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+ cinema
O diretor italiano Marco Bellocchio fala à Folha de seu novo filme, "Bom Dia, Noite", sobre o seqüestro
do político italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas em 1978 e que estréia em SP e no RJ na sexta-feira
A obscura claridade DAS ESTRELAS
ALDO VILLANI
MARIA ANDREA MUNCINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Ele fala lentamente, como
quem estivesse cansado ou
sem vontade. Na verdade ele
preferiria não falar, especialmente com os repórteres que o assediaram durante semanas. Preferiria
estar entre os jovens, entre colegiais.
Marco Bellocchio, de Piacenza (norte da Itália), 65 anos, pouco mais de
20 filmes no currículo, voz levemente abafada e nasal, falou cada vez
mais animado à Folha sobre o seu
novo filme -"Bom Dia, Noite".
Ao entrar nas Brigadas Vermelhas, a vida sentimental não vale mais nada, a única coisa que conta é a derrota do Estado burguês e das multinacionais
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Enquanto fala, não há mais a comoção dos 15 minutos de aplausos
que acolheram o filme no Festival de
Veneza (embora o Leão de Ouro tenha ido para o "O Retorno", de Andrei Zvyagintsev), mas há o desejo
de esclarecer, de falar do esforço e do
empenho de toda a equipe, de explicar por que o seu filme "traiu" "Il
Prigioniero" [O Prisioneiro], de
Laura Braghetti.
Vamos ao ponto: Aldo Moro [ex-premiê e líder democrata-cristão italiano, morto em 1978 pelo grupo terrorista Brigadas Vermelhas] levanta-se da cama e fica olhando o sono
dos seus jovens seqüestradores, como fazia o pai de Bellocchio com os
seus numerosos filhos, depois sai da
prisão claustrofóbica, passeia pela
cidade ainda mergulhada no último
sono da noite, respira o ar fresco da
manhã e retorna ao seu cativeiro,
consciente do final próximo, cuja lógica oculta ele gostaria de entender...
Sonho? Realidade? Desejo ou imaginação da sua seqüestradora, dilacerada pela piedade, pelo remorso,
pela crise política? Numa seqüência
de poucos minutos, realiza-se um
grande momento do cinema, entre
poesia e lamento por aquilo que podia ter sido e não foi, um modo de
dizer que o "político" é sempre "pessoal" e vice-versa, com um preço a
pagar à razão e ao sentimento.
Filho de um advogado e de uma
professora, criado numa família de
seis filhos em que a "presença" materna parece predominar, o jovem
Marco Bellochio fez os estudos em
ambientes de formação católica: o
ginásio das escolas cristãs, o liceu
dos padres barnabitas de Lodi, a
Universidade Católica de Milão.
Mas os estudos universitários de
filosofia foram ficando para trás, enquanto a vontade de ser ator se impunha cada vez mais, até que, em
1959, ele começa a freqüentar o Centro Experimental de Cinematografia. Nesse ponto, mais um desvio de
rota, dessa vez para ser diretor.
E é a escolha definitiva. Em 62 obtém o diploma, depois, com uma
"Pesquisa sobre os Métodos de Trabalho de Bresson e Antonioni com
os Atores", ganha uma bolsa de estudos da "Slade School of Fine Arts",
em Londres. O caminho estava traçado. Com o dinheiro de parentes e
amigos, financia a produção do seu
primeiro longa-metragem, apresentado em Veneza em 1965: "De Punhos Cerrados", que lhe dará fama
internacional.
Chegam os tempos da política, da
militância na União de Comunistas
Italianos (marxistas-leninistas), um
compromisso de peso num momento difícil da história do país, em que a
sociedade capitalista e de consumo
luta para organizar um consenso.
As marcas dessa época estão em
"Discutiamo, Discutiamo" (episódio de "Amore e Rabbia", 1969)
"Sbatti il Mostro in Prima Pagina"
(1972) e "Matti da Slegare" (1975).
Bellocchio abraçará o teatro ("Henrique 4º", de Pirandello, e "A Gaivota", de Tchekóv), enveredando pela
autobiografia e a introspecção, muitas vezes auxiliado pelo analista, e
não sem algumas quedas.
No Brasil, ficaria mais conhecido
pelas cena de felação de "Diabo no
Corpo" (1986), filme livremente
adaptado da obra homônima do escritor francês Raymond Radiguet. A
história trata da paixão proibida de
um estudante por uma mulher, cujo
marido está na prisão por ter ligações com movimentos radicais e cujo psicólogo é o pai do estudante.
