São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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+ cinema

O diretor italiano Marco Bellocchio fala à Folha de seu novo filme, "Bom Dia, Noite", sobre o seqüestro do político italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas em 1978 e que estréia em SP e no RJ na sexta-feira

A obscura claridade DAS ESTRELAS

ALDO VILLANI
MARIA ANDREA MUNCINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Ele fala lentamente, como quem estivesse cansado ou sem vontade. Na verdade ele preferiria não falar, especialmente com os repórteres que o assediaram durante semanas. Preferiria estar entre os jovens, entre colegiais. Marco Bellocchio, de Piacenza (norte da Itália), 65 anos, pouco mais de 20 filmes no currículo, voz levemente abafada e nasal, falou cada vez mais animado à Folha sobre o seu novo filme -"Bom Dia, Noite".


Ao entrar nas Brigadas Vermelhas, a vida sentimental não vale mais nada, a única coisa que conta é a derrota do Estado burguês e das multinacionais


Enquanto fala, não há mais a comoção dos 15 minutos de aplausos que acolheram o filme no Festival de Veneza (embora o Leão de Ouro tenha ido para o "O Retorno", de Andrei Zvyagintsev), mas há o desejo de esclarecer, de falar do esforço e do empenho de toda a equipe, de explicar por que o seu filme "traiu" "Il Prigioniero" [O Prisioneiro], de Laura Braghetti.
Vamos ao ponto: Aldo Moro [ex-premiê e líder democrata-cristão italiano, morto em 1978 pelo grupo terrorista Brigadas Vermelhas] levanta-se da cama e fica olhando o sono dos seus jovens seqüestradores, como fazia o pai de Bellocchio com os seus numerosos filhos, depois sai da prisão claustrofóbica, passeia pela cidade ainda mergulhada no último sono da noite, respira o ar fresco da manhã e retorna ao seu cativeiro, consciente do final próximo, cuja lógica oculta ele gostaria de entender...
Sonho? Realidade? Desejo ou imaginação da sua seqüestradora, dilacerada pela piedade, pelo remorso, pela crise política? Numa seqüência de poucos minutos, realiza-se um grande momento do cinema, entre poesia e lamento por aquilo que podia ter sido e não foi, um modo de dizer que o "político" é sempre "pessoal" e vice-versa, com um preço a pagar à razão e ao sentimento.
Filho de um advogado e de uma professora, criado numa família de seis filhos em que a "presença" materna parece predominar, o jovem Marco Bellochio fez os estudos em ambientes de formação católica: o ginásio das escolas cristãs, o liceu dos padres barnabitas de Lodi, a Universidade Católica de Milão.
Mas os estudos universitários de filosofia foram ficando para trás, enquanto a vontade de ser ator se impunha cada vez mais, até que, em 1959, ele começa a freqüentar o Centro Experimental de Cinematografia. Nesse ponto, mais um desvio de rota, dessa vez para ser diretor.
E é a escolha definitiva. Em 62 obtém o diploma, depois, com uma "Pesquisa sobre os Métodos de Trabalho de Bresson e Antonioni com os Atores", ganha uma bolsa de estudos da "Slade School of Fine Arts", em Londres. O caminho estava traçado. Com o dinheiro de parentes e amigos, financia a produção do seu primeiro longa-metragem, apresentado em Veneza em 1965: "De Punhos Cerrados", que lhe dará fama internacional.
Chegam os tempos da política, da militância na União de Comunistas Italianos (marxistas-leninistas), um compromisso de peso num momento difícil da história do país, em que a sociedade capitalista e de consumo luta para organizar um consenso.
As marcas dessa época estão em "Discutiamo, Discutiamo" (episódio de "Amore e Rabbia", 1969) "Sbatti il Mostro in Prima Pagina" (1972) e "Matti da Slegare" (1975). Bellocchio abraçará o teatro ("Henrique 4º", de Pirandello, e "A Gaivota", de Tchekóv), enveredando pela autobiografia e a introspecção, muitas vezes auxiliado pelo analista, e não sem algumas quedas.
No Brasil, ficaria mais conhecido pelas cena de felação de "Diabo no Corpo" (1986), filme livremente adaptado da obra homônima do escritor francês Raymond Radiguet. A história trata da paixão proibida de um estudante por uma mulher, cujo marido está na prisão por ter ligações com movimentos radicais e cujo psicólogo é o pai do estudante.
Depois de abandonar os roteiros de tese, retorna aos temas mais amplos, como "Príncipe de Homburg" (de Kleist), com o qual encena os conflitos entre razão e inconsciente, sentimento e lei, sem renunciar ao gosto pela imagem, aos ritmos narrativos que percorrem a tensão dramática. O "político" volta a ser "pessoal", como já havia acontecido no passado: "A Babá" (1999), "Hora de Religião" (2002) e, hoje, "Bom Dia, Noite" percorrem essa linha com rigor e coerência.
 

