São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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+ Sociedade

Rocinha de ZINCO

Fascinado com a experiência de conhecer um morro do RJ, inglês cria programa de visita à maior favela da Ásia, situada na Índia

JOHN LANCASTER

Dharavi, em Mumbai, é freqüentemente descrita como a maior favela da ásia.
Ela se situa entre duas linhas ferroviárias na parte norte da cidade, às margens de um córrego que, no passado, garantia a subsistência de pescadores. Hoje o córrego é receptáculo de esgotos e resíduos industriais, e o ar que paira sobre Dharavi é fétido.
De acordo com uma estimativa, a favela abriga 10 mil pequenas fábricas, praticamente todas ilegais e funcionando sem nenhum regulamento.
As fábricas garantem a subsistência precária de cerca de 1 milhão de pessoas, que se acredita ser a população de Dharavi -cujo tamanho mal chega a metade do tamanho do Central Park, em Nova York.
Não existe coleta de lixo visível, e há apenas uma privada para cada 1.440 pessoas. O lugar é uma visão do inferno urbano.
Mas é também é uma das mais novas atrações turísticas da Índia. Desde janeiro do ano passado, um jovem empreendedor britânico, Christopher Way, e seu sócio comercial indiano, Krishna Poojari, vêm promovendo passeios a pé por Dharavi, como se o lugar fosse a cidade murada de Jerusalém ou as vielas da Londres de Charles Dickens.
Parece haver um mercado para esse tipo de coisa: durante as férias, praticamente todos os dias grupinhos de turistas estrangeiros, acompanhados por Poojari ou outra guia, percorreram as vielas fétidas de Dharavi.
As excursões custam cerca de US$ 6,75 por pessoa ou mais, caso se queira ir de automóvel com ar-condicionado.

Turismo da miséria
O turismo da miséria -às vezes descrito como "poorism" /- não se originou em Mumbai.
Há anos operadores turísticos escoltam visitantes estrangeiros pelas favelas do Rio de Janeiro, com suas quadrilhas de traficantes e suas vistas para o mar, e pelas imensas "townships" que cercam a Cidade do Cabo e Johannesburgo /, onde os turistas são convidados a bater papo com sul-africanos em um dos bares ilegais conhecidos como "shebeens".
Um grupo sem fins lucrativos em Nova Déli cobra dinheiro de turistas para levá-los em passeios guiados pela estação ferroviária, para levantar dinheiro para as crianças de rua que povoam suas plataformas.
Mas as tours guiadas por Dharavi vêm suscitando polêmica especial. Numa matéria extensa transmitida em setembro passado, a emissora de TV indiana em língua inglesa Times Now criticou a iniciativa como exercício de voyeurismo e uma tentativa repreensível de "faturar em cima da imagem da "Índia pobre'".
A matéria foi seguida por um debate cujo moderador só faltou acusar Poojari de crimes contra a humanidade. Um representante do setor de turismo que participou do debate descreveu as operadoras das excursões como "parasitas que precisam ser investigados e postos atrás das grades".
Parece que os críticos usaram argumentos morais elevados. Mas será que têm como fundamentá-los?
Numa manhã ensolarada, encontrei Christopher Way no Leopold"s Café, um reduto muito freqüentado por mochileiros no agitado distrito de Colaba, em Mumbai.
Way tem 31 anos, usa óculos e tem aspecto de garoto, com cabelos castanhos desarrumados e um jeito pensativo e simples.
Enquanto tomávamos suco fresco de manga, ele me contou que cresceu na Inglaterra, perto de Birmingham, e que, depois de formar-se pela Universidade de Birmingham, começou a trabalhar para tornar-se contador registrado. Mas sofria de um desejo crônico e incontrolável de viajar.
Em 2002, visitou Mumbai e gostou tanto da cidade que passou cinco meses nela, trabalhando como professor de inglês e treinador de críquete voluntário numa escola primária.
Mais tarde, tirou férias prolongadas no Rio, onde fez um dos passeios guiados por uma favela.
Embora tivesse ficado frustrado com o pouco conhecimento que o guia tinha da favela, Way diz que achou a experiência fascinante. Ocorreu a ele que seria possível fazer algo semelhante em Mumbai.
Quase metade dos cerca de 18 milhões de habitantes de Mumbai vivem em favelas, de modo que não faltavam locais potenciais para seu empreendimento.