Depois de abandonar os roteiros
de tese, retorna aos temas mais amplos, como "Príncipe de Homburg"
(de Kleist), com o qual encena os
conflitos entre razão e inconsciente,
sentimento e lei, sem renunciar ao
gosto pela imagem, aos ritmos narrativos que percorrem a tensão dramática. O "político" volta a ser "pessoal", como já havia acontecido no
passado: "A Babá" (1999), "Hora de
Religião" (2002) e, hoje, "Bom Dia,
Noite" percorrem essa linha com rigor e coerência.
Folha - Gostaria de começar pelo título do filme, que deixou o público
muito curioso.
Marco Bellocchio - Emily Dickinson
escreveu: "Bom Dia, Meia-Noite", e
eu achava que esse paradoxo
-"bom dia/noite"- poderia servir
para nos introduzir no universo
meio infernal daquela prisão, um inferno em que as chamas não são visíveis, mas onde os quatro guerrilheiros escolheram viver juntos, forçando um prisioneiro a viver com eles,
na obscuridade, na noite. É isso:
"Bom Dia, Noite" pode ser explicado pelo paradoxo bizarro de um
bom dia à noite que está para chegar.
Folha - Além dos fatos históricos e
verídicos, no filme o sr. quis privilegiar os conflitos humanos e políticos
dos personagens. É isso mesmo?
Bellocchio - Não exatamente. Não
quis privilegiar o conflito psicológico dos personagens: como todos os
artistas, tentei criar personagens
sem querer demonstrar teses histórico-políticas.
Os personagens me interessavam
porque, a partir de pequenos dados
reais, aos poucos eles se transformaram em outra coisa, em certo sentido se tornaram autônomos. Quem
não consegue desvencilhar-se da
crônica histórica faz objeções ao filme, acha os personagens inverossímeis, porque fica bloqueado, preso a
esses personagens por uma fidelidade quase obrigatória, e me refiro sobretudo aos quatro guerrilheiros,
sem conseguir aceitar que um artista
possa recriá-los inteiramente, tornando-os personagens autônomos.
Num país como a Itália, essa liberdade criativa é ainda mais difícil de
ser alcançada, justamente pela magnitude que a tragédia teve. Há fatos
que se tornam centrais em um determinado período histórico, e, depois
da guerra, o assassinato de Aldo Moro é um deles, um assassinato que
mudou a história do nosso país: querer ser livre diante de um fato tão importante é difícil, e entendo que
muitos prefiram se esconder atrás
de uma suposta fidelidade à história
-suposta, porque de fato não existe. Especialmente nesse episódio, em
que não existe uma só versão.
Enfim, no meu filme há quatro
personagens diferentes entre si e diferentes dos personagens históricos:
há um Aldo Moro muito diferente
do real, mas que se chama Aldo Moro; e há toda uma crônica histórica,
televisionada, em que a realidade e
os fatos externos se tornam diferentes, gerenciados pelo poder. Essa e
muitas outras coisas formam o caráter estilístico do filme.
Folha - O personagem interpretado
por Piergiorgio [Bellocchio, filho do
diretor] diz, a certa altura: "Resolvi
todos os problemas, parei de sonhar".
Por que ele diz isso?
Bellocchio - Não posso me aventurar na teoria da interpretação dos sonhos, até porque não sou capaz, mas
o que ele diz quer dizer mais ou menos isto: se estou dentro desta história, devo necessariamente renunciar, subjugar o meu espírito e toda
aquela parte da minha vida com que
sonhei, ou seja, os sentimentos, as
paixões e tudo o que não se relaciona
com a política. Ao entrar nas Brigadas Vermelhas, a vida sentimental
não vale mais nada, a única coisa
que conta é a derrota do Estado burguês e das multinacionais, a realização de uma sociedade diferente, em
suma, fazer a revolução.
Num projeto desse tipo, como em
qualquer sociedade secreta, a própria vida se torna um valor secundário, a vida é submetida completamente ao serviço da idéia revolucionária, onde já não há mais lugar para
os sonhos.
Folha - Por que desde os seus primeiros filmes o sr. sempre insere uma
cena de humorismo surrealista?
Bellocchio - Nisso há apenas um toque... Há uma espécie de dimensão
provocadora, derrisória, sarcástica,
num tom mais de tragédia ou de
drama. É algo que faz parte do meu
caráter e que se transfere para o meu
modo de fazer imagens.
Há sempre um espaço em que, em
certas situações, o paradoxo, o absurdo e a irrisão podem conviver
com o resto. Lembro que, no "Diabo
no Corpo", durante um processo,
uma garota fazia chegar ao seu namorado terrorista um sorvete por
meio de um tenente dos carabineiros. Ainda nesse filme, a mãe do namorado terrorista telefonava para o
pai do garoto... É assim, a dimensão
grotesca ou sarcástica faz parte do
meu estilo.
Folha - A afirmação segundo a qual
o seu Aldo Moro tem algo de seu pai é
procedente?