Folha - Gostaria de começar pelo título do filme, que deixou o público muito curioso.
Marco Bellocchio -
Emily Dickinson escreveu: "Bom Dia, Meia-Noite", e eu achava que esse paradoxo -"bom dia/noite"- poderia servir para nos introduzir no universo meio infernal daquela prisão, um inferno em que as chamas não são visíveis, mas onde os quatro guerrilheiros escolheram viver juntos, forçando um prisioneiro a viver com eles, na obscuridade, na noite. É isso: "Bom Dia, Noite" pode ser explicado pelo paradoxo bizarro de um bom dia à noite que está para chegar.

Folha - Além dos fatos históricos e verídicos, no filme o sr. quis privilegiar os conflitos humanos e políticos dos personagens. É isso mesmo?
Bellocchio -
Não exatamente. Não quis privilegiar o conflito psicológico dos personagens: como todos os artistas, tentei criar personagens sem querer demonstrar teses histórico-políticas.
Os personagens me interessavam porque, a partir de pequenos dados reais, aos poucos eles se transformaram em outra coisa, em certo sentido se tornaram autônomos. Quem não consegue desvencilhar-se da crônica histórica faz objeções ao filme, acha os personagens inverossímeis, porque fica bloqueado, preso a esses personagens por uma fidelidade quase obrigatória, e me refiro sobretudo aos quatro guerrilheiros, sem conseguir aceitar que um artista possa recriá-los inteiramente, tornando-os personagens autônomos.
Num país como a Itália, essa liberdade criativa é ainda mais difícil de ser alcançada, justamente pela magnitude que a tragédia teve. Há fatos que se tornam centrais em um determinado período histórico, e, depois da guerra, o assassinato de Aldo Moro é um deles, um assassinato que mudou a história do nosso país: querer ser livre diante de um fato tão importante é difícil, e entendo que muitos prefiram se esconder atrás de uma suposta fidelidade à história -suposta, porque de fato não existe. Especialmente nesse episódio, em que não existe uma só versão.
Enfim, no meu filme há quatro personagens diferentes entre si e diferentes dos personagens históricos: há um Aldo Moro muito diferente do real, mas que se chama Aldo Moro; e há toda uma crônica histórica, televisionada, em que a realidade e os fatos externos se tornam diferentes, gerenciados pelo poder. Essa e muitas outras coisas formam o caráter estilístico do filme.

Folha - O personagem interpretado por Piergiorgio [Bellocchio, filho do diretor] diz, a certa altura: "Resolvi todos os problemas, parei de sonhar". Por que ele diz isso?
Bellocchio -
Não posso me aventurar na teoria da interpretação dos sonhos, até porque não sou capaz, mas o que ele diz quer dizer mais ou menos isto: se estou dentro desta história, devo necessariamente renunciar, subjugar o meu espírito e toda aquela parte da minha vida com que sonhei, ou seja, os sentimentos, as paixões e tudo o que não se relaciona com a política. Ao entrar nas Brigadas Vermelhas, a vida sentimental não vale mais nada, a única coisa que conta é a derrota do Estado burguês e das multinacionais, a realização de uma sociedade diferente, em suma, fazer a revolução.
Num projeto desse tipo, como em qualquer sociedade secreta, a própria vida se torna um valor secundário, a vida é submetida completamente ao serviço da idéia revolucionária, onde já não há mais lugar para os sonhos.

Folha - Por que desde os seus primeiros filmes o sr. sempre insere uma cena de humorismo surrealista?
Bellocchio -
Nisso há apenas um toque... Há uma espécie de dimensão provocadora, derrisória, sarcástica, num tom mais de tragédia ou de drama. É algo que faz parte do meu caráter e que se transfere para o meu modo de fazer imagens.
Há sempre um espaço em que, em certas situações, o paradoxo, o absurdo e a irrisão podem conviver com o resto. Lembro que, no "Diabo no Corpo", durante um processo, uma garota fazia chegar ao seu namorado terrorista um sorvete por meio de um tenente dos carabineiros. Ainda nesse filme, a mãe do namorado terrorista telefonava para o pai do garoto... É assim, a dimensão grotesca ou sarcástica faz parte do meu estilo.

Folha - A afirmação segundo a qual o seu Aldo Moro tem algo de seu pai é procedente?
Bellocchio -
Acho que Aldo Moro não é o meu pai e talvez nem seja Aldo Moro, não sei. É um personagem triste, melancólico, desiludido com os seus companheiros de partido, mas sempre capaz de se contrapor ao ideologismo cego dos seus juízes carcereiros, porque responde com o bom senso, captando o absurdo de certas falas ou de certas situações ou, às vezes, o disparate de certos argumentos. No filme, meu pai entra em dois momentos: o primeiro, nos passeios de Aldo Moro, quando o filme perde todo o realismo. O espectador vê Aldo Moro passeando, quase um prisioneiro entre os carcereiros, por sua vez prisioneiros, uma pessoa que se movimenta, lê livros, se senta, observa a protagonista.
De fato aqueles passeios de Moro são inspirados nos passeios de meu pai, mas as cenas estavam em situações inteiramente distintas, como quando eu, criança, via entre a vigília e o sono o meu pai observando a mim e aos meus irmãos com a tristeza do doente.
Além disso, na época não me dei conta da tragicidade da morte dele, pensei que pudesse superá-la, como se não fosse algo próximo.

Folha - O que você poderia nos dizer quanto aos problemas de direção?
Bellocchio -
Só isto: que os vários roteiros me aproximaram do que o filme terminou sendo. Tudo foi rodado como ficção, e não a partir da realidade, embora se possa pensar o contrário, se levarmos em conta a aparência de realismo. O roteiro, ao ser trabalhado, tornou-se cada vez mais preciso, especialmente ao ser integrado ao trabalho dos atores e ao ambiente, inventando a cada vez coisas novas, algumas resolvidas só no final, como só no final -agora posso dizer- encontrei o estilo definitivo para rodar o filme.
Por exemplo, o personagem de Moro: num primeiro momento, ele não deveria ser visto, mas só ouvido, vislumbrado, como uma espécie de sombra; o fato de colocá-lo em evidência, mesmo que por uma fresta, foi uma escolha que surgiu no set de filmagem, durante as tomadas.

Folha - Na sua opinião, qual o papel da música no filme? Que relação se estabelece com os músicos?
Bellocchio -
Com os músicos, a cada vez é diferente. Nos dois últimos filmes ("Hora de Religião", 2002; "Bom Dia, Noite", 2003) a partitura musical mudou. Até a "A Babá", a música foi composta especificamente pelo músico, que começou a trabalhar logo após a primeira montagem. Depois de a música ter sido mixada, o filme foi revisto por inteiro. Já no caso de "Bom Dia, Noite", senti uma imediata necessidade de ter materiais musicais para adaptar à montagem, com o compositor presente aos trabalhos.

Folha - O que diria aos jovens que pretendem fazer cinema?
Bellocchio -
O cinema é um trabalho em que o fazer é fundamental. À diferença da época em que eu comecei, hoje a tecnologia oferece extraordinárias possibilidades com pouquíssimos recursos, e, para um diretor, a pior coisa seria esperar equipar-se para poder começar a filmar. É possível construir belíssimas imagens com uma câmera de principiante, ou seja, fazer imagens continuamente, como um exercício permanente, como os pintores com a pintura. Quanto ao que diz respeito à formação humana, cultural e política, só posso dizer que é algo subjetivo, nada mais.

Folha - Sua paixão pelo teatro foi definitivamente abandonada ou só momentaneamente suspensa?
Bellocchio -
O tempo de fazer muitas coisas simultaneamente já passou. Mas posso dizer que a vontade não foi abandonada. Está programada para a próxima temporada de primavera, em Piacenza, a direção do "Rigoletto", de Verdi, que será a minha primeira experiência no campo da ópera. Considero-a uma experiência esporádica porque, repito, não há tempo para fazer as duas coisas, teatro e cinema. Acho que devo me concentrar no cinema...

Folha - Quais são os seus próximos projetos?
Bellocchio -
Um deles é "O Cineasta de Casamentos", um filme com Sergio Castellitto, ainda muito no início, embora eu já tenha passado muito tempo com ele para uma primeira elaboração.

Folha - Que tipo de relação você teve com o público, desde o Festival de Veneza até hoje?
Bellocchio -
Até agora pude ver salas lotadas, com jovens que fazem perguntas, vi entusiasmo, um público atento; há dois meses excursiono pelas escolas, as pessoas querem ver e saber, querem ser envolvidas. Há críticas também, mas em geral há sempre uma enorme emoção e atenção pelo filme, porque acho que essa história tocou não só a consciência dos italianos mas também a consciência profunda, e isso pode ajudar a compreender a multiplicidade e a aspereza das reações.


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