São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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Para Halperín Donghi, o mais respeitado historiador argentino, a reiterada ânsia em evocar riscos para a democracia é fruto das esperanças frustradas no pós-ditaduras, mas regimes estão estabelecidos

ETERNO RETORNO DA CRISE

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Brasil e Argentina deveriam parar de falar tanto em "crise". Para Tulio Halperín Donghi, 79, o mais importante historiador argentino, nem escândalos de corrupção (no caso de ambos) nem o constante caos político-econômico (no do segundo) deveriam ser rotulados assim, pois isso esconde os matizes de um processo particular na experiência de redemocratização dos dois países.
Especialista na "Geração de 1837", grupo de intelectuais que traçou linhas para a formação do Estado argentino, entre os quais se destacam Domingo Faustino Sarmiento, Juan Bautista Alberdi e Esteban Echeverria, Halperín Donghi desdenha dos projetos de "salvação nacional" surgidos desde então. Mais que isso, hoje se diz "alarmado" toda vez que vê um deles despontar no horizonte.


O que temos são democracias frágeis que sofrem tropeços, mas que mostram uma capacidade antes desconhecida de superá-los


De Berkeley, onde leciona, o historiador faz observações sobre Argentina e Brasil. Considera que o presidente Néstor Kirchner deve ter seu mandato legitimado nas eleições legislativas de outubro, que renovarão parte do Congresso do país vizinho, e que a tensão pela qual passa o PT se insere num contexto internacional de crise da esquerda.
O historiador, não muito editado no Brasil (um dos poucos títulos conhecidos é "História da América Latina", lançado em 1975 pela Paz e Terra), tem um de seus ensaios mais importantes, "Una Nación para el Desierto Argentino", reeditado agora pela Prometeo Libros, além de outros textos. O livro é um clássico que reconstrói de forma crítica os projetos de nação forjados por intelectuais argentinos no século 19 e que ajuda a jogar luz no atual momento político do continente.
Em entrevista à Folha, Halperín Donghi falou de política atual nos diversos países da América Latina e dos caminhos da historiografia com a crise dos grandes relatos.
 

Folha - Há crise política em vários países da América Latina hoje. Acha que as turbulências recentes de Brasil e Argentina podem ser comparadas às de países andinos como Bolívia ou Equador?
Tulio Halperín Donghi -
A crise nos Andes marca o ingresso em uma nova etapa de convivência entre a etnia conquistadora e a conquistada. Na Mesoamérica e nas regiões do antigo Império Inca, os dominadores haviam mantido aspectos das estruturas sociais para usar a seu favor.
Quando veio a independência, abriu-se espaço para uma nova solução. Se buscou incorporar ao setor criollo-mestiço uma parte da população indígena, criando uma base de apoio que assegurasse a estabilidade de regimes formalmente republicanos, mas quase sempre fortemente autoritários.
Essa solução foi bem-sucedida no México, em Honduras e na Nicarágua, e deve se impor no Peru. Não foi assim na Guatemala, no Equador ou na Bolívia, e a conseqüência é que esses países não são hoje, propriamente falando, Estados-Nação, e talvez seja demasiado tarde para que cheguem a sê-lo, pois a idéia de Estado-Nação se mostra menos atrativa que até pouco tempo atrás.

Folha - E quanto ao Brasil e à Argentina?
Halperín Donghi -
Aqui não vejo nada parecido com as conseqüências do processo que acabo de descrever. O que acontece em ambos se enquadra melhor nos problemas mais gerais que afrontam as instituições democráticas na América Latina, e em particular nos países que as restauraram nas duas últimas décadas do século passado.

Folha - O sr. acredita que exista uma crise das instituições democráticas no continente?
Halperín Donghi -
Talvez crise não seja a denominação mais adequada. O que temos são democracias frágeis que sofrem tropeços, mas que mostram uma capacidade antes desconhecida de superá-los, ainda que, com isso, não consigam melhorar seu desempenho.
É significativo que se use tanto o termo "crise". Isso se deve -sobretudo nos países que sofreram sob ditaduras excepcionalmente rígidas- por um lado às esperanças que se haviam depositado nas instituições democráticas quando foram restauradas e, por outro, às dúvidas que não desapareceram sobre se o eclipse das Forças Armadas como árbitro de última instância no campo político é mesmo definitivo.
A democracia latino-americana não está em crise não só porque suas muitas insuficiências não ameaçam sua sobrevivência mas também porque essas insuficiências parecem ser já traços permanentes nesta etapa da experiência democrática na América Latina.

Folha - A crise do PT no Brasil, a falta de uma esquerda forte na Argentina e a realidade de modelos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, apontam para um colapso da esquerda no continente?
Halperín Donghi -
A esquerda enfrenta em todo o mundo uma crise séria, pois, no modelo econômico de hoje, uma política como a que as esquerdas defendiam até há 25 anos não é mais viável.
Em 1981, os socialistas franceses ganharam uma eleição anunciando que fariam com que a França mudasse de sociedade. Hoje decidiram defender a economia social de mercado que floresceu na Europa sob o signo socialista ou social-cristão. Os socialistas europeus defendem um capitalismo de rosto humano. E, ainda assim, suas perspectivas não são brilhantes, porque esse modelo econômico resiste mal à concorrência da indústria que avança nos países antes periféricos.
Por isso, se na Europa ocidental a esquerda, ali consolidada ao longo de mais de um século de lutas sociais, considera difícil prosperar, não é estranho que ache ainda mais difícil ganhar espaço político significativo na América Latina, que não tem mais tradição de partidos de massas surgidos da matriz ideológica do marxismo.