Bellocchio - Acho que Aldo Moro
não é o meu pai e talvez nem seja Aldo Moro, não sei. É um personagem
triste, melancólico, desiludido com
os seus companheiros de partido,
mas sempre capaz de se contrapor
ao ideologismo cego dos seus juízes
carcereiros, porque responde com o
bom senso, captando o absurdo de
certas falas ou de certas situações ou,
às vezes, o disparate de certos argumentos. No filme, meu pai entra em
dois momentos: o primeiro, nos
passeios de Aldo Moro, quando o filme perde todo o realismo. O espectador vê Aldo Moro passeando, quase um prisioneiro entre os carcereiros, por sua vez prisioneiros, uma
pessoa que se movimenta, lê livros,
se senta, observa a protagonista.
De fato aqueles passeios de Moro
são inspirados nos passeios de meu
pai, mas as cenas estavam em situações inteiramente distintas, como
quando eu, criança, via entre a vigília
e o sono o meu pai observando a
mim e aos meus irmãos com a tristeza do doente.
Além disso, na época não me dei
conta da tragicidade da morte dele,
pensei que pudesse superá-la, como
se não fosse algo próximo.
Folha - O que você poderia nos dizer
quanto aos problemas de direção?
Bellocchio - Só isto: que os vários
roteiros me aproximaram do que o
filme terminou sendo. Tudo foi rodado como ficção, e não a partir da
realidade, embora se possa pensar o
contrário, se levarmos em conta a
aparência de realismo. O roteiro, ao
ser trabalhado, tornou-se cada vez
mais preciso, especialmente ao ser
integrado ao trabalho dos atores e ao
ambiente, inventando a cada vez
coisas novas, algumas resolvidas só
no final, como só no final -agora
posso dizer- encontrei o estilo definitivo para rodar o filme.
Por exemplo, o personagem de
Moro: num primeiro momento, ele
não deveria ser visto, mas só ouvido,
vislumbrado, como uma espécie de
sombra; o fato de colocá-lo em evidência, mesmo que por uma fresta,
foi uma escolha que surgiu no set de
filmagem, durante as tomadas.
Folha - Na sua opinião, qual o papel
da música no filme? Que relação se estabelece com os músicos?
Bellocchio - Com os músicos, a cada vez é diferente. Nos dois últimos
filmes ("Hora de Religião", 2002;
"Bom Dia, Noite", 2003) a partitura
musical mudou. Até a "A Babá", a
música foi composta especificamente pelo músico, que começou a trabalhar logo após a primeira montagem. Depois de a música ter sido mixada, o filme foi revisto por inteiro.
Já no caso de "Bom Dia, Noite", senti
uma imediata necessidade de ter
materiais musicais para adaptar à
montagem, com o compositor presente aos trabalhos.
Folha - O que diria aos jovens que
pretendem fazer cinema?
Bellocchio - O cinema é um trabalho em que o fazer é fundamental. À
diferença da época em que eu comecei, hoje a tecnologia oferece extraordinárias possibilidades com
pouquíssimos recursos, e, para um
diretor, a pior coisa seria esperar
equipar-se para poder começar a filmar. É possível construir belíssimas
imagens com uma câmera de principiante, ou seja, fazer imagens continuamente, como um exercício permanente, como os pintores com a
pintura. Quanto ao que diz respeito
à formação humana, cultural e política, só posso dizer que é algo subjetivo, nada mais.
Folha - Sua paixão pelo teatro foi
definitivamente abandonada ou só
momentaneamente suspensa?
Bellocchio - O tempo de fazer
muitas coisas simultaneamente já
passou. Mas posso dizer que a vontade não foi abandonada. Está programada para a próxima temporada
de primavera, em Piacenza, a direção do "Rigoletto", de Verdi, que será a minha primeira experiência no
campo da ópera. Considero-a uma
experiência esporádica porque, repito, não há tempo para fazer as duas
coisas, teatro e cinema. Acho que devo me concentrar no cinema...
Folha - Quais são os seus próximos
projetos?
Bellocchio - Um deles é "O Cineasta de Casamentos", um filme com
Sergio Castellitto, ainda muito no
início, embora eu já tenha passado
muito tempo com ele para uma primeira elaboração.
Folha - Que tipo de relação você teve
com o público, desde o Festival de Veneza até hoje?
Bellocchio - Até agora pude ver salas lotadas, com jovens que fazem
perguntas, vi entusiasmo, um público atento; há dois meses excursiono
pelas escolas, as pessoas querem ver
e saber, querem ser envolvidas. Há
críticas também, mas em geral há
sempre uma enorme emoção e atenção pelo filme, porque acho que essa
história tocou não só a consciência
dos italianos mas também a consciência profunda, e isso pode ajudar
a compreender a multiplicidade e a
aspereza das reações.
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