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Para Halperín Donghi, o mais respeitado historiador argentino, a reiterada ânsia em evocar riscos para
a democracia é fruto das esperanças frustradas no pós-ditaduras, mas regimes estão estabelecidos
ETERNO RETORNO DA CRISE
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Brasil e Argentina deveriam
parar de falar tanto em "crise". Para Tulio Halperín
Donghi, 79, o mais importante historiador argentino, nem escândalos de corrupção (no caso de
ambos) nem o constante caos político-econômico (no do segundo) deveriam ser rotulados assim, pois isso
esconde os matizes de um processo
particular na experiência de redemocratização dos dois países.
Especialista na "Geração de 1837",
grupo de intelectuais que traçou linhas para a formação do Estado argentino, entre os quais se destacam
Domingo Faustino Sarmiento, Juan
Bautista Alberdi e Esteban Echeverria, Halperín Donghi desdenha dos
projetos de "salvação nacional" surgidos desde então. Mais que isso, hoje se diz "alarmado" toda vez que vê
um deles despontar no horizonte.
O que temos são democracias frágeis que sofrem tropeços, mas que mostram uma capacidade antes desconhecida de superá-los
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De Berkeley, onde leciona, o historiador faz observações sobre Argentina e Brasil. Considera que o presidente Néstor Kirchner deve ter seu
mandato legitimado nas eleições legislativas de outubro, que renovarão
parte do Congresso do país vizinho,
e que a tensão pela qual passa o PT se
insere num contexto internacional
de crise da esquerda.
O historiador, não muito editado
no Brasil (um dos poucos títulos conhecidos é "História da América Latina", lançado em 1975 pela Paz e
Terra), tem um de seus ensaios mais
importantes, "Una Nación para el
Desierto Argentino", reeditado agora pela Prometeo Libros, além de
outros textos. O livro é um clássico
que reconstrói de forma crítica os
projetos de nação forjados por intelectuais argentinos no século 19 e
que ajuda a jogar luz no atual momento político do continente.
Em entrevista à Folha, Halperín
Donghi falou de política atual nos
diversos países da América Latina e
dos caminhos da historiografia com
a crise dos grandes relatos.
Folha - Há crise política em vários
países da América Latina hoje. Acha
que as turbulências recentes de Brasil
e Argentina podem ser comparadas às
de países andinos como Bolívia ou
Equador?
Tulio Halperín Donghi - A crise nos
Andes marca o ingresso em uma nova etapa de convivência entre a etnia
conquistadora e a conquistada. Na
Mesoamérica e nas regiões do antigo
Império Inca, os dominadores haviam mantido aspectos das estruturas sociais para usar a seu favor.
Quando veio a independência,
abriu-se espaço para uma nova solução. Se buscou incorporar ao setor
criollo-mestiço uma parte da população indígena, criando uma base de
apoio que assegurasse a estabilidade
de regimes formalmente republicanos, mas quase sempre fortemente
autoritários.
Essa solução foi bem-sucedida no
México, em Honduras e na Nicarágua, e deve se impor no Peru. Não foi
assim na Guatemala, no Equador ou
na Bolívia, e a conseqüência é que
esses países não são hoje, propriamente falando, Estados-Nação, e talvez seja demasiado tarde para que
cheguem a sê-lo, pois a idéia de Estado-Nação se mostra menos atrativa
que até pouco tempo atrás.
Folha - E quanto ao Brasil e à Argentina?
Halperín Donghi - Aqui não vejo
nada parecido com as conseqüências do processo que acabo de descrever. O que acontece em ambos se
enquadra melhor nos problemas
mais gerais que afrontam as instituições democráticas na América Latina, e em particular nos países que as
restauraram nas duas últimas décadas do século passado.
Folha - O sr. acredita que exista uma
crise das instituições democráticas no
continente?
Halperín Donghi - Talvez crise não
seja a denominação mais adequada.
O que temos são democracias frágeis que sofrem tropeços, mas que
mostram uma capacidade antes desconhecida de superá-los, ainda que,
com isso, não consigam melhorar
seu desempenho.
É significativo que se use tanto o
termo "crise". Isso se deve -sobretudo nos países que sofreram sob ditaduras excepcionalmente rígidas-
por um lado às esperanças que se haviam depositado nas instituições democráticas quando foram restauradas e, por outro, às dúvidas que não
desapareceram sobre se o eclipse das
Forças Armadas como árbitro de última instância no campo político é
mesmo definitivo.
A democracia latino-americana
não está em crise não só porque suas
muitas insuficiências não ameaçam
sua sobrevivência mas também porque essas insuficiências parecem ser
já traços permanentes nesta etapa da
experiência democrática na América Latina.
Folha - A crise do PT no Brasil, a falta
de uma esquerda forte na Argentina e
a realidade de modelos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, apontam
para um colapso da esquerda no continente?
Halperín Donghi - A esquerda enfrenta em todo o mundo uma crise
séria, pois, no modelo econômico de
hoje, uma política como a que as esquerdas defendiam até há 25 anos
não é mais viável.
Em 1981, os socialistas franceses
ganharam uma eleição anunciando
que fariam com que a França mudasse de sociedade. Hoje decidiram
defender a economia social de mercado que floresceu na Europa sob o
signo socialista ou social-cristão. Os
socialistas europeus defendem um
capitalismo de rosto humano. E,
ainda assim, suas perspectivas não
são brilhantes, porque esse modelo
econômico resiste mal à concorrência da indústria que avança nos países antes periféricos.
