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O Édipo cristão
A historiadora das religiões Karen Armstrong analisa a história da resistência ocidental ao islamismo desde as Cruzadas, na Idade Média
KAREN ARMSTRONG
No século 12, Pedro,
o Venerável, abade
de Cluny, iniciou
um diálogo com o
mundo islâmico:
"Aproximo-me de vocês não
com armas, mas com palavras"
-ele escreveu aos muçulmanos, que, imaginava, leriam seu
livro-; "não com a força, mas
com a razão; não com o ódio,
mas com o amor". No entanto o
tratado do abade trazia por título "Sumário de Toda a Heresia da Seita Diabólica dos Sarracenos" e freqüentemente
deslizava para um estilo de vociferante intransigência.
Pedro não tinha palavras para descrever a "bestial crueldade" do islã, que, segundo ele,
havia se estabelecido pela espada. Maomé foi um verdadeiro
profeta? "Eu seria pior que um
jumento se concordasse", considerou o escritor, "pior do que
um boi caso assentisse".
Pedro escreveu na era das
Cruzadas. Mesmo quando os
cristãos estavam tentando ser
justos, o desdém enraizado que
sentiam pelo islã tornava impossível a eles abordar o tema
de maneira objetiva.
Para Pedro, o islã era tão evidentemente malévolo que jamais pareceu lhe ocorrer a
idéia de que os muçulmanos
que abordava com tamanho
"amor" talvez pudessem se
sentir ofendidos com suas declarações. Essa postura intelectual medieval continua viva e
passa bem.
No dia 12 passado, o papa
Bento 16 citou, sem qualificação e de maneira aparentemente aprovadora, as palavras
de Manuel 2º Paleólogo, imperador bizantino do século 14:
"Mostre-me o que Maomé
trouxe de realmente novo, e lá
serão encontradas apenas coisas malignas e desumanas, tais
como seu ditame de difundir
pela espada a fé que pregava".
O Vaticano parecia atordoado diante da indignação que as
palavras do papa causaram entre os muçulmanos, alegando
que o pontífice tinha por objetivo apenas "cultivar uma atitude de respeito e diálogo para
com outras religiões e culturas
e, obviamente, também para
com o islamismo".
Mas as boas intenções do papa parecem longe de evidentes.
O ódio ao islã é tão onipresente
e tem raízes tão profundas na
cultura ocidental que costuma
unir pessoas que usualmente
se detestam. Nem os cartunistas dinamarqueses que publicaram desenhos ofensivos sobre Maomé em 2005 nem os
fundamentalistas cristãos que
o definiram como pedófilo e
terrorista usualmente fariam
causa comum com o papa, mas,
quanto ao islamismo, parecem
estar todos de acordo.
Imagens espelhadas
Nossa islamofobia remonta à
era das Cruzadas e tende a se
emaranhar com o nosso anti-semitismo crônico. Alguns dos
primeiros cruzados começaram sua jornada à Terra Santa
massacrando comunidades judaicas no vale do Reno; os cruzados encerraram sua campanha de 1099 com o massacre de
cerca de 30 mil muçulmanos e
judeus em Jerusalém.
Desde então, judeus e muçulmanos se tornaram sombras do
cristianismo, imagens espelhadas de tudo que esperávamos
não ser ou temíamos ser.
As fantasias assustadoras
criadas pelos europeus nessa
era perduraram por séculos e
revelam uma ansiedade oculta
quanto à identidade e ao comportamento cristão.
Quando os papas conclamavam os fiéis a participar de cruzadas na Terra Santa, os cruzados freqüentemente perseguiam os judeus locais: por que
marchar 5.000 km até a Palestina para libertar o sepulcro de
Cristo e deixar ilesas as pessoas
que haviam de fato matado Jesus, como os cruzados erroneamente supunham?
Quando os cristãos da Europa começaram a travar guerras
brutais contra os muçulmanos
no Oriente Médio, o islã passou
a ser conhecido no Ocidente
como uma religião belicosa.
Naquela altura, período em
que os papas tentavam impor o
celibato a um clero ainda relutante, Maomé passou a ser retratado pelos mais eruditos
monges europeus como um homem concupiscente, e o islã
terminou condenado com mal
disfarçada inveja -como religião que encorajava seus seguidores a atender aos seus mais
vis instintos sexuais.
