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Quanto mais irreflexivo e acrítico se torna o capitalismo, mais
se consolida uma necessidade insatisfeita por teoria, uma
necessidade que cedo ou tarde será imperiosa
Marx depois do marxismo
Robert Kurz
Nem só livros isolados têm o seu
destino, mas também grandes
teóricos. E sobretudo para os
teóricos críticos vale o antigo
adágio: "Quem é dado por morto, vive
mais". Karl Marx já foi dado por morto
mais de uma vez e sempre escapou por
um fio da morte histórica e teórica. A razão é simples: a teoria de Marx só poderá
morrer em paz junto com o seu objeto, o
modo de produção capitalista. Enquanto
esse sistema de um cinismo mundialmente objetivado não desaparecer da
história, o espectro do comunismo continuará a rondar; e a teoria de Marx, com
sua análise até hoje insuperada da lógica
capitalista e de suas leis funcionais, forneceu um dia os elementos básicos de
uma crítica à qual essa forma de sociedade é um desafio renovado.
Talvez no futuro próximo o mundo se
surpreenda novamente com um indesejável renascimento do tantas vezes satanizado "profeta" barbudo da crítica radical do capitalismo. A favor dessa suposição pesa o fato de que o capitalismo fracassou estrondosamente em dar às regiões economicamente arruinadas de
sua periferia uma nova perspectiva civilizadora. E tampouco é só a expectativa de
uma possível crise alarmante dos mercados financeiros que poderia recolocar
Marx na ordem do dia da história. Mesmo se o capitalismo do tipo "shareholder
value" perdurar ainda por algum tempo,
o sistema capengante, em sua singeleza
econômica, já carrega involuntariamente dentro de si uma outra e perigosa
substância inflamável, o bocejante tédio
intelectual.
Alentados livros
Quanto mais irreflexivo e acrítico se torna o capitalismo,
mais se consolida uma necessidade insatisfeita por teoria, uma necessidade que
cedo ou tarde será imperiosa. Não há sociedade que deixe atrofiar impunemente
o seu potencial intelectual. Depois que os
charlatães da pós-modernidade escreveram alentados livros sobre por que já não
é mais possível escrever alentados livros,
o capitalismo expirou as suas últimas
idéias. Os conteúdos da chamada "era da
informática e da comunicação" só fazem
aborrecer até mesmo pessoas com modestas pretensões intelectuais. Em sua
penúria, não resta outra alternativa à
"necessidade teórica", na busca por alimento espiritual, senão se aproximar daqueles campos da crítica radical da sociedade que, hoje em dia, saíram totalmente
da moda intelectual.
Mas, a exemplo de todo pensamento
teórico que ultrapassa a data de validade
de um determinado espírito de época,
também isso vale para a obra de Marx:
ela sempre carece de uma nova abordagem que lhe descubra novas facetas e
descarte velhas interpretações. E não só
interpretações, mas também certos elementos datados dessa própria teoria. Cada teoria, como dizia Adorno, tem um
"núcleo temporal" e, portanto, uma limitação que a obriga a se desenvolver e a
ir além de si mesma. De outro lado, cada
teórico pensou mais do que ele próprio
sabia; e uma teoria sem contradições não
seria seriamente digna desse nome. Existe sempre uma relação tensa entre uma
teoria e seus destinatários e também seus
opositores, na qual a contradição interna
da teoria se desdobra e só assim fomenta
o conhecimento crítico capaz de agir socialmente.
Quando Marx, precipitadamente dado
como morto, ressuscitar outra vez, com
certeza não será mais no horizonte hermenêutico daquela época que findou em
1989 e que por isso só agora pode ser
abarcada com a vista. Para poder compreender o valor da teoria de Marx e as
suas contradições, é preciso redefinir a
natureza dessa época do ponto de vista
atual. Ela não encerra apenas o "breve"
século 20 (1914-1989), mas três grandes
processos históricos ou ondas de desenvolvimento que, de certo modo, tiveram
seus respectivos séculos, mas que se sobrepuseram e penetraram mutuamente.
A primeira dessas ondas pode ser designada como o "século do movimento
operário" (1848 a 1950), a segunda como
o "século da luta pelo domínio capitalista
mundial" (1870 a 1945), a terceira como o
"século das revoluções de desenvolvimento nacional" (1918 a 1989).
Foi pela interferência dessas ondas que
se criaram as constelações do modelo
histórico da sociedade mundial e de seus
"sistemas" -modelo a nós familiar, porém agora desaparecido. No processo integrado dessa época, o capitalismo impôs-se globalmente e amadureceu como
formação social. E não há dúvida de que
aquela corrente intelectual e política designada como "marxismo" marcou indelevelmente esse desenvolvimento.
