São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997.



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RAZÃO DESENCANTADA
A promessa de libertação



Escrito em plena Segunda Guerra, "Dialética do Esclarecimento" é uma das análises mais contundentes já feitas sobre o século
JORGE ALMEIDA
especial para a Folha

s e os livros já nascem endereçados à posteridade, eles têm de enfrentar mais cedo que os homens o julgamento da validade dessa pretensão. Ao contrário do que ocorre com as homenagens motivadas pelo aniversário de nascimento ou morte de um pensador ou artista, as comemorações do aniversário de publicação de um livro possuem um caráter ambíguo. Ao mesmo tempo em que se reconhece a importância do texto, ressalta-se a distância histórica que nos afasta do contexto em que este foi escrito, tornando inevitável e necessário o questionamento de uma atualidade.
No caso da "Dialética do Esclarecimento" (publicado há 50 anos), entretanto, este questionamento não se baseia em efemérides, é exigido pelo próprio texto. Já no prefácio à segunda edição, de 1969, os autores advertem: "Não nos agarramos a tudo o que está dito no livro. Isso seria incompatível com uma teoria que atribui à verdade um núcleo temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico como algo de imutável".
Escrito em plena Segunda Guerra Mundial por Theodor Adorno e Max Horkheimer, o livro é uma reflexão contundente sobre as questões mais importantes da época; o horror do nazismo, a ascensão do stalinismo e a face totalitária do capitalismo monopolista, experimentada no exílio americano. Mesmo estando profundamente ligado a acontecimentos circunscritos historicamente, os autores mantêm a esperança, na reedição do livro, de que ele seja mais do que um documento, já que a questão principal, a de saber "por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie", permanecerá atual sempre que houver declarações otimistas afirmando o contrário.
A "Dialética do Esclarecimento" engloba, em seu enfoque interdisciplinar profundamente marcado pela reflexão filosófica, a trajetória intelectual de seus autores e, também, grande parte das pesquisas realizadas desde a década de 1930 no Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt. As considerações de Adorno sobre a dialética do progresso musical e do domínio da natureza nas obras de Schoenberg, que deram origem ao livro "Filosofia da Nova Música", o projeto de crítica ao positivismo e à antropologia burguesa desenvolvido por Horkheimer, assim como a pesquisa do instituto sobre as raízes históricas e ideológicas do anti-semitismo constituem a base para o desenvolvimento de uma crítica mais abrangente do próprio conceito de razão.
Diante da catástrofe do nazismo e da aniquilação industrial de seres humanos, não era mais possível culpar somente o declínio e o colapso da cultura pelo horror da barbárie reinante, como fizeram tantos intelectuais da época. Os autores procuraram, antes, encontrar na própria cultura, e no conceito de razão sobre o qual esta se assenta, os fundamentos para sua conversão em barbárie, tema já ressaltado por Walter Benjamin em suas "Teses Sobre a Filosofia da História", publicadas pelos autores após a morte trágica do amigo em 1940.
O fio condutor do texto é a exposição das contradições inerentes ao conceito de Esclarecimento, e a reflexão sobre seus desdobramentos históricos. O objetivo do Esclarecimento sempre foi o de "livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores". No confronto primordial com a natureza ameaçadora, o Esclarecimento deu início ao desencantamento do mundo, buscando assegurar, pelo uso da razão, a conservação da espécie.
O Esclarecimento cumpre seu programa através da progressiva dominação da natureza. Esta perde suas qualidades, passando a ser considerada apenas enquanto objeto da dominação. Submetido ao primado da calculabilidade, o mundo torna-se uma incógnita a ser deduzida. A contrapartida disso é redução do saber à técnica e ao método. O conhecimento passa a ser medido por sua eficácia e a razão instrumentalizada torna-se o fundamento do poder. A dialética entre mito e razão se expande a todas as esferas da sociedade: "Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o Esclarecimento, assim também o Esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo, na mitologia" (leia mais sobre o Esclarecimento à pág. 5-6).
O livro expõe também a gênese da subjetividade a partir do reconhecimento do poder sobre a natureza e o outro. A constatação de que a dominação da natureza também é uma dominação sobre o próprio sujeito remete a temas tradicionais da teoria marxista, como a reificação e a alienação. A utopia do progresso encontra aqui seu lado obscuro: "O aumento da produtividade econômica, que, por um lado, produz as condições para um mundo mais justo, confere, por outro lado, ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população".
Este controle, mais evidente nas sociedades totalitárias, é, entretanto, uma característica constitutiva da sociedade industrial. O impulso em direção à integração e ao aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social levam, no mundo administrado, à dissolução do sujeito. A inquestionável atualidade dessa questão alimenta grande parte do debate filosófico recente, centrado nos dilemas da pós-modernidade e na defesa da recuperação crítica do projeto iluminista.
Um dos capítulos mais polêmicos e originais da "Dialética do Esclarecimento" é o que trata da indústria cultural. O conceito, cunhado neste livro por Adorno e Horkheimer para ressaltar o caráter externo e impositivo da produção industrializada de bens culturais, é hoje motivo de controvérsias e mal-entendidos. A reação irada contra toda crítica ao jazz e aos filmes de Hollywood fez do texto um dos pontos preferidos do ataque à obra, uma fúria que, ironicamente, é tematizada pelos autores na própria análise dos mecanismos psicológicos pelos quais a indústria cultural se impõe. A tese básica é a de que, no capitalismo tardio, a rotinização da diversão do chamado "tempo livre" é organizada como um prolongamento do trabalho alienado. O "prazer" oferecido pela indústria cultural é a contrapartida de um esforço extremo de cancelamento da reflexão por parte de suas vítimas.
A mesmice dos produtos da indústria cultural abarca até mesmo as obras que apontam para uma distinção social: "Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas". O orgulho na defesa incondicional da "cultura" e dos "valores eternos" da civilização, supostamente contrários à mercantilização do espírito, é diagnosticado pelos autores como mais um momento da capitulação do pensamento à mercadoria: "A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura sempre foi contrário à cultura. O denominador comum 'cultura' já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração".
Diante de tudo isso, o próprio esforço de Esclarecimento deve necessariamente realizar um momento de autocrítica, sem o qual degenera em ideologia por não cumprir a libertação que prometeu. "Se o Esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos à reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade".
As questões da atualidade da obra e do destino do livro estão presentes, portanto, nos próprios motivos que levam à comemoração de seu cinquentenário. A oportunidade da leitura de um breve resumo de um grande livro no caderno cultural de um jornal "esclarecido" pode se constituir no sucedâneo nefasto de uma compreensão crítica das reflexões nele contidas. Mas a esperança de que desperte o interesse do leitor para o estudo atento da obra está na base daquela crença na humanidade jamais abandonada pelos autores da "Dialética do Esclarecimento".


Jorge Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP; pesquisa a teoria estética na obra de Adorno; co-traduziu, com Augustin Wernet, "Prismas", de Adorno, a ser lançado pela Ática (sem data definida).



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