São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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Moradas de sonho
Estas portas -as entradas das passagens- são limiares. Não os demarca nenhum degrau de pedra, mas sim a atitude de expectativa de algumas pessoas. Passos parcimoniosamente medidos refletem, sem que as pessoas o saibam, que se está diante de uma decisão. Casa de sonho. Amor.

Lojas na passagem des Panoramas: Restaurante Véron, gabinete de leitura, loja de música, Marquês, comércio de vinhos, malharia, aviamentos, alfaiates, sapateiros, malharias, livreiros, caricaturistas, Théâtre des Variétés.
Em contraposição, a Passage Vivienne era a passagem séria. Lá não havia lojas de luxo. Moradas de sonho: passagem como nave de igreja com as capelas laterais.

A rua lasciva do comércio
O comércio e o tráfego são os dois componentes da rua. Ora, nas passagens, o segundo está praticamente extinto; o tráfego aí é rudimentar. A passagem é apenas rua lasciva do comércio, só afeita a despertar os desejos. Mas, como nesta rua os humores deixam de fluir, a mercadoria viceja em suas bordas entremeando relações fantásticas como um tecido ulcerado./ O flâneur sabota o tráfego. Ele também não é comprador. É mercadoria.

O tédio
O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos.

Jogador, flâneur
e o que espera Em vez de passar ("vertreiben') o tempo, é preciso convidá-lo ("einladen") para entrar. Passar o tempo ou matar, expulsar ("austreiben") o tempo: o jogador. O tempo jorra-lhe dos poros./ Carregar-se ("laden") de tempo como uma bateria armazena ("lädt") energia: o flâneur. Finalmente, o terceiro tipo: aquele que espera. Ele carrega-se ("lädt") de tempo e o devolve sob uma outra forma -aquela de espera.


0 Jogos de azar
Quanto mais a vida é submetida a normas administrativas, mais as pessoas precisam aprender a esperar. O jogo de azar tem o grande fascínio de liberar as pessoas da espera.

Ferro-vidro,
cafetões-prostitutas

A miragem empoeirada do jardim de inverno, a sombria perspectiva da estação com o pequeno altar da felicidade no ponto de intersecção dos trilhos, tudo isso mofa sob falsas construções, vidro que surge antes do seu tempo, ferro prematuro. Pois, no primeiro terço do século passado, ninguém sabia como se devia construir com vidro e ferro. Mas há muito que os hangares e silos resolveram a questão. Agora se dá com o material humano no interior o mesmo que com o material de construção das passagens. Os cafetões são os arrimos de ferro desta rua, e, as prostitutas, suas partes quebradiças como vidro.

A passagem como uma igreja
A passagem como construção em ferro fica na fronteira do espaço largo ("Breitraum"). Essa é uma das razões decisivas de sua aparência "antiquada". Ela ocupa aqui uma posição híbrida, que tem certa analogia com a da igreja barroca: "A cobertura (Halle) em abóbada, que admite até mesmo as capelas apenas como alargamento do seu próprio espaço, mais largo que nunca. Mas também nesta cobertura barroca prevalece a tendência "para o alto", o êxtase dirigido às alturas, como rejubila nos afrescos do teto. Enquanto os espaços das igrejas pretendem servir a algo mais do que para fins de reunião, enquanto querem abrigar a idéia de eterno, o espaço único e contínuo apenas poderá satisfazê-los se a altura superar a largura" (A.G. Meyer, "Eisenbauten", pág. 74). Inversamente, pode-se dizer que permanece algo de sagrado, um resquício de nave de igreja, nessa fileira de mercadorias que é a passagem. Do ponto de vista funcional, a passagem já se encontra no domínio do espaço largo, porém, do ponto de vista arquitetônico, ainda está no espaço da antiga "cobertura".

O flâneur
Não seria possível realizar um filme apaixonante a partir do mapa de Paris? A partir da evolução de suas diversas configurações ao longo do tempo? A partir da condensação do movimento secular de suas ruas, bulevares, passagens, praças, no espaço de meia hora? Não é isso que faz o flâneur?
Trechos extraídos de "Passagens", de Walter Benjamin


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