Mas isso significa também que o "marxismo" se prende àquela época cujo término testemunhamos. O que constitui o
"núcleo temporal" da teoria de Marx se
tornou, pois, obsoleto. Atuantes no futuro só podem ser agora aqueles aspectos
dessa teoria que não se esgotam em "núcleos temporais", antes apontam para
além deles. Aliás, o próprio Marx já dizia:
"Não sou um marxista".
O problema básico comum, e a dinâmica de desenvolvimento daí resultante
dos três "séculos" imbricados de movimento operário, revolução de desenvolvimento nacional e luta pelo domínio
mundial (dentro do "longo" século de
1848 a 1989, com a queda do Muro de
Berlim), pode talvez ser definido como o
descompasso temporal do capitalismo.
Primeiro, o novo modo de produção era
de certa maneira descompassado com
relação a si mesmo naquele intervalo do
século 19 que constituiu a vida de Marx
(1818-1883): de um lado, ele tinha desdobrado sua própria lógica a ponto de ela
ser visível em suas linhas básicas e portanto reconhecível abstratamente; de outro, as formas econômicas capitalistas e
as relações sociais ainda estavam muitas
vezes amalgamadas com relações e formas de pensar pré-capitalistas.
Assim era que o direito burguês e o respectivo aparato ainda estavam longe de
totalmente diferenciados e perfeitos, os
espaços sociais ainda não se achavam suficientemente homogeneizados, os padrões pré-modernos da cultura cotidiana incompatíveis com o "trabalho abstrato" ainda não tinham sido postos de
lado e a normatização da produção e do
consumo ainda não fora realizada.
Desenvolvimentos díspares
Por
outro lado, o descompasso temporal do
desenvolvimento capitalista apresentava-se também como externo. Quando
Marx escreveu seu "Capital", uma grande porção do globo praticamente não fora ainda arrebatada pela lógica desse modo de produção. As áreas coloniais, das
quais uma parte considerável só foi anexada no século 19, foram tocadas apenas
na superfície e pontualmente pelo processo capitalista, enquanto a vida na
grande hinterlândia persistia nas estruturas pré-modernas.
Mas, mesmo no interior da Europa, havia uma acentuada disparidade de desenvolvimento. A Inglaterra já rudimentarmente industrializada antecipara-se
em muito ao continente, enquanto entre
os países continentais a porção ocidental
(em especial a França) era bem mais desenvolvida em relação à Europa Central e
Meridional. Na Alemanha, não se firmara nem sequer o pressuposto de uma
economia nacional uniforme e de um
correspondente Estado nacional.
Assim, o século 19 na Europa e no círculo daqueles países que já se começavam a definir vagamente como "capitalistas" esteve essencialmente sob o signo
de uma corrida de recuperação. Essa primeira "modernização retardatária" estabeleceu (na concorrência com a Inglaterra e a França) como que um paradigma
que marcou de forma mais duradoura o
desenvolvimento da Alemanha e da Itália; e na Ásia, também o do Japão.
Ao mesmo tempo os Estados Unidos,
até ali pouco notados pela "história universal européia", transformaram-se meteoricamente, do outro lado do Atlântico, num foco autônomo de capitalismo
industrial. Foi esse processo de "modernização retardatária", na segunda metade do século 19, que possibilitou o surgimento daquele contraditório centro global de relativamente poucos países que,
desde então, domina o mundo capitalista em constelações diversas.
Não resta dúvida de que Marx, nesse
contexto de variados descompassos
temporais, escreveu não apenas da perspectiva de uma radical crítica do capitalismo, mas paradoxalmente da perspectiva também de seu desenvolvimento
positivo. Pois Marx, afinal, foi um dissidente do liberalismo que esteve preso ao
conceito liberal de progresso burguês e
ao esquema histórico do desenvolvimento da filosofia hegeliana.
Dessa perspectiva, era simplesmente
"a vez" histórica do capitalismo e, para
poder um dia suprimi-lo para sempre,
era preciso primeiro introduzi-lo, sustentá-lo, desenvolvê-lo e de certo modo
avizinhar-se de seu conceito como suposto modo de produção "historicamente necessário", em nome de um "desenvolvimento das forças produtivas".
"Preocupa-nos", diz Marx já no prefácio
da primeira edição de sua obra-prima,
"não só o desenvolvimento da produção
capitalista, mas também a falta de seu desenvolvimento". Essa frase poderia servir de chave para toda a história do
"marxismo".
Chave positiva
Isso porque, de
acordo com essa frase, a teoria de Marx
não reflete o processo de modernização
capitalista como algo negativo, mas sim
positivo e, nesse sentido, difere das outras teorias de modernização somente
pela sua terminologia específica e pelo
seu arcabouço histórico-filosófico. O
"marxismo" do antigo movimento operário remetia-se, em última instância, a
esse aspecto específico em Marx. Em seu
alcance, a crítica do capitalismo a ele vinculada ainda estava longe de poder abarcar o conjunto lógico e histórico desse
modo de produção, só o fazendo com
certos graus de desenvolvimento do descompasso temporal interno e externo.
