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Se o Brasil quer escapar "de uma crise capaz de destruir o regime", defende o sociólogo francês, a melhor
saída é apoiar o presidente, "força de união nacional" e "ponto de apoio sólido em uma sociedade debilitada"
Lula, o grande trunfo do Brasil
ALAIN TOURAINE
COLUNISTA DA FOLHA
Comecemos pelo que parece
o ponto mais distante de
análise. O Brasil vive uma
crise política e moral, mas
não vive uma crise de regime. A imagem do presidente continua sólida, e
muitos o consideram como um recurso contra as falcatruas do Congresso. Aqueles que desejam transformar as graves dificuldades atuais
em um movimento pela destruição
do regime, do presidente e de sua
chance de reeleição causam um grave risco para o país. Como compreendeu Fernando Henrique Cardoso, estadista cujo julgamento continua a ser muito respeitado, não se
pode construir uma campanha presidencial sobre uma acusação de
corrupção.
O primeiro gesto que todos os que
se preocupam com o futuro do Brasil deveriam fazer seria apoiar Lula e
pedir a Tarso Genro que ele enfim
encontre uma responsabilidade à
sua altura e extermine os ramos apodrecidos do PT, refletindo ao mesmo tempo a maioria de que o presidente dispõe no Congresso. Não é
hora de perder a cabeça. Por mais
que a opinião pública julgue o sistema político com severidade, não é
hora de remover os grilhões dos
monstros populistas. Isso equivaleria a um recuo de dez anos ou muito
mais para o Brasil e colocaria o país
em uma trajetória na qual existe o
risco de uma queda mortal.
Isso posto, é preciso acrescentar
igualmente que no momento não se
trata somente de um problema de financiamento ilegal a um partido, algo que muitos países europeus tiveram de enfrentar, nem apenas de
atos de enriquecimento individuais.
Para isso, existem os tribunais e as
prisões como método de solucionar
o problema. A crise atual é a segunda
que o presidente atravessa.
A primeira foi a profunda decepção dos que esperavam por reformas estruturais, pela luta contra a
desigualdade, o que suporia redistribuir renda -o que só se tornará
possível sob pressão de uma mobilização popular. Isso ainda não ocorreu. Alguns membros do PT deixaram o partido, mas a opinião nacional e estrangeira se habituou aos
pouco ao que não pode ser mais que
um começo para uma profunda mudança política.
A segunda crise, que vivemos, foi
deflagrada pela tentativa de elementos do PT de comprar votos de deputados pertencentes a pequenos partidos de oposição. Somadas, as duas
crises demonstram que no seio das
grandes escolhas feitas por FHC e,
depois dele, por Lula -o respeito às
instituições democráticas e a aceitação de uma ordem econômica mundial na qual o Brasil teria importante
papel a desempenhar como intermediário entre os hemisférios Norte
e Sul, algo que o presidente Lula faz
admiravelmente-, não há lugar para uma política de mudanças sociais
revolucionárias, tampouco para um
partido que desempenhe o papel de
aparelho do Estado, como o partido
comunista em alguns países ou como o PRI mexicano.
Limites econômicos
A melhor comparação possível para o Brasil é com a Alemanha. Em
um país dilacerado pela luta contra a
Guerra Fria e pela reunificação, Oskar Lafontaine lançou um movimento de socialismo de esquerda
que se assemelhava à política adotada por [François] Mitterrand entre
1981 e 1984. O movimento, apoiado
especialmente pelos intelectuais, recuou rapidamente e terminou derrotado por Schröder. Não é possível
fazer política de extrema esquerda
no quadro de uma economia internacional, que talvez não seja tão restritiva quanto se diz, mas ainda assim concede prioridade à integração
mundial, ou com instituições nas
quais não existe maioria para tal.
O Brasil, como a França e a Alemanha, deve adotar política social equiparada à sua política econômica e ao
seu respeito às normas institucionais, mantido desde o princípio. É
claro que sempre haverá dirigentes
que pensem que uma solução como
essa não é possível a não ser que dirigida por um partido forte, como tentaram alguns países socialistas no final da Guerra Fria, quando já estavam condenados pela história. Trata-se de uma solução perigosa, irrealista e que causará revezes inevitáveis. O Brasil tem a obrigação de escolher: ou Schröder ou Lafontaine,
para mencionarmos apenas o caso
mais próximo à sua situação.
O grande trunfo para o sucesso de
uma reorientação como essa no Brasil é o próprio Lula, e por diversos
motivos. O primeiro, e mais visível, é
o papel internacional conquistado
pelo país, que deu ao presidente influência mundial. O segundo é a extrema fraqueza das forças de sustentação a soluções radicais, porque o
MST não seria capaz de desempenhar papel central em um país fortemente urbanizado, e até mesmo metropolizado. A terceira é a personalidade de Lula -ele é a um só tempo
dirigente sindical, uma figura que
cada vez mais aparenta ser a principal força de união nacional e homem que suscita forte simpatia e
que funciona melhor como representação da integridade nacional do
que como condutor de um grande
projeto.
As facções do PT e da opinião pública que desejam conceder prioridade às reformas sociais fundamentais foram vencidas. Eu mesmo defendi durante dois anos a idéia de
que a vitória presidencial criaria expectativas que não deveriam ser alimentadas. E continuo a pensar que,
no futuro, o governo brasileiro pode
se ver enfraquecido pela perda do
apoio dinâmico dos partidários mais
radicais, um afastamento que criará
uma resistência surda, repleta de incidentes desastrosos.
Mas a via do socialismo de esquerda se fechou há muito tempo, e o
Brasil de FHC demonstrou que é
possível minorar os problemas mais
graves, por meio do combate eficaz
ao analfabetismo e à mortalidade infantil, da construção de habitações
populares e da distribuição de terras.
A grande crise que o PT enfrenta
obrigará o partido a acatar as condições econômicas internacionais e as
instituições internas que Lula jamais
pretendeu desrespeitar. Portanto, é
tarefa de Tarso Genro e dos melhores conselheiros do presidente restabelecer a coerência interna da política nacional. Não devemos esquecer
que a política econômica em vigor
não sofre contestações violentas e
que até agora não existe risco de abalo das instituições democráticas. O
importante é a passagem da primeira para uma segunda fase da presidência de Lula, sob sua direção pessoal, o qual deve apoiar a nova política com a força considerável de que
dispõe, por desfrutar da confiança
do povo brasileiro.
Não creio que seja nem possível
lançar um grande projeto de ação
social de tipo revolucionário nem
viável colocar em risco as instituições democráticas a fim de apoiar
uma mobilização popular que, no
momento, quase não existe.
As chances de sucesso do Brasil
são grandes. O mercado interno se
desenvolve vigorosamente, sua dependência do comércio internacional e dos capitais estrangeiros não é
mais tão grande, e, acima de tudo, o
mundo precisa do Brasil para gerar
aproximação entre Norte e Sul.
É essa a dimensão da crise atual:
mais que um caso de corrupção que
a Justiça bastaria para resolver e menos que uma crise capaz de conduzir
a um recuo grave da via democrática. O que é verdadeiramente necessário é instituir reformas sociais da
maneira mais ativa possível, mas
sempre respeitando as condições internacionais e institucionais, cujos
limites são claros. Essa mudança de
etapa é algo que o presidente Lula
tem mais chances do que qualquer
outra pessoa de conduzir com sucesso. Aqueles que desejam acima de
tudo salvar o Brasil de uma crise capaz de destruir o regime deveriam
agora apoiar o presidente, ponto de
apoio mais sólido em uma sociedade
debilitada.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais,
em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Traudução de Paulo Migliacci.
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