São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997.



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LIVROS
A malícia de um marginal



Em "Não Quero Prosa" o poeta Cacaso dialoga com sua herança modernista


AUGUSTO MASSI
especial para a Folha

Contrariamente ao que ocorreu com Ana Cristina César (1952-1983) e Paulo Leminski (1944-1989), cujos inéditos foram publicados ao longo da última década, os vários cadernos deixados por Cacaso permanecem guardados e inacessíveis para os leitores. Quebrando um jejum de dez anos, "Não Quero Prosa" reúne boa parte de sua produção ensaística, selecionada e batizada pelo próprio autor, pouco antes de sua morte, em 1987.
O achado do título, "Não Quero Prosa", combina com extrema felicidade dois aspectos aparentemente contraditórios, mas que, no ensaísmo de Cacaso, andam juntos: a disposição para a briga e a disponibilidade para o bate-papo poético. O primeiro deve ser atribuído à sua personalidade -"tico-tico de rapina, ninguém leva meu fubá"-, o segundo, ao espírito da época, marcado pela vontade de retomar um debate interrompido pela ditadura militar.
Penso que a originalidade da coletânea deve-se, em parte, ao ar de conversa que perpassa os diferentes ensaios e à capacidade do autor de extrair dessa articulação de fundo uma visada interpretativa. O volume, prefaciado e reorganizado pela escritora e professora Vilma Arêas -que optou por substituir a cronologia pelo assunto-, foi dividido em sete partes. Logo no ínício, "Entrevista" reproduz respostas do poeta ao jornal "Movimento", em 1976, quando afirma com lucidez que "marginalidade não é opção".
Mas, é na segunda parte, "Bate-Papo sobre Poesia Marginal", que figuram alguns dos principais textos do autor sobre o movimento. Entre eles, é preciso destacar "Tudo da Minha Terra", detalhada análise do impacto causado pela obra de Chacal. Em linhas gerais, a catimba e malícia do militante contaminam os ensaios, caracterizando uma atitude de resistência diante do marasmo cultural. Alternando pontos de vista, Cacaso tinha um olhar cerrado para a notação individual e outro abertíssimo para a experiência coletiva. Mesmo reconhecendo a fragilidade estética de algumas iniciativas, o crítico apostava todas suas fichas na novidade do fato literário, defendendo com originalidade a idéia de que aquela geração estava escrevendo um único "poemão".
Cacaso tinha suas razões. Naquela época, publicar uma antologia transcendia o caráter literário, equivalia a organizar uma festa, como também elaborar uma lista de futuros anistiados. O clima de descontração nem sempre era índice de descomprometimento político. O otimismo do "fazer" parecia remédio eficaz contra o sufoco da censura, as restrições do mercado e a asfixia da vanguarda. A informalidade exigia uma grande dose de disciplina: espírito guerrilheiro e estratégias de transgressão.
Com a abertura política, a simpatia acabou cedendo espaço à reflexão balizada por critérios literários. Cacaso começa a redefinir seu roteiro de interpretação e a redesenhar, dentro dos contornos socializantes da poesia marginal, alguns perfis dotados de singularidade: Francisco Alvim, Charles, Ana Cristina César e Carlos Saldanha.
Ainda sob o signo da conversa é que devemos ler a terceira parte: "Polêmicas e Consensos em Polêmicas". Demonstrando ser um observador armado de qualidades para pensar em meio ao fogo cruzado das polêmicas, em "Você Sabe com Quem Está Falando?", Cacaso arma um quadro histórico do país que, ao abandonar duas décadas de autoritarismo, reencontra sua vocação plural. Dialogando com Flora Sussekind, que abordou a questão em "Literatura e Vida Literária", qualificando a polêmica como uma "prática autoritária revestida de capa democrática", ele contra-argumenta: "A polêmica é uma boa escola para a reeducação moral e política, cívica e intelectual".
Encarnando uma espécie de repórter habituado ao registro das controvérsias, ele ouve e capta, com a câmara giratória dos olhos e o microfone democrático dos ouvidos, o debate provocado pelo filme "Cinema Falado", de Caetano Veloso. É a personalidade polêmica do compositor que dá prumo ao belíssimo ensaio "Pelo Que Me Falaram". Aqui ele parece ter alcançado uma adequação estilística: o distanciamento crítico é o que lhe permite percorrer e recombinar as encruzilhadas do objeto em questão. Cada linha traduz o empenho e a alegria de discutir a sério, sem a roupagem da especialização artística e a moda sofisticada das terminologias universitárias.
Outro ponto alto é "A Lição dos Mestres", que reúne os ensaios "A Atualidade de Mário de Andrade" e "Alegria da Casa". No primeiro, discute-se a poesia brasileira -geração de 45, poesia participante e concretismo- à luz das idéias defendidas por Mário em "O Banquete": "A maior conquista do modernismo brasileiro foi sistematizar, como princípio mesmo da arte, o direito de errar". Traduzindo: direito à pesquisa e liberdade para inovar. No segundo, aprofunda ainda mais a sua leitura de Mário de Andrade, tentando extrair uma articulação entre vida e obra. Por intermédio de ambos, podemos avaliar o quanto o amadurecimento intelectual e poético de Cacaso se deu a partir de um corpo-a-corpo com a estética e as atitudes modernistas.
A linha evolutiva de seu ensaísmo termina com o notável e inacabado "O Poeta dos Outros" (1988), por meio do qual explica a importância da poesia de Francisco Alvim. Fisgou um assunto e tanto. Convergem nesse ensaio a visão amadurecida do modernismo, o papel do poeta dentro das malhas da sociabilidade e uma reflexão sobre a amizade. Mineiros convertidos à religião carioca.
Quem conhece "A Palavra Cerzida" (1967), primeiro livro de poemas de Cacaso, então Antônio Carlos de Brito, pode avaliar a distância que separa aquele rapazinho natural de Uberaba -vide a tradicional foto de quarta capa com estante de livros ao fundo e o preciosismo do título- do retrato em branco e preto que figura na sua última obra, "Mar de Mineiro"(1982), captando um Cacaso cabeludo, com chapéu de palha, fumando um cigarro e limpando as unhas com a ponta da faca. Mudança dos ventos: da ditadura ao desbunde, da marginalidade poética ao mercado musical, do professor universitário ao aluno modernista. Ele estava mais livre.
"Não Quero Prosa" revela como o engajamento político-literário de Cacaso jurava fidelidade ao engajamento existencial. Estava enraizado na arte de palpitar, fazer amigos, participar sem cerimônia da vida. É nesse sentido que a sua figura faz falta. O humor e a graça do ensaísta nos surpreende com expressões como "nesse jeito de escrever, que é como andar de bicicleta de mãos soltas".
Visto no conjunto e sem a moldura histórica necessária, alguns textos perdem atualidade. Há quedas de voltagem crítica. Mas os acertos são muitos, e todos me parecem obra do Cacaso. A conversa promete. Sou todo ouvidos.


Augusto Massi é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Negativo" (Companhia das Letras).
A OBRA
Não Quero Prosa - Cacaso. Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Ed. da Unicamp (caixa postal 6.074, Cidade Universitária, CEP 13083-970, Campinas, SP, tel. 019/788-2015). 336 págs. R$ 37,00.



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