São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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A propriedade das idéias

Peter Burke

"Dom Quixote em Seu Estúdio", imagem feita por William Lake Price no início da segunda metade do século 19 A lei de propriedade intelectual, às vezes conhecida como PI, é uma das áreas jurídicas que crescem mais rapidamente nos Estados Unidos, na União Européia e em outros lugares. Há muitos compêndios sobre o assunto, que parecem ficar defasados ainda mais depressa que outros manuais, devido às rápidas modificações do sistema. A lei costumava se preocupar especialmente com o uso sem permissão de invenções patenteadas, com as tentativas de se imitar, digamos, calças jeans ou calçados para tênis de marcas famosas, quando eram fabricados em outros lugares, ou com o que se conhece como "pirataria" - a publicação de edições não autorizadas de livros, como a Enciclopédia Britânica. Antes que a Britânica fosse lançada na internet, imprimiam-se cópias em Hong Kong que eram vendidas em todo o mundo por preço muito inferior ao da edição oficial de Chicago. Mais recentemente, essa preocupação se estendeu à cópia ou imitação de software sem permissão, ao patenteamento de organismos geneticamente modificados e à proteção de bases de dados (a Diretriz de Bases de Dados da União Européia foi aprovada em 1996).
A história da proteção jurídica começou no século 15 na Itália, durante o Renascimento, quando o arquiteto-engenheiro Filippo Brunelleschi pôde registrar uma de suas invenções, obtendo proteção legal para a mesma. A Lei de Direitos Autorais britânica de 1710, que protege os autores e seus editores contra a pirataria literária, foi um modelo imitado em outros países, da França aos Estados Unidos. A próxima etapa foi proteger as imagens impressas.
No início do século 19 desenvolveu-se a noção de "direitos de exibição" para evitar apresentações públicas de peças teatrais, que logo se estenderam à música. Das peças e da música, a idéia do direito autoral passou para as pinturas e depois fotografias, filmes, gravações e vídeos. Os regulamentos nacionais foram complementados por acordos internacionais, notadamente a Convenção de Berna (1886), a Convenção Universal de Direitos Autorais (Genebra, 1952) e a Convenção de Estocolmo, que estabeleceu a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (1967).
Para um historiador cultural como eu, a idéia de propriedade imaterial, especialmente a propriedade de idéias e de informação, é ao mesmo tempo fascinante e difícil. O conceito de PI é mais antigo que as leis que definem e regulamentam o direito autoral. Ele se desenvolveu da idéia de "plágio". Na Roma Antiga, alguém que roubasse um escravo era conhecido como "plagiarius", mas o poeta Marcial aplicou o termo aos escritores que imitavam seu trabalho.
Em Atenas, Eurípides e Platão foram acusados de roubar as idéias de outros autores e filósofos. No Renascimento, os dramaturgos eram às vezes acusados de plágio, incluindo Shakespeare, porque as tramas de "Hamlet" e "Romeu e Julieta", por exemplo, foram tiradas de autores mais antigos. No mundo da ciência, já extremamente competitivo no final do século 17, os seguidores de Isaac Newton afirmaram que Leibniz plagiou a descoberta do cálculo de Newton, enquanto um colega inglês acusou o próprio Newton de plágio.
No mundo das ciências humanas, a nota de rodapé começou a ser usada, também no século 17, para que os estudiosos pudessem indicar com maior facilidade seu débito às idéias ou descobertas de seus antecessores. Eles nem sempre se lembravam ou se lembram de fazê-lo, especialmente quando o débito é realmente importante, e não é preciso ser um seguidor de Freud para entender por que isso acontece. De qualquer forma, passou a existir um código de conduta sobre as referências a outros autores. É com base nesse código que os examinadores reprovam estudantes porque copiam trechos de livros e apresentam como "seu trabalho" -e que às vezes alunos de graduação acusam os professores de publicar "suas" idéias.
Acredito que esse código de conduta é tão necessário e desejável no mundo do ensino quanto no mundo da literatura, para não falar dos tênis ou do software. Um dos problemas de hoje é como estendê-lo à internet. Do mesmo modo, devo confessar que acho o conceito de propriedade intelectual, assim como o conceito mais antigo de "originalidade", um tanto problemático, de duas maneiras em particular. Em primeiro lugar há um conflito, se não exatamente uma contradição, entre duas opiniões comuns: o plágio é mau, mas o intercâmbio cultural é bom. Em outras palavras, existe o problema de traçar a linha entre diferentes tipos de imitações, mais ou menos criativas.
A idéia de propriedade intelectual parece depender do mito romântico do gênio individual que trabalha sozinho e tira inspiração de seu íntimo. Na prática, porém, a inovação intelectual, assim como a inovação técnica, é uma espécie de bricolagem. Exercitamos nossas idéias em reação a outras idéias, sejam elas ouvidas em conversas, lidas em livros ou descobertas na internet. Começamos a inovar não a partir de uma lousa em branco, e sim de algo que já existe, mas não parece satisfatório, ajustando-o para servir a novas circunstâncias e combinando os elementos existentes de novas maneiras, até que surja algo reconhecidamente diferente, embora pertença à mesma família de idéias ou objetos.


Na Roma Antiga, alguém que roubasse um escravo era conhecido como "plagiarius", mas o poeta Marcial aplicou o termo aos escritores que imitavam seu trabalho


Os poetas e romancistas são frequentemente acusados de se apropriar de palavras de poetas e romancistas precedentes, inserindo-as em seus livros e passando-as adiante como suas. Às vezes a acusação é justa, porque a imitação é próxima ou "servil", e a intenção é iludir o público. Em outras ocasiões, porém, a imitação é criativa. É extremamente provável que "Hamlet" de Shakespeare seja uma obra muito melhor que a peça perdida sobre o mesmo tema que aparentemente a inspirou. Muitas vezes é difícil traçar a linha divisória entre imitação criativa e imitação "servil". É fácil operar com um duplo padrão: quando usamos idéias de outras pessoas estamos praticando imitação criativa, mas, quando elas usam nossas idéias, estão roubando.
O outro problema que devo levantar sobre a propriedade intelectual é o problema da relatividade cultural. A sensação de possuir uma idéia ou mesmo um poema é muito menos forte ou aguda em certas sociedades do que em outras. A antiga Atenas, assim como a Itália do Renascimento, era uma cultura intensamente competitiva em que não surpreende encontrar muitas acusações de plágio, mas na Idade Média essas acusações eram raras. Também há uma ligação entre propriedade intelectual e tecnologia da informação, entre PI e TI. Em muitas culturas orais, da Grécia homérica às ilhas Trobriand, poemas e histórias não são considerados propriedade de criadores individuais. Cada contador de histórias faz suas próprias alterações ou acréscimos a um processo que é melhor descrito como criação coletiva do que individual.
Nas culturas que têm o hábito da escrita, os textos tornam-se mais fixos. Mesmo assim, uma pessoa que copia um texto pode se sentir livre para não apenas deixar algumas coisas de fora, mas também acrescentar outras. Nessas culturas -na Idade Média européia, por exemplo- não há distinção clara entre um novo livro que recorre ao conhecimento tradicional e uma cópia de um livro antigo ao qual se acrescentaram novas informações. O grande pensador medieval Tomás de Aquino não se considerava um filósofo original, mas um homem que adaptou as idéias de Aristóteles a um ambiente cristão.

Invenção?
A situação mudou após a invenção da imprensa por Gutenberg -se é correto descrevê-la como uma invenção, porque os chineses já imprimiam livros mil anos antes. Graças à imprensa de Gutenberg -se é que era sua, pois algumas pessoas acreditam que ele foi antecipado por um holandês-, passaram a circular centenas de cópias idênticas de um texto. Nessas circunstâncias as pessoas começaram a desenvolver um sentido mais preciso de propriedade intelectual e a pensar nos livros como o trabalho de "autores" individuais, mais que a voz de uma tradição anônima. Os impressores começaram a incluir o retrato dos autores em seus livros, incluindo um retrato de Shakespeare, como se conhecer a aparência de uma pessoa facilitasse a compreensão do que ela havia escrito. O surgimento de um mercado de livros levou ao crescimento da pirataria literária, à Lei de Direitos Autorais do século 18 e à idéia de propriedade literária a ela associada.
Quais serão as consequências da revolução eletrônica de nossa era para a propriedade intelectual? O surgimento dos computadores é muitas vezes comparado ao surgimento da imprensa, e há muito a dizer sobre essa comparação. Os leitores do século 16 já se preocupavam com a "sobrecarga de informação" resultante da "inundação" de livros impressos, e muitos livros ganharam índices para facilitar a "localização de informações". Os computadores tornam o furto intelectual mais fácil que antes, já que basta copiar alguma coisa e "colá-la" em seu próprio texto. Em outros sentidos, porém, o modo como estamos aprendendo a escrever na era eletrônica se assemelha mais à criação coletiva da era do manuscrito ou mesmo da era oral do que à individualidade da era da impressão.
Quando visualizamos um livro na tela, em vez de ler um texto impresso, podemos interagir com ele mais facilmente, personalizá-lo de acordo com nossas necessidades. Podemos acrescentar informação ou mesmo trocar o final feliz de um romance por uma conclusão trágica. Se modificarmos um texto dessa maneira, em que ponto ele se torna "nosso"? Agora somos todos plagiadores? O termo "plágio" se tornará obsoleto? Dada a complexidade de nossa sociedade, a crescente importância do mercado de idéias e de informação, e o número de advogados que se especializam em PI, é difícil imaginar grandes mudanças a curto prazo. Em um ou dois séculos, talvez. Enquanto isso, não roubem minhas idéias!

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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