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A obra aberta
Instituição que formou a intelectualidade
paulistana, Biblioteca Mário de Andrade
vive situação penosa desde o início dos anos 90,
mas se prepara para remodelação
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Há datas que se comemoram, outras
que se execram e
outras ainda que
convidam à reflexão. Neste último caso estão os
80 anos da Biblioteca Mário de
Andrade, contados a partir de
1926, quando ela foi instalada,
modestamente, na rua Sete de
Abril. O grande salto se deu 15
anos mais tarde, quando ocorreu a transferência para o prédio da rua da Consolação, um
prédio majestoso planejado na
administração do prefeito Fábio Prado, que viria a ser destituído pelo Estado Novo nos
primeiros meses de construção
da obra.
Neste ano de 2006, o aniversário da biblioteca nos leva a
seus problemas, que não interessam apenas aos paulistanos
mas a todas as pessoas que têm
o gosto pela leitura, num país
em que se lê tão pouco.
A penosa situação da instituição contrasta com o impulso
ao consumo de uma megacidade, que impressiona e também
agride, pela qualidade da sua
gastronomia, por seus palácios
verticais luxuosos e de gosto
duvidoso, pela ostentação de
toda espécie.
Seria injusto, porém, ignorar
o desenvolvimento das manifestações culturais e artísticas.
Exemplos disso são a Pinacoteca do Estado, a Sala São Paulo
de concertos e o Museu da Língua Portuguesa, todos no bairro da Luz, até há pouco tempo
uma região degradada.
Retrocesso
Mas São Paulo não tem hoje
uma grande biblioteca de leitura e de consulta digna desse nome. É incrível, mas é assim.
A Biblioteca Mário de Andrade não faz aquisições há anos e
anos; a conservação do acervo,
especialmente da coleção de
jornais, é precária; as instalações físicas estão em estado lamentável. O recente furto de
obras [leia texto ao lado], por
mais lamentável que seja, não é
tão grave quanto esse estado de
coisas, pois furtos ocorrem até
em museus da Noruega.
O quadro atual resultou, sobretudo, do descaso das administrações municipais a partir
de 1992 e, em alguma medida,
do fato de que a expansão das
bibliotecas especializadas veio
atender o público universitário.
Esse estado de coisas corresponde não simplesmente a
uma falha mas a um retrocesso,
se lembrarmos o que foi a Biblioteca Mário de Andrade no
passado.
Seus leitores de livros e de
jornais não constituíam um público especializado, mas um
conjunto de pessoas de inserção social diversa -estudantes
modestos, jovens com pretensões intelectuais, autodidatas,
"gente comum do povo".
Além disso, a biblioteca foi
um pólo de socialização, não
pelo que ocorria nas salas de
leitura. Nelas, os usuários
aprendiam a valorizar o silêncio, a respeitar os demais leitores, sendo contidos pelas severas recriminações gestuais dos
funcionários atentos.
Como conta o filósofo Bento
Prado Jr., a socialização se dava
principalmente no saguão do
edifício, em torno de uma estátua de Minerva. Aí, em épocas
diversas, formavam-se rodas
das quais fizeram parte gente
como Mauricio Tragtenberg,
Fernanda Montenegro, Leôncio Martins Rodrigues, Flávio
Rangel, chamada ironicamente
de "os adoradores da estátua".
As discussões desorganizadas, sem nenhum compromisso, iam da estética à política,
esta última caracterizada por
uma espécie de esquerdismo
difuso, entre os pólos do anarquismo e do trotskismo, só recusando a vertente intolerável
do stalinismo.
Para os mais boêmios, as discussões se estendiam noite
adentro, no circuito de quatro
bares das proximidades, cujas
mesas e cadeiras se espalhavam pelas calçadas, nas noites
de verão ("A Biblioteca e os Bares na Década de 50", em "Revista da Biblioteca Mário de
Andrade", 1992).
Reforma em marcha
Mas este texto está longe de
ser um muro de lamentações
pelo destino da biblioteca. As
recentes iniciativas da Secretaria de Cultura, do diretor da
instituição e de sua equipe
mostram que esse "destino",
que não é pois destino em sentido estrito, pode e deve ser alterado. Um conjunto de medidas está em marcha. A biblioteca vai fechar em novembro para realizar um amplo programa
de restauro e modernização.
Além disso, mediante convênio com o governo do Estado,
ela ocupará um prédio nas suas
imediações, onde será instalada a hemeroteca, ou seja, a coleção de jornais e revistas, que
ficará em condições adequadas
de conservação e consulta.
Com isso, abre-se também
espaço no prédio original, permitindo que a aquisição de livros seja retomada.
Embora não se deva colocar
o carro adiante dos bois, convém lembrar que, se for possível alcançar essas metas, será
necessário dotar a biblioteca de
recursos públicos e privados
constantes, porque a manutenção da qualidade representa
uma tarefa tão difícil quanto
indispensável.
É hoje uma constatação ao
mesmo tempo verdadeira e banal que a educação e a cultura
são fatores-chave na promoção
do desenvolvimento e da maior
igualdade de oportunidades.
Não se educa sem o hábito e o
gosto pela leitura, não se formam cidadãos conscientes sem
lhes abrir muitas portas para
ampliar o conhecimento.
A Biblioteca Mário de Andrade poderá voltar a ser um importante instrumento, na cidade de São Paulo, para reforçar a
trilhagem desse caminho.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução
de 1930" (Companhia das Letras).
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