Imen so ferro-velho
Mas a escolha óbvia era Dharavi, por ser a maior e mais consolidada. A idéia de Way foi dar destaque às bases econômicas da favela, de maneira a contestar os estereótipos dominantes relativos aos pobres.
"Queremos derrubar o mito segundo o qual as pessoas aqui ficam sentadas sem fazer nada, que são criminosas".
Para facilitar as coisas com os burocratas locais e os moradores de Dharavi, Way precisava de um sócio indiano. Ele o encontrou em Krishna Poojari, 26 anos, filho de lavradores que migrou para Mumbai sozinho aos 12 anos de idade.
Com exceção de seu site (realitytoursandtravel.com) e de uma placa fixada a um poste de luz perto do Leopold's Café -"Conheça Dharavi (a maior favela da Ásia)"-, a empresa não divulga as excursões.
Mas a notícia sobre elas se espalhou pela web e outros meios, e os negócios vêm crescendo sem parar, atraindo visitantes de todas as partes do mundo.
Encontrei Poojari no final de uma manhã na estação ferroviária de Churchgate, onde embarcamos num trem metropolitano dilapidado para fazer o percurso de 25 minutos até Dharavi.
Ali nos aguardava Jeff Ellingson, 29 anos, profissional de tecnologia de Seattle /. Antes de começarmos o passeio, Poojari explicou que a empresa adota a política de proibir fotos, para evitar que os passeios turísticos se tornem invasivos demais (pelo mesmo motivo, cada grupo pode ter no máximo cinco pessoas).
Vimos Dharavi estendida à nossa frente como um imenso ferro-velho, um labirinto de barracos de tijolos e concreto com telhados de zinco que brilhavam ao sol. Poojari nos deu um momento para absorver a visão. "Vamos mostrar a vocês o lado positivo de uma favela", declarou.
Diante de tanta miséria e sujeira, suas palavras pareciam dissonantes. Mas o trabalho duro exercido em Dharavi é fartamente documentado.
Os empreendimentos da favela fabricam uma série de produtos -plásticos, cerâmicas, jeans, artigos de couro- e geram uma receita anual estimada em US$ 665 milhões /.
Em outras palavras, Dharavi não é apenas uma favela -é também uma engrenagem da economia global.
As indústrias de Dharavi são dispostas geograficamente como corporações de ofício medievais, e a primeira viela que visitamos pertencia aos recicladores.
Em um "godown" pequeno (esse é o nome pelo qual são conhecidos os depósitos no subcontinente indiano), vários homens estavam desmontando teclados de computador usados.
Em outro, homens cobertos de tinta azul dos pés à cabeça retiravam as capas de canetas esferográficas usadas para que pudessem ser derretidas e recicladas.
Algumas portas à frente, trabalhadores usavam correntes pesadas para golpear tambores de aço usados que contiveram resina de poliéster, para soltar os resíduos da resina. Poojari nos contou que algumas das garrafas PET recicladas em Dharavi vêm de lugares muito distantes, como o Reino Unido.
Poucos dos recicladores usavam luvas ou outros equipamentos de proteção, apesar de estarem expostos a solventes e outros produtos químicos que deixaram meus olhos e garganta queimando depois de alguns minutos apenas.
As condições de trabalho eram típicas dos negócios não regulamentados de Dharavi.
Dharavi é um lugar inegavelmente sombrio. Quando nos aproximamos do centro da favela, as vielas se estreitaram, e os balcões que se projetavam para a frente nos primeiros andares não deixavam passar a luz do sol, deixando tudo numa semi-escuridão permanente.
Crianças brincavam ao lado de esgotos abertos por onde fluíam detritos humanos, e homens de olhos fundos passavam, arcados sob o peso de cargas envoltas em lonas. Mas, se os moradores de Dharavi se ressentiram de nossa presença, eles não manifestaram esse sentimento. Alguns pareciam até satisfeitos em contribuir para nossa informação.

Regras a obedecer
A boa recepção provavelmente teve algo a ver com os representantes da excursão, que cultivam relações boas com os trabalhadores da favela e também com a polícia local.
Além disso, existem regras que são obedecidas. Desde a porta de uma fábrica de roupas contida em um ambiente apenas, vi um menino que parecia não ter mais de oito anos, sentado com outros trabalhadores diante de uma mesa comprida, onde bordava um tecido com fios dourados. Pedi a meu guia: "Pergunte a ele quantos anos tem". Poojari fez com a cabeça um gesto de "não".
Apesar de sua feiúra, Dharavi passou a sensação de ser uma comunidade estabelecida. Ellingson traçou uma comparação com comunidades palestinas que visitou na Cisjordânia.
Elas são "bem mais ricas, mas a sensação que se tem é que a sociedade entrou em colapso", disse, acrescentando que, em Dharavi, "sente-se que algo está funcionando". Não pude deixar de concordar com ele.
Devido a sua boa localização -ao lado de linhas ferroviárias, no coração de uma das cidades mais populosas do mundo-, Dharavi ocupa um terreno valioso, e seus moradores não estão dispostos a abrir mão da posse dele. A favela é alvo de um confronto próximo com as autoridades municipais e construtoras, que querem transformar a área em edifícios de escritórios, prédios residenciais de luxo e shopping centers.
As famílias que puderem comprovar que vivem em Dharavi desde 1995 teriam direito a um apartamento gratuito na mesma área, mas as novas moradias seriam tão pequenas -de 21 metros quadrados- que muitos preferem permanecer onde estão.
Tampouco está claro o que aconteceria com os milhares de pequenos negócios que garantem emprego aos moradores de Dharavi.
Encerramos nossa tour ao lado de uma rua agitada de quatro pistas, onde os sons festivos de uma cerimônia de casamento hindu saíam de uma barraca enfeitada. Paramos para dar uma rápida olhada dentro da barraca, e vi o noivo sentado, desajeitado, com um enorme turbante dourado na cabeça.
Ninguém se deu ao trabalho de nos olhar duas vezes, e não pude deixar de me indagar sobre as razões que levam pessoas da mídia indiana e de outros setores a afirmar, em nome dos moradores de Dharavi, que estes se ofendem com passeios turísticos.
Com certeza sua ira poderia ser melhor dirigida contra as autoridades municipais que não fornecem saneamento básico à comunidade.
Perguntei-me se os críticos não se sentiriam envergonhados, simplesmente, pela pobreza gritante da favela -imagem que não condiz com os esforços da Índia de mudar sua imagem para a de um grande parque de software.
Será que as pessoas que vi em Dharavi eram vítimas da globalização, ou beneficiárias dela? Ainda não sei dizer. Mas, pelo menos, a dúvida foi suscitada em minha mente.

JOHN LANCASTER foi correspondente do "Washington Post" no sul da Ásia.A íntegra deste texto saiu na "Smithsonian".Tradução de Clara Allain.


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