São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Um romantismo precoce e neoliberal

Em "Esperando Foucault, Ainda", o antropólogo Marshall Sahlins ataca a dicotomia entre indivíduo e sociedade que teria sido criada pelos pós-estruturalistas

Vinicius Mota
Editor de Mundo

A corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzschiana pelo poder é a encarnação mais recente do incurável funcionalismo da antropologia". Dificilmente outro enunciado poderia ser mais provocativo a uma cultura bem estabelecida nas academias das humanidades, no Brasil inclusive, nos dias que correm. O novo livro do antropólogo americano Marshall Sahlins lançado no Brasil, "Esperando Foucault, Ainda", está repleto desse tipo de provocação.
O volume é baseado numa intervenção descontraída -chamada pelo autor de "entretenimento"- do eminente professor da Universidade de Chicago numa convenção de antropólogos da Commonwealth, em 1993.
O motivo da perturbação de Sahlins não é apenas o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) mas sobretudo seus seguidores pós-estruturalistas. Além de argumentar a favor de que eles constroem um novo tipo de funcionalismo, fundado na idéia de que tudo pode se resumir a uma relação de poder, há no livro uma provocação política que, aos mais fiéis foucaultianos, talvez cause engulhos.
O virtuosismo estético dos pós-estruturalistas, associado por Marshall Sahlins ao romantismo precoce, os tornou prisioneiros da dicotomia cega entre indivíduo e sociedade, o que faz os foucaultianos, afirma o antropólogo, validarem o mesmo campo simbólico em que atua o individualismo neoliberal: "Direita e Esquerda se empurraram uma à outra para as teses extremas do determinismo individual [que Sahlins chama de Individualismo Radical] e do determinismo cultural [Leviatanologia]", diz no livro.
Como vencer essa dicotomia é uma questão que Sahlins, autor de livros importantes, como "Como Pensam os Nativos" (Edusp), "Cultura e Razão Prática" e "Ilhas de História" (ed. Jorge Zahar), responde na entrevista abaixo.
 

Ao ler seu livro, tem-se a impressão de que o sr. não está "Esperando por Foucault", mas esperando que ele vá embora. Foucault e seus seguidores não têm nenhuma contribuição importante para a antropologia?
Acho que a atual "posteriologia" [tradução do neologismo "afterology"] é um estilo estético cíclico que envolve um retorno em larga escala ao final do século 18 -"Ímpeto e Tempestade" [alusão à escola pré-romântica alemã da qual Goethe fazia parte]- e ao romantismo do século 19. A "posteriologia" e o horror à forma e à ordem -uma política acadêmica da decomposição: sempre desconectada- do romantismo precoce, antiiluminista, partilham de numerosas características.
Para tomar a caracterização do romantismo precoce feita por Isaiah Berlin [1909-1997], a atual onda de desconstrução "posteriológica", de modo similar, é marcada por: desconfiança de fórmulas universais na política; revolta contra a simplicidade; antipatia estética à padronização; sentimento da "glória do imperfeito"; protesto contra toda forma de universalidade; desdém pela forma (estrutura); e acima de tudo aquela "étalage du moi" [ostentação do eu], a tremenda ênfase dos pietistas na relação da alma humana individual com o seu criador, da qual deriva uma valorização byroniana do indivíduo em relação à ordem cultural, cujo mais moderno ascendente é o neoliberalismo.
Não só Foucault improvisa brilhantemente sobre vários desses temas mas, mais particularmente, a sua redução das formas culturais aos efeitos do poder funciona como uma eliminação poderosa do conteúdo substantivo da cultura, procedimento que é quase análogo ao da clássica estética romântica. