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+ Sociedade
Big Brother no varejo
Opressão de "1984" é praticada hoje por indivíduos, não pelo Estado, diz geógrafo Jerome Dobson
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O
pesadelo imaginado por George Orwel no romance
"1984" está se tornando realidade,
afirma um dos geógrafos mais
reconhecidos dos EUA. No
clássico da ficção científica, o
ditador Big Brother (grande irmão) exercia controle sobre os
cidadãos rastreando-os com
câmeras e telas. Isso acontece
agora com cada vez mais frequência, mas na vida real não é
obra de um tirano autoritário,
afirma Jerome Dobson, presidente da Sociedade Geográfica
Americana. "O problema agora
são os "Little Brothers" (pequenos irmãos)", diz o cientista.
Criador do termo "geoescravidão", Dobson diz que o controle sobre a vida de indivíduos
está acontecendo mais no varejo do que no atacado, e o grande
culpado é o barateamento dos
rastreadores com sistema de
localização por satélite, o GPS.
Qualquer um disposto a pagar US$ 40 por mês pode rastrear uma pessoa 24 horas por
dia, e, segundo ele, isso trará
mudanças sociais profundas,
alterando relações entre pais e
filhos, maridos e esposas, patrões e empregados.
Em entrevista à Folha por
telefone, o pesquisador da Universidade do Kansas explica
por que acredita que essa nova
tecnologia precisa ter um controle de uso mais rígido.
FOLHA - O historiador Francis Fukuyama defende a ideia de que Orwel
disseminou um medo errado em
"1984" pois, quando a tecnologia
da informação finalmente ganhou
corpo com a internet e os celulares,
ela trouxe liberdade para os indivíduos, não opressão. O GPS e os rastreadores, agora, são o contrário?
JEROME DOBSON - Há grande diferença entre o Big Brother de
George Orwel e aquilo que está
acontecendo hoje. Primeiro, o
perigo do qual eu falo não é necessariamente hierárquico, imposto pelo governo aos indivíduos. O que estou dizendo é
que há muito mais "Little Brothers" mundo afora. A habilidade de uma pessoa vigiar outra
não é hierárquica, e abre caminho para vários tipos de relações de poder em que maridos
controlam esposas, patrões
controlam empregados etc.
O que acontece é que isso é
uma forma de vigilância muito
muito mais propensa a ser aceita do que propostas anteriores,
como o Big Brother. Ela é uma
forma muito mais eficiente e
apresenta uma ameaça não só à
privacidade, mas à liberdade
pessoal. É a maior ameaça já
experimentada pelos humanos
às liberdades individuais.
FOLHA - Que exemplos desse tipo
de abuso podem ser mencionados?
DOBSON - Veja o caso de Stacy
Peterson, que a imprensa de
Illinois [EUA] noticiou. É uma
mulher que está desaparecida e
seu marido, um policial, alega
que ela simplesmente tinha ido
embora. Mas descobriram que
ele estava usando coordenadas
do telefone celular dela para
rastreá-la. E ela tinha ficado
muito incomodada com isso.
Os amigos disseram que ela
tentou se livrar daquele controle, mudando de telefone. Mas
ele conseguia sempre usar os
números para rastreá-la. O advogado do policial foi questionado num programa de TV e
justificou o comportamento de
seu cliente dizendo: "Bom, todos os policiais na delegacia estavam fazendo isso".
Então, a tecnologia já está aí,
em certo sentido. Certamente é
uma ferramenta boa contra o
crime, mas as pessoas honestas
em atividades honestas também estão sob risco de serem
observadas e controladas.
FOLHA - O sr. acha que já é hora de
criar leis que impeçam a ocorrência
de casos como o de Peterson?
DOBSON - Sim. Deveria haver
legislação sobre isso. Há muitos
casos em que o que está sendo
analisado são os requisitos para
as autoridades. Um departamento de polícia deve ou não
precisar de um mandado para
fazer isso? Alguns Estados fazem de um jeito, outros fazem
de outro. Isso ainda está sendo
aperfeiçoado no sistema legal.
