São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Salário no olhômetro

Cálculos complexos e fraudes no peso lesam trabalhadores analfabetos ou semi-alfabetizados

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP

O trabalho na colheita da cana-de-açúcar vale quanto pesa a cana cortada. Pelo menos deveria valer.
Documentos obtidos em duas regiões de São Paulo indicam que uma desconfiança atávica dos trabalhadores não se trata de paranóia: fraudes -ou erros- provocam o pagamento abaixo do previsto nos acordos com as empresas.
A remuneração dos cortadores é uma equação complicada mesmo para quem tem formação superior. Para a esmagadora maioria dos lavradores, é ainda pior: na média, eles não completaram nem a quarta série do ensino fundamental.
Anualmente, empresários e sindicatos de assalariados definem quanto vale a tonelada colhida. As cifras variam de acordo com o tipo da cana.
Embora o pagamento seja por peso, o desempenho dos cortadores é aferido por distância. Usinas e fornecedores de cana fixam o peso existente por metro colhido. O peso depende de altura, espessura e outras características da cana.
Multiplicam-se os metros colhidos pelo peso de 1 metro. O resultado é o peso da cana cortada. Este é multiplicado pelo valor da tonelada, determinando o ganho do dia.
Às vezes as contas não fecham. O trabalhador rural Adelfo da Costa Machado cortou 132 metros lineares de cana na quinta-feira 12 de junho.
A Indústria e Comércio Iracema Ltda., proprietária da destilaria Iracema, de Itaí (SP), pagou-lhe R$ 0,20 por metro. A jornada deu direito a R$ 26,40.
Daquele tipo de cana, uma tonelada valia R$ 2,7462.
Os demonstrativos da balança da Iracema revelam que na roça onde Machado trabalhou o rendimento por hectare foi de 138 toneladas. O desembolso pela mão-de-obra seria de R$ 379 por hectare (área pouco menor que o campo de futebol de dimensões máximas).
Com o espaçamento de 1,4 metro entre as fileiras de cana (ruas, como se diz na lavoura paulista), em um hectare há 7.140 metros lineares plantados. O lavrador tem de cortar um metro de cinco ruas -5 metros, portanto- para que se compute um metro na sua produção.
Cada cortador deveria receber R$ 0,2653 por metro -33% a mais do que foi pago. Em vez de R$ 26,40, Adelfo Machado tinha direito a R$ 35,02 pelas 12,8 toneladas que abateu.
Deu para entender?
Imagine os cortadores.
Para fazer o cálculo, precisou-se cotejar a "planilha de ponto de produção", preenchida no canavial por um fiscal da empresa, com o contracheque do empregado e um documento da firma assinalando as toneladas por hectare.
Foi o procurador do Trabalho José Fernando Maturana, de Bauru, quem garimpou e cruzou as informações.
Em um documento co-assinado com o procurador, um funcionário da Iracema reconheceu que no "talhão 35" o rendimento foi de 138 toneladas por hectare. Talhão é uma subdivisão, de dimensões diversas, da área do canavial.
Na terça, outro executivo da Iracema afirmou que estava errada a tabela da empresa. Por engano, computaram-se 138 toneladas, mas "a produção por hectare foi menor". Os trabalhadores teriam recebido corretamente.

Instrumento primitivo
Ao contrário do vendedor consciente dos sapatos que vendeu, o lavrador ignora as toneladas que colheu. Com a balança nas usinas, longe da roça, ele só sabe depois. Na lavoura, o terreno cortado é medido por um instrumento primitivo: um compasso de madeira, com pontas de ferro e raio de 2 metros. O fiscal caminha girando o compasso gigante.
"Enquanto as usinas utilizam modernos sistemas de monitoramento por GPS para projetar a colheita, os trabalhadores são remunerados no "olhômetro", acusa o Ministério Público do Trabalho.
Indagado sobre as toneladas que corta e o valor do metro, um canavieiro respondeu, em Pederneiras, como os colegas: "Não sei".
Nas greves de 1984 a 86, os cortadores reivindicaram sem sucesso o pagamento por metro, e não por peso. "O trabalhador sempre foi roubado", acusa José de Fátima Soares, líder das antigas mobilizações em Guariba. Zé de Fátima aderiu ao petismo e ao trotskismo e trocou-os pelo malufismo. Hoje é do PPS.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis acionou o Ministério do Trabalho em 2005. Com base em anotações da performance em metros no canavial e da pesagem nas usinas, descortinaram-se diferenças entre cana colhida e pesada. Em 4 de agosto daquele ano, a empresa A.P. de Freitas Neto fixou a relação de 30 kg por metro. A cana se destinava à usina São José. Na balança, o metro pulou para 49 kg.
Em 1998, greve em Cosmópolis conquistou um sistema pioneiro para conferir a produção: na usina de Cosmópolis, a Ester, três funcionários do sindicato se revezam 24 horas na sala de operação da balança.
Eles monitoram, caminhão por caminhão, as toneladas que os computadores da empresa registram.
O controle da produção, com sindicalistas conferindo o peso, só existe lá. Nas grandes usinas, o método é o do caminhão-campeão. Selecionam-se três amostras do canavial, pesa-se e define-se o valor do metro. O cortador não testemunha a pesagem. Certas empresas nem esse recurso empregam.
"Por que, no Brasil, só uma usina faz o controle da produção?", pergunta Carlita da Costa, presidente do sindicato de Cosmópolis. "Para mim, há fraudes [em outras usinas]."
A União da Indústria de Cana-de-Açúcar afirma que há um esforço com a Federação dos Empregados Rurais Assalariados de SP para assegurar "transparência e confiabilidade" e "apurar se aquilo que se está produzindo se está recebendo". Patrões e empregados não sabem de punição criminal por manipulação de peso. A usina São José foi procurada, mas não se pronunciou. A Freitas Neto não foi encontrada.
O contador Fábio Urrea, contratador de mão-de-obra, disse em Agudos que, "se o cara for sério", é difícil fraudar o peso. "E existe quem não seja sério nesse meio?", ouviu dos repórteres. Urrea sorriu: "É duro falar. Complicado".


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