Folha - O sr. pode comparar as tentativas de formular projetos nacionais na Argentina, como os da Geração de 1837, da restauração conservadora, do peronismo, do desenvolvimentismo dos militares, da restauração democrática ou os de hoje?
Halperín Donghi -
A meu ver a Argentina conheceu apenas um projeto nacional, o anunciado pela Geração de 1837, e posto em marcha na etapa de organização nacional sob a inspiração de Alberdi [cientista político argentino, 1810-1884], Sarmiento [presidente da Argentina entre 1868 e 1874] e [Bartolomé] Mitre [presidente da Argentina entre 1862 e 1868], e que só pôde implementar-se sistematicamente uma vez encerrado o ciclo de guerras civis em 1880.
Se a Argentina de então pôde levar adiante uma empresa de tanto fôlego foi porque contava com uma situação favorável na ordem econômica mundial, situação definitivamente perdida a partir da grande crise de 1929.
Os projetos posteriores não sobreviveram à conjuntura internacional. Os demais sucessos, como o introduzido pela restauração conservadora na década de 1930, e o implementado pelo ministro [da Economia] Roberto Lavagna sob as presidências de [Eduardo] Duhalde [presidente entre 2002 e 2003] e Kirchner, se contentaram em oferecer soluções para situações conjunturais. E talvez a essa saudável modéstia devam seu êxito.
Outros mais ambiciosos, como o desenvolvimentista de [Arturo] Frondizi [presidente da Argentina entre 1958 e 1962], caíram vítimas da instabilidade política. Tanto o da restauração peronista de 1973 como o do regime militar que a substituiu, em 1976, tiveram ambições que iam além de lidar com uma tormenta econômica. O da primeira fracassou logo, e o do segundo prolongou-se o suficiente para que não se tenham apagado ainda seus efeitos devastadores.
Após todas essas experiências, acho que não sou o único que se alarma diante de qualquer anúncio de um novo projeto nacional.

Folha - A crítica Beatriz Sarlo disse em entrevista à Folha que o peronismo é a única força capaz de governar a Argentina. O sr. concorda?
Halperín Donghi -
Estou totalmente de acordo. Isso tem a ver com o fato de que o peronismo aproveitou melhor que os rivais as conseqüências da desestruturação do modelo de sociedade que o próprio peronismo impulsionou quando esteve no poder -o que faz com que a sociedade argentina hoje se pareça mais à de 1880 do que com a de 1950.

Folha - Como o peronismo se sairá nas eleições de outubro?
Halperín Donghi -
O peronismo deve triunfar em outubro. Kirchner anunciou que espera que o veredicto eleitoral possa ser lido como um plebiscito favorável tanto à sua gestão como à versão de peronismo que defende -e que combina a adesão sentimental às memórias de sua etapa radical com opções políticas próximas às que na Inglaterra o novo trabalhismo chama de "terceira via".
É possível que um resultado eleitoral positivo faça dele o indiscutível chefe nacional do peronismo, mas esse triunfo se deverá menos à adesão do eleitorado à sua versão do peronismo do que à eficácia com que usar todos os instrumentos disponíveis, muito especialmente o financeiro.

Folha - O sr. acredita que a pesquisa histórica, por ter se concentrando demais nas universidades, tem sofrido um processo de especialização excessiva?
Halperín Donghi -
A profissionalização e a especialização da história têm menos a ver com as universidades do que com a renúncia ao que chamávamos de grandes relatos, até porque estes não nos apontaram para onde vai o mundo, se é que vai a alguma parte.
Até 1848, abundaram na historiografia os grandes relatos, como os de François Guizot (1787-1874), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Karl Marx (1818-1883). Mas, quando a revolução que deveria consumar o triunfo do liberalismo e da democracia terminou num fracasso, as que haviam sido previsões só puderam sobreviver, quando sobreviveram, como expressões de desejos ou profecias.
A historiografia conheceu uma etapa de profissionalização sob a inspiração de Leopold von Ranke (1795-1886). Depois, no pós-Guerra, houve um renascimento dos grandes relatos, nos tempos em que Johnson anunciava nos EUA seu propósito de introduzir medidas que aboliriam para sempre a pobreza, e Krushev dizia que a União Soviética iniciava a transição ao comunismo, porque a economia estava próxima a satisfazer as necessidades de todos.
Esses grandes relatos rivais e irmãos foram desmentidos pelos fatos e, até agora, não foram substituídos. Essa é a razão pela qual os historiadores de hoje se concentram em fazer do melhor modo possível o único que, nestas circunstâncias, podem fazer.


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