São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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A obra aberta

Instituição que formou a intelectualidade paulistana, Biblioteca Mário de Andrade vive situação penosa desde o início dos anos 90, mas se prepara para remodelação

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Há datas que se comemoram, outras que se execram e outras ainda que convidam à reflexão. Neste último caso estão os 80 anos da Biblioteca Mário de Andrade, contados a partir de 1926, quando ela foi instalada, modestamente, na rua Sete de Abril. O grande salto se deu 15 anos mais tarde, quando ocorreu a transferência para o prédio da rua da Consolação, um prédio majestoso planejado na administração do prefeito Fábio Prado, que viria a ser destituído pelo Estado Novo nos primeiros meses de construção da obra.
Neste ano de 2006, o aniversário da biblioteca nos leva a seus problemas, que não interessam apenas aos paulistanos mas a todas as pessoas que têm o gosto pela leitura, num país em que se lê tão pouco.
A penosa situação da instituição contrasta com o impulso ao consumo de uma megacidade, que impressiona e também agride, pela qualidade da sua gastronomia, por seus palácios verticais luxuosos e de gosto duvidoso, pela ostentação de toda espécie.
Seria injusto, porém, ignorar o desenvolvimento das manifestações culturais e artísticas. Exemplos disso são a Pinacoteca do Estado, a Sala São Paulo de concertos e o Museu da Língua Portuguesa, todos no bairro da Luz, até há pouco tempo uma região degradada.

Retrocesso
Mas São Paulo não tem hoje uma grande biblioteca de leitura e de consulta digna desse nome. É incrível, mas é assim.
A Biblioteca Mário de Andrade não faz aquisições há anos e anos; a conservação do acervo, especialmente da coleção de jornais, é precária; as instalações físicas estão em estado lamentável. O recente furto de obras [leia texto ao lado], por mais lamentável que seja, não é tão grave quanto esse estado de coisas, pois furtos ocorrem até em museus da Noruega.
O quadro atual resultou, sobretudo, do descaso das administrações municipais a partir de 1992 e, em alguma medida, do fato de que a expansão das bibliotecas especializadas veio atender o público universitário.
Esse estado de coisas corresponde não simplesmente a uma falha mas a um retrocesso, se lembrarmos o que foi a Biblioteca Mário de Andrade no passado.
Seus leitores de livros e de jornais não constituíam um público especializado, mas um conjunto de pessoas de inserção social diversa -estudantes modestos, jovens com pretensões intelectuais, autodidatas, "gente comum do povo".
Além disso, a biblioteca foi um pólo de socialização, não pelo que ocorria nas salas de leitura. Nelas, os usuários aprendiam a valorizar o silêncio, a respeitar os demais leitores, sendo contidos pelas severas recriminações gestuais dos funcionários atentos.
Como conta o filósofo Bento Prado Jr., a socialização se dava principalmente no saguão do edifício, em torno de uma estátua de Minerva. Aí, em épocas diversas, formavam-se rodas das quais fizeram parte gente como Mauricio Tragtenberg, Fernanda Montenegro, Leôncio Martins Rodrigues, Flávio Rangel, chamada ironicamente de "os adoradores da estátua".
As discussões desorganizadas, sem nenhum compromisso, iam da estética à política, esta última caracterizada por uma espécie de esquerdismo difuso, entre os pólos do anarquismo e do trotskismo, só recusando a vertente intolerável do stalinismo.
Para os mais boêmios, as discussões se estendiam noite adentro, no circuito de quatro bares das proximidades, cujas mesas e cadeiras se espalhavam pelas calçadas, nas noites de verão ("A Biblioteca e os Bares na Década de 50", em "Revista da Biblioteca Mário de Andrade", 1992).

Reforma em marcha
Mas este texto está longe de ser um muro de lamentações pelo destino da biblioteca. As recentes iniciativas da Secretaria de Cultura, do diretor da instituição e de sua equipe mostram que esse "destino", que não é pois destino em sentido estrito, pode e deve ser alterado. Um conjunto de medidas está em marcha. A biblioteca vai fechar em novembro para realizar um amplo programa de restauro e modernização.
Além disso, mediante convênio com o governo do Estado, ela ocupará um prédio nas suas imediações, onde será instalada a hemeroteca, ou seja, a coleção de jornais e revistas, que ficará em condições adequadas de conservação e consulta.
Com isso, abre-se também espaço no prédio original, permitindo que a aquisição de livros seja retomada. Embora não se deva colocar o carro adiante dos bois, convém lembrar que, se for possível alcançar essas metas, será necessário dotar a biblioteca de recursos públicos e privados constantes, porque a manutenção da qualidade representa uma tarefa tão difícil quanto indispensável.
É hoje uma constatação ao mesmo tempo verdadeira e banal que a educação e a cultura são fatores-chave na promoção do desenvolvimento e da maior igualdade de oportunidades.
Não se educa sem o hábito e o gosto pela leitura, não se formam cidadãos conscientes sem lhes abrir muitas portas para ampliar o conhecimento.
A Biblioteca Mário de Andrade poderá voltar a ser um importante instrumento, na cidade de São Paulo, para reforçar a trilhagem desse caminho.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).


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