FOLHA - Alguém que não é policial
tem acesso a isso hoje? O sr. escreveu em um artigo que é possível
monitorar uma pessoa 24 horas por
dia pagando US$ 500 anuais.
DOBSON - Esses US$ 500 são o
que você paga a um serviço simples. Você entra na internet e
consegue achar esses produtos
à venda. As taxas que cobram
por um chamado Wherify Wireless [vendido como "rastreador de crianças"] são mais ou
menos as da assinatura de um
telefone celular. Provavelmente você terá de pagar US$ 200
por um aparelho básico, mais a
taxa mensal de uns US$ 20.
FOLHA - O sr. diz que um uso benéfico dessa tecnologia é a capacidade
de rastrear condenados pela justiça,
em vez de prendê-los. Já há muitas
experiências com isso?
DOBSON - É usado rotineiramente. O caso mais famoso é o
de Martha Stewart, apresentadora de TV. Ela cometeu irregularidades em negociações de
sua empresa e foi colocada sob
prisão domiciliar. Tinha de
usar, então, uma tornozeleira
eletrônica com o rastreador.
Algo que tem de ser esclarecido é que quando juízes põem
alguém sob esse tipo de confinamento, costumam chamar
isso de encarceramento, com o
mesmo significado da prisão
em uma cela, no sentido jurídico. É uma prisão de extensão
maior, mas não é liberdade.
FOLHA - O rastreamento deve ser
sempre legal, quando consentido?
Um patrão não pode coagir seus
funcionários a portar rastreadores?
DOBSON - As pessoas devem
negociar para decidir o que é
válido para elas. Alguém pode
se ver obrigado a usar isso se a
alternativa for a demissão. Mas
as pessoas se candidatariam a
um emprego sabendo disso?
William Herbert, jurista especialista no aspecto legal do
rastreamento, fez carreira no
sindicalismo e desenvolveu argumentos para defender que isso não seja permitido. Mas eu
tenho uma abordagem diferente. Acho que é uma questão que
deve ser submetida a uma decisão pensada, tomada pelos próprios trabalhadores.
Por exemplo, se um sindicato
está negociando um contrato
para seus afiliados, será que isso poderia ser posto na mesa
como moeda de troca, assim
como se faz com salários, jornadas, férias e benefícios de saúde? É algo que tem sido pouco
debatido, mas acho que os sindicatos alguma hora vão reconhecer que isso é um custo para
eles. Se as empresas acreditam
que isso vai torná-las mais eficientes, então elas deveriam estar dispostas a pagar por isso.
Pessoalmente, eu não aceitaria um emprego assim. Insisto
muito na minha independência
de ação e nunca aceitaria ter de
ficar relatando a alguém onde
estou e o que estou fazendo,
mesmo sem estar fazendo nada
errado. Não quero pessoas bisbilhotando minhas coisas e sabendo onde estou. É uma questão de princípios para mim.
FOLHA - O sr. acha que os atentados terroristas de 2001 contribuíram para essa paranoia vigilante?
DOBSON - Sim. Temporariamente, eles alimentaram a tendência das pessoas a aceitar
mais restrições. Mas tivemos
uma eleição depois disso, e há
indícios claros de que as pessoas estão preparadas para retornar aos seus princípios.
FOLHA - Como o sr. começou a se
interessar por esse problema?
DOBSON - Estou nesse campo
desde 1975. Trabalhei no Laboratório Nacional de Oakridge
por 26 anos antes de vir para a
Universidade do Kansas. Foi
quando eu estava lá que essa
nova capacidade de rastreamento se tornou uma questão
importante. Na época, um empresário do setor privado foi ao
laboratório e me pediu para
ajudá-lo a construir um desses
sistemas [de vigilância de empregados], mas eu me recusei.
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