Essa limitação era tanto menos aparente uma vez que, aos próprios "interesses
dominantes" e a seus apologetas, o capitalismo parecia idêntico ao respectivo estágio de seu desenvolvimento ainda
inesgotado. E as conservadoras elites
funcionais, tanto econômicas quanto
políticas, sempre se atinham ao status
quo do processo de transformação.
O marxismo converteu-se em ideologia legitimadora da auto-afirmação
da periferia "retardatária" na concorrência com os centros estabelecidos do capital
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Foi assim, por sua vez, que o repúdio a essa
situação nas forças "progressistas", em luta
para romper o status quo, assumiu o nome
de "crítica do capitalismo", ainda que, na
verdade, se tratasse apenas do desenvolvimento ulterior do próprio capitalismo.
Dessa perspectiva resulta a constatação,
só à primeira vista surpreendente, de que o
"marxismo" do "longo" século de 1848 a
1989, sem saber nem querer, foi no fundo
uma mola propulsora ou um "acólito do desenvolvimento" capitalista. De fato, o pensamento "marxista" de toda essa época se
referia às respectivas condições empíricas
menos da perspectiva de uma crítica do desenvolvimento da produção capitalista que
da perspectiva de uma crítica da falta de seu
desenvolvimento.
Paradoxos do marxismo
Os partidos
"marxistas" lutavam sem exceção pela modernização das relações; como queriam
"domar" o capitalismo, impeliram-no
adiante. Cumpriram, assim, um papel vanguardista na superação do descompasso
temporal interno e externo. Por isso assumiram também, sob os pressupostos concorrenciais da "modernização retardatária"
do século 19, o ponto de vista econômico e
estatal de "seu" Estado-nação: a oposição
social interna e o conformismo nacional externo não eram, na verdade, tão antagônicos como primeiramente talvez pudessem
parecer, antes brotavam igualmente do papel paradoxal do "marxismo" no processo
de desenvolvimento capitalista.
Foi assim que, na Primeira Guerra Mundial, o "século do movimento operário" pôde aliar-se ao "século da luta pelo domínio
capitalista mundial" da maneira mais atroz.
Simultaneamente à eclosão da Revolução
Russa de outubro, teve início a segunda onda da "modernização retardatária", ou seja,
o "século das revoluções de desenvolvimento nacional". Pois só então ingressavam as
grandes regiões globais da periferia capitalista, a grande maioria da humanidade, como Marx já previra 50 anos antes com pretensões próprias na história capitalista universal. E mais uma vez o "marxismo" assumiu o papel de uma crítica da falta de desenvolvimento capitalista.
Converteu-se ele em ideologia legitimadora da auto-afirmação da periferia "retardatária" na concorrência com os centros estabelecidos do capital.
Nesse contexto há de se compreender
também o grande cisma do movimento
"marxista" mundial: enquanto os partidos
trabalhistas ocidentais, nesse meio tempo
reconhecidos como forças positivas da modernização, não precisavam mais recorrer a
Marx para se legitimarem, o "marxismo"
passou de certo modo a ser propriedade exclusiva dos retardatários históricos.
Hoje a história dos descompassos temporais no capitalismo terminou. Quis a ironia
dessa história que o "marxismo" como teoria da modernização e do desenvolvimento
no século 20 se tornasse duplamente obsoleto, por razões totalmente contrárias: no
caso do movimento operário ocidental, ele
se fez supérfluo porque a "modernização
retardatária" foi bem-sucedida; no caso das
revoluções de desenvolvimento nacional no
Leste e no Sul, tornou-se imprestável porque a "modernização retardatária", em última instância, fracassou.
"Pax americana"
No final do "longo"
século de suas ondas entrelaçadas de desenvolvimento, o capitalismo tornou o mundo
negativamente compassado sob a égide da
"pax americana". Agora ele não se desenvolve mais. Por isso já não se pode em lugar
algum criticá-lo da perspectiva de uma falta
de seu desenvolvimento. Se o pensamento
de Marx se tornar outra vez atual, certamente não o será como "marxismo".
O próprio Marx, é verdade, nem em sonho imaginaria que a segunda parte daquela frase no prefácio do "Capital" caracterizaria mais de 120 anos de história do desenvolvimento interno da modernidade capitalista. Mas assim é: somente após o "marxismo" poderá ter início a verdadeira crítica
do capitalismo. O renascimento da teoria de
Marx no século 21 terá de descobrir intelectualmente uma terra virgem para além dos
atuais conceitos de "desenvolvimento". Isso
com certeza é difícil de entender. Quem menos quer compreendê-lo, claro, são os
"marxistas" que restaram, cujo trabalho de
acólitos involuntários do desenvolvimento
capitalista perdeu todo o sentido.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.
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