legalmente.
Um dever de participar das eleições seria, num Estado de Direito democrático, um corpo estranho na mesma medida que uma solidariedade decretada. A disponibilidade de ser responsável, dado o caso, por concidadão estranhos e que permanecem anônimos e de aceitar interesses gerais devem ser apenas esperados de cidadãos de coletividades liberais.
Por isso as virtudes políticas, mesmo quando são apenas "cobradas" em forma de troco, são essenciais para a existência de uma democracia. Elas pertencem à socialização nas práticas e modos de pensamento de uma cultura política liberal. O status da cidadania, até certo ponto, está encaixado numa sociedade civil que vive de fontes espontâneas -se se quiser, "pré-políticas".
Disso não segue que o Estado liberal seja incapaz de reproduzir seus pressupostos motivacionais a partir de seus próprios efetivos seculares. Os motivos para uma participação dos cidadãos na formação política de opiniões e vontades alimentam-se, por certo, de planos de vida éticos e formas de vida culturais. Práticas democráticas, porém, desenvolvem uma dinâmica política própria.
O Estado de Direito da Constituição democrática não garante, de fato, somente liberdades negativas para os cidadãos civis preocupados com seu próprio bem-estar; com a dispensa de liberdades comunicativas, ele também mobiliza a participação dos cidadãos na disputa pública acerca de temas que concernem a todos coletivamente.
Assim, por exemplo, nos debates atuais em torno da reforma do Estado de Bem-Estar Social, da política de imigração, da Guerra do Iraque e da eliminação do serviço militar obrigatório, trata-se não somente de políticas singulares mas sempre, também, da interpretação duvidosa dos princípios constitucionais e, implicitamente, do modo como nós, à luz da diversidade de nossos modos de vida culturais, do pluralismo de nossas concepções de mundo e convicções religiosas, queremos nos compreender como cidadãos da Alemanha e como europeus.
De fato, numa retrospectiva histórica, um pano de fundo religioso comum, uma língua comum e, sobretudo, o despertar da consciência nacional foram benéficos para o surgimento de uma solidariedade cidadã altamente abstrata. As disposições republicanas nesse meio tempo, porém, desprenderam-se amplamente desses lastros pré-políticos. Pensem-se nos discursos ético-políticos acerca do Holocausto e da criminalidade em massa: eles tornaram os cidadãos alemães conscientes da Constituição como aquisição.

3. De acordo com as considerações feitas até agora, a natureza secular do Estado constitucional democrático não apresenta nenhuma fraqueza intrínseca ao sistema político como tal. Com isso, não estão sendo colocadas de lado causas externas.
Uma modernização descarrilada da sociedade no seu todo poderia muito bem tornar o vínculo democrático frouxo e enfraquecer o tipo de solidariedade para o qual o Estado democrático, sem que a possa obrigar juridicamente, está orientado. Evidências para um tal esmigalhamento da solidariedade cívica mostram-se no contexto mais amplo de uma dinâmica politicamente descontrolada formada pela economia mundial e a sociedade mundial.
Mercados, que não podem ser democratizados como administrações estatais, assumem, de modo crescente, funções de comando em setores da vida que até então eram mantidos coesos de forma política ou pelas de formas de comunicação pré-políticas. Dessa forma, não somente esferas privadas, em uma taxa crescente, são redirecionadas para mecanismos de ação cuja orientação é o sucesso, orientação que em cada caso depende de preferências próprias; também a esfera que é vencida pelas pressões públicas de legitimação está encolhendo.
O privatismo cívico é fortalecido pela desencorajadora perda de função de uma formação de opiniões e vontades democrática, que por enquanto somente funciona nas arenas nacionais pela metade e por isso não alcança mais os processos decisórios deslocados para planos supranacionais. Também a esperança, em via de desaparecer, de um poder de configuração político da comunidade internacional estimula a tendência da despolitização dos cidadãos. Em vista dos conflitos e das gritantes injustiças sociais de uma sociedade mundial altamente fragmentada, cresce a decepção com cada novo insucesso no caminho (primeiramente adotado após 1945) de uma constitucionalização do direito dos povos.
Um ceticismo radical quanto à razão é, por princípio, estranho à tradição católica. Mas o catolicismo teve dificuldade para lidar, até os anos 60 do século passado, com o pensamento secular do humanismo, do iluminismo e do liberalismo político. Assim, hoje novamente encontra ressonância o teorema de que uma modernidade contrita só pode ser auxiliada para fora de um beco sem saída por meio de uma orientação religiosa dirigida para um ponto de referência transcendental.
Considero melhor a questão se uma modernidade ambivalente irá se estabilizar a partir das forças seculares de uma razão comunicativa, que não deve ser levada ao extremo por meio de uma crítica da razão, mas que deve ser tratada de forma não-dramática, como uma questão empírica em aberto. Com isso, não quero incluir o fenômeno da permanência da religião em um ambiente ainda secularizado como um fato puramente social.

4. Em oposição à moderação ética de um pensamento pós-metafísico, do qual subtrai-se todo conceito obrigatório acerca da vida boa e exemplar, nas Escrituras sagradas e nas tradições religiosas articularam-se intuições acerca do erro e da libertação, do fim salvador de uma vida experimentada como sem solução, que, por séculos, foram sutilmente soletradas até a exaustão e mantidas hermeneuticamente despertas. Por isso, na vida comunitária de sociedades religiosas, contanto que elas somente evitem o dogmatismo e a coação moral, pode permanecer algo intacto que alhures se perdeu e que, somente com o conhecimento profissional de especialistas não pode ser restabelecido -refiro-me a possibilidades de expressão e sensibilidades suficientemente diferenciadas para uma vida fracassada, para patologias sociais, para o malogro de projetos individuais de vida e para a deformação de contextos desfigurados de vida.
A interpenetração entre cristandade e metafísica grega não produziu apenas a forma espiritual da dogmática teológica e a helenização -não em todos os aspectos- benéfica da cristandade. Também fomentou uma apropriação de conteúdos genuinamente cristãos pela filosofia. Esse trabalho de apropriação transformou o sentido originariamente religioso, mas não o deflacionou ou consumiu de modo que o esvaziasse.
A tradução da crença na imagem de Deus presente no homem para a dignidade igual -e a ser necessariamente observada por todos os homens- é uma tal tradução salvadora. Ela torna acessível o conteúdo de conceitos bíblicos para além das fronteiras de uma comunidade religiosa para o público genérico dos que não crêem ou crêem em outra coisa. Benjamin foi um que às vezes obtinha sucesso em tais traduções.
Assim, é do próprio interesse do Estado constitucional circular de forma que mantenha contato com todas as fontes culturais das quais se alimenta a consciência normativa e a solidariedade dos cidadãos. Essa consciência, que se tornou conservadora, espelha-se no discurso da "sociedade pós-secular".
Com isso não se aponta apenas para o fato de que a religião se afirma num ambiente crescentemente secular e de que a sociedade, por agora, conta com a permanência das comunidades religiosas. O termo "pós-secular" também não confere às sociedades religiosas apenas o reconhecimento público pela contribuição funcional que ela executa em vista da reprodução de motivos e atitudes desejáveis. Na consciência pública de uma sociedade pós-secular, espelha-se muito mais um juízo normativo que tem conseqüências para o contato político entre cidadãos não-crentes e crentes.

5. De um lado, a consciência religiosa foi forçada a processos de acomodação. Toda religião é, originariamente, "imagem do mundo" ou "doutrina compreensiva", também no sentido de que reivindica a autoridade de estruturar uma forma de vida no seu todo. Essa reivindicação de um monopólio interpretativo e de uma configuração abrangente da vida a igreja teve de abandonar devido às condições impostas pela secularização do saber, da neutralização da violência do Estado e da liberdade geral de credo.
Com a diferenciação funcional de sistemas sociais parciais, também a vida das comunidades religiosas separa-se dos seus ambientes sociais.
O papel do membro da comunidade diferencia-se daquele do cidadão. E, como o Estado liberal se direciona para uma integração política dos cidadãos que ultrapasse um mero modus vivendi, essa diferenciação das instâncias das quais alguém é membro não pode se esgotar numa acomodação cognitivamente despretensiosa do etos religioso a leis da sociedade secular impostas.
Muito mais do que isso, o ordenamento jurídico universalista e a moral social igualitária precisam ser unidos, a partir de dentro, ao etos da comunidade de tal forma que um, consistentemente, resulte do outro.
Essa expectativa normativa, com a qual o Estado liberal se defronta com as comunidades religiosas, coincide com os próprios interesses delas à medida que se lhes abre a possibilidade de desempenhar, para além do espaço público político, uma influência própria sobre a sociedade como um todo. De fato, o peso das conseqüências da tolerância, como mostram as regras de aborto mais ou menos liberais, não se divide simetricamente entre crentes e não-crentes. A compreensão da tolerância própria de sociedades pluralistas que possuem uma Constituição liberal não encoraja apenas os crentes, no convívio com quem não crê ou crê de outro modo, a perceber que eles precisam contar, de modo racional, com a permanência de um dissenso. Por outro lado, a mesma percepção, no quadro de uma cultura política liberal, é exigida dos não-crentes no contato com os crentes.
A neutralidade, quanto às concepções de mundo, da violência do Estado -que garante as mesmas liberdades éticas para cada cidadão- é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada. Cidadãos secularizados, enquanto se apresentarem nos seus papéis de cidadãos, não devem negar, fundamentalmente, um potencial de verdade a visões de mundo religiosas nem colocar em questão o direito dos concidadãos crentes de contribuir, por meio de uma linguagem religiosa, para com discussões públicas. Uma cultura politicamente liberal pode esperar até mesmo dos seus cidadãos secularizados que tomem parte dos esforços em traduzir contribuições relevantes da linguagem religiosa para uma linguagem que seja publicamente acessível.

Copyright: Academia Católica da Baviera.
Tradução de Erika Werner.


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