São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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NAZISMO

Rompimento com Hitler

Existem encontros na vida em que um gesto significa mais do que palavras. No final de novembro de 1938, Hitler inaugurou na Casa de Arte Alemã uma exposição de arquitetura e proferiu um discurso diante de um grande público. Deteve-se no fato de que a arquitetura alemã, no passado, havia deixado de lado a grandiosidade. Chamou a atenção para a catedral de Berlim, a maior igreja da cidade, que fora construída para apenas 2.500 visitantes. A cidade de Berlim, com seus 4 milhões de habitantes, deveria ter construído uma catedral para 100 mil pessoas.
Poderia ter retrucado a Hitler que ele não tinha noção do espírito e do caráter de uma comunidade religiosa, que expressa sua essência na convivência estreita de seus membros, não em assembléias de massa. Poderia também ter respondido, o que ele próprio deveria saber, que no tempo em que a catedral fora construída ainda não se conheciam alto-falantes. Mesmo um pregador com a mesma força de voz de Hitler não teria conseguido atingir os ouvidos de 100 mil pessoas ao mesmo tempo.
Estava sentado na segunda fileira, bem em frente a Hitler, que falava na tribuna. Todo o auditório aplaudia, como possesso, suas palavras. Cruzei meus braços ostensivamente e apenas olhei Hitler no rosto. Captou meu olhar e ficou visivelmente incomodado.
Todos os anos o Reichsbank organizava uma festa de Natal para os funcionários. O presidente sempre participava e proferia um discurso. Havia anos o Partido se esforçava, e naturalmente não sem resultados, para conquistar para si os funcionários do Reichsbank e doutriná-los na chamada ideologia nacional-socialista. Anteriormente já havia sugerido aos jovens que celebrassem o Natal não apenas com representação mundana, mas que se lembrassem de que a festa de Natal para nós era a celebração da antiga e feliz união milenar de fé cristã e índole germânica, na qual se baseava toda a nossa cultura. Então, no Natal de 1938, fiz um discurso aos jovens no qual falei dos acontecimentos do 9 de novembro. Disse:
"O incêndio criminoso das sinagogas, a destruição e pilhagem de estabelecimentos judaicos e o mau-trato de cidadãos judeus foram ações tão criminosas que qualquer alemão decente tem de ficar ruborizado de vergonha. Espero que nenhum de vocês tenha participado de tais atos. Mas, caso alguém o tenha feito, aconselho-o urgentemente a se retirar do Reichsbank. Aqui não temos lugar para pessoas que não respeitem a vida, a propriedade e a convicção alheias. O Reichsbank está baseado em fidelidade e crença".
Inúmeros chefes de Partido estavam presentes ao discurso.
A última reunião de gabinete do governo se realizou em 4 de fevereiro de 1938 e nunca teve uma sequência. Consistiu unicamente da comunicação de que o brigadeiro Von Fritsch cometera delitos, sobre os quais Hitler no momento não poderia fornecer detalhes. Nunca houve explicação. A reunião de gabinete anterior, em dezembro de 1937, havia discutido o Código Penal, no qual foi incluído o conceito jurídico de "sentimento popular saudável" que posteriormente seria utilizado para o julgamento da condenabilidade. Fui o único membro do gabinete a tomar a palavra e expor:
"Se o senhor quer utilizar esse "sentimento popular saudável" como decisivo para sentenças de tribunais, senhor chanceler, então recomendaria que fosse formada uma comissão, com membros competentes de todas as partes do Reich, que decida o que é "sentimento popular saudável", pois esse é muito variável. Em certas regiões rurais, por exemplo, faz parte do "sentimento popular" que o futuro marido se certifique antes do casamento da capacidade de procriação de sua futura esposa. Em outras regiões da Alemanha, o sexo antes do casamento não corresponde absolutamente ao "sentimento popular'".
Curiosamente, Hitler respondeu a essa observação:
"O senhor pode ter razão. Talvez possa se pensar na criação dessa comissão".
O memorando do Reichsbank, no qual pedíamos a interrupção dos gastos desmedidos com armamentos, foi encaminhado a Hitler em 7 de janeiro de 1939, sem que tivéssemos qualquer notícia sobre seu resultado. A única coisa, que nos foi transmitida por subalternos, foi que Hitler, ao ver as oito assinaturas, exclamou: "Isto é motim!".
Hitler sempre tentou impedir que vários ministros ou outros colaboradores se encontrassem para discussão dos problemas públicos.
Posteriormente, instruiu seus ministros formalmente por escrito que não se encontrassem sob hipótese alguma para discussões. Temia, senão conspirações, um protesto em conjunto. Tanto mais irritou-o a visão das oito assinaturas no memorando do Reichsbank.
(...)
No dia 19 de janeiro de 1939, quando cheguei tarde em casa, encontrei uma série de recados telefônicos e telegráficos para que fosse na manhã seguinte, pontualmente às 9h, à chancelaria do Reich. Na manhã seguinte, o horário foi adiado por telefone para às 9h15. Nessa hora, mal havia chegado ao grande salão do jardim da chancelaria, quando o Führer entrou e se desenrolou a seguinte conversa:
"Mandei chamá-lo, sr. Schacht, para entregar-lhe seu documento de demissão do cargo de presidente do Reichsbank".
Entregou-me em silêncio o papel, que segurei sem olhar.
"O senhor não se enquadra em todo o contexto nacional-socialista."
Silêncio de minha parte e breve pausa. "O senhor se negou a submeter seus funcionários ao controle político do Partido."
Silêncio de minha parte e breve pausa, nervosismo crescente de Hitler.
"Criticou e condenou os acontecimentos de 9 de novembro diante de seus funcionários."
Não respondi às primeiras frases de Hitler porque concordava com sua observação de que não me enquadrava no contexto do Partido. Por conseguinte, havia comunicado e justificado reiteradas vezes perante Hitler que não deixaria que meus funcionários fossem submetidos à crítica do Partido. Explicara que precisava escolher meus funcionários para executar a tarefa confiada a mim. Não considerava, portanto, necessário voltar a esse ponto. Depois que Hitler aludiu à festa de Natal de meus funcionários, coloquei em minha resposta todo o sarcasmo disponível: "Se eu soubesse que o senhor, meu Führer, aprova esses acontecimentos, teria me calado".
Essa resposta perturbou Hitler visivelmente, de modo que se calou. Balbuciou: "Estou muito agitado para poder continuar falando com o senhor agora".
"Posso voltar quando o senhor se acalmar."
"E o que o senhor acredita, sr. Schacht, não vai acontecer. Não haverá inflação."
"Seria muito bom, meu Führer."
Sem dizer mais nada, acompanhou-me por dois aposentos até a porta de saída, onde me despedi.
No decorrer do dia, Hitler deve ter refletido como iria justificar minha saída do Reichsbank publicamente. Como fiquei sabendo pela chancelaria, uma carta de despedida já escrita com teor muito violento foi abrandada no decorrer do dia e expressava até que Hitler desejava continuar utilizando-se de minha consultoria. Por essa razão também não aconteceu a revogação do cargo de ministro sem pasta.
Nos dias seguintes, realizei minha mudança da residência oficial do Reichsbank para uma casa própria em Charlottenburg, que havia passado a ser meu endereço comercial para os assuntos do cargo de ministro sem pasta. Com isso renunciava a qualquer representação oficial; nunca mais fui chamado na qualidade de ministro sem pasta.


Tradução de Tereza M. Souza de Castro.


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