Em uma era na qual a ordem
social européia era profundamente hierárquica, o islã era
condenado por pregar respeito
demasiado à mulher e a outras
categorias inferiores.
Em um estado de negação
nada espiritual, os cristãos estavam projetando nas vítimas
das Cruzadas a inquietação
subterrânea que sentiam quanto a suas atividades, criando
inimigos fantásticos à sua imagem e semelhança.
O hábito persistiu. Os muçulmanos que objetaram de maneira tão feroz ao ataque do papa contra o islamismo o acusaram de "hipocrisia", apontando
que a Igreja Católica não está
em boa posição para condenar
a jihad violenta quando ela
mesma foi culpada de violência
nada sacra nas Cruzadas, perseguições e inquisições e, sob o
papa Pio 12, aceitou tacitamente o Holocausto nazista.
O papa Bento 16 fez o seu
controvertido discurso na Alemanha um dia depois do quinto
aniversário dos ataques de 11 de
setembro de 2001. É difícil
acreditar que sua referência
aos traços inerentemente violentos do islamismo tenha sido
acidental.
O novo papa infelizmente
abandonou as iniciativas de
diálogo entre religiões iniciadas sob seu predecessor, João
Paulo 2º, em um momento no
qual são mais desesperadamente necessárias que nunca.
Por virem depois da crise das
charges dinamarquesas, suas
declarações envolvem extremo
perigo. Convencerão mais muçulmanos de que o Ocidente sofre de uma incurável islamofobia e está envolvido em uma
nova cruzada.
Simplesmente não podemos
arcar com o custo desse tipo de
fanatismo. O problema é que
pessoas demais no mundo ocidental compartilham inconscientemente desse preconceito, convictas de que o islã e o Alcorão promovem a violência de
forma irreprimível.
Os terroristas do 11 de Setembro, que na verdade violaram princípios essenciais do islamismo, confirmaram essa
bem enraizada percepção ocidental e são encarados como
muçulmanos típicos -não como os extremistas que realmente eram.
Confronto político
Com perturbadora regularidade, essa convicção medieval
ressurge toda vez que uma crise
começa no Oriente Médio.
Mas, até o século 20, o islã era
uma religião bem mais tolerante e pacífica do que o cristianismo. O Alcorão proíbe estritamente toda forma de coerção
religiosa e considera que qualquer religião corretamente
orientada provém de Deus. Ao
contrário do que acreditam os
ocidentais, os muçulmanos não
impuseram sua fé pela espada.
As conquistas iniciais na Pérsia e nos territórios bizantinos,
após a morte de Maomé, foram
inspiradas por objetivos políticos, e não religiosos. Até a metade do século 8º, a conversão
de judeus e cristãos que habitavam terras no Império Islâmico era ativamente desencorajada, já que, de acordo com os
preceitos do Alcorão, eles haviam recebido revelações religiosas próprias e autênticas.
O extremismo e a intolerância que emergiram no mundo
islâmico atual são resposta a
problemas políticos incontornáveis -o petróleo, a Palestino,
a ocupação de terras muçulmanas e a "duplicidade" que os
muçulmanos vêem no Ocidente- e não derivam de um imperativo religioso profundo.
Mas o velho mito da violência
crônica do islã persiste e emerge nos momentos menos apropriados. Já que se trata de uma
idéia que faz parte do legado do
Ocidente, parece quase impossível erradicá-la.
De fato, talvez a estejamos
alimentando um pouco ao recuarmos aos nossos velhos hábitos de projeção. Ao contemplarmos a violência no Iraque,
Palestina, Líbano -pela qual o
Ocidente tem certa responsabilidade-, talvez sintamos a tentação de atribuir toda a culpa ao
islã. Mas, se estamos alimentando nossos preconceitos dessa forma, o risco é todo nosso.
KAREN ARMSTRONG é historiadora das religiões britânica e autora de "O Islã" (ed. Objetiva). Este texto foi publicado no "Guardian".
Tradução de Paulo Migliacci.
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