Por isso, se na Europa ocidental a
esquerda, ali consolidada ao longo
de mais de um século de lutas sociais, considera difícil prosperar, não
é estranho que ache ainda mais difícil ganhar espaço político significativo na América Latina, que não tem
mais tradição de partidos de massas
surgidos da matriz ideológica do
marxismo.
Folha - O sr. pode comparar as tentativas de formular projetos nacionais na Argentina, como os da Geração de 1837, da restauração conservadora, do peronismo, do desenvolvimentismo dos militares, da restauração democrática ou os de hoje?
Halperín Donghi - A meu ver a Argentina conheceu apenas um projeto nacional, o anunciado pela Geração de 1837, e posto em marcha na
etapa de organização nacional sob a
inspiração de Alberdi [cientista político argentino, 1810-1884], Sarmiento [presidente da Argentina entre
1868 e 1874] e [Bartolomé] Mitre
[presidente da Argentina entre 1862
e 1868], e que só pôde implementar-se sistematicamente uma vez encerrado o ciclo de guerras civis em 1880.
Se a Argentina de então pôde levar
adiante uma empresa de tanto fôlego foi porque contava com uma situação favorável na ordem econômica mundial, situação definitivamente perdida a partir da grande
crise de 1929.
Os projetos posteriores não sobreviveram à conjuntura internacional.
Os demais sucessos, como o introduzido pela restauração conservadora na década de 1930, e o implementado pelo ministro [da Economia] Roberto Lavagna sob as presidências de [Eduardo] Duhalde [presidente entre 2002 e 2003] e Kirchner, se contentaram em oferecer soluções para situações conjunturais.
E talvez a essa saudável modéstia devam seu êxito.
Outros mais ambiciosos, como o
desenvolvimentista de [Arturo]
Frondizi [presidente da Argentina
entre 1958 e 1962], caíram vítimas da
instabilidade política. Tanto o da
restauração peronista de 1973 como
o do regime militar que a substituiu,
em 1976, tiveram ambições que iam
além de lidar com uma tormenta
econômica. O da primeira fracassou
logo, e o do segundo prolongou-se o
suficiente para que não se tenham
apagado ainda seus efeitos devastadores.
Após todas essas experiências,
acho que não sou o único que se
alarma diante de qualquer anúncio
de um novo projeto nacional.
Folha - A crítica Beatriz Sarlo disse
em entrevista à Folha que o peronismo é a única força capaz de governar
a Argentina. O sr. concorda?
Halperín Donghi - Estou totalmente
de acordo. Isso tem a ver com o fato
de que o peronismo aproveitou melhor que os rivais as conseqüências
da desestruturação do modelo de
sociedade que o próprio peronismo
impulsionou quando esteve no poder -o que faz com que a sociedade
argentina hoje se pareça mais à de
1880 do que com a de 1950.
Folha - Como o peronismo se sairá
nas eleições de outubro?
Halperín Donghi - O peronismo deve triunfar em outubro. Kirchner
anunciou que espera que o veredicto
eleitoral possa ser lido como um plebiscito favorável tanto à sua gestão
como à versão de peronismo que defende -e que combina a adesão
sentimental às memórias de sua etapa radical com opções políticas próximas às que na Inglaterra o novo
trabalhismo chama de "terceira via".
É possível que um resultado eleitoral positivo faça dele o indiscutível
chefe nacional do peronismo, mas
esse triunfo se deverá menos à adesão do eleitorado à sua versão do peronismo do que à eficácia com que
usar todos os instrumentos disponíveis, muito especialmente o financeiro.
Folha - O sr. acredita que a pesquisa
histórica, por ter se concentrando demais nas universidades, tem sofrido
um processo de especialização excessiva?
Halperín Donghi - A profissionalização e a especialização da história
têm menos a ver com as universidades do que com a renúncia ao que
chamávamos de grandes relatos, até
porque estes não nos apontaram para onde vai o mundo, se é que vai a
alguma parte.
Até 1848, abundaram na historiografia os grandes relatos, como os de
François Guizot (1787-1874), Alexis
de Tocqueville (1805-1859) e Karl
Marx (1818-1883). Mas, quando a revolução que deveria consumar o
triunfo do liberalismo e da democracia terminou num fracasso, as que
haviam sido previsões só puderam
sobreviver, quando sobreviveram,
como expressões de desejos ou profecias.
A historiografia conheceu uma
etapa de profissionalização sob a
inspiração de Leopold von Ranke
(1795-1886). Depois, no pós-Guerra,
houve um renascimento dos grandes relatos, nos tempos em que
Johnson anunciava nos EUA seu
propósito de introduzir medidas
que aboliriam para sempre a pobreza, e Krushev dizia que a União Soviética iniciava a transição ao comunismo, porque a economia estava
próxima a satisfazer as necessidades
de todos.
Esses grandes relatos rivais e irmãos foram desmentidos pelos fatos
e, até agora, não foram substituídos.
Essa é a razão pela qual os historiadores de hoje se concentram em fazer do melhor modo possível o único que, nestas circunstâncias, podem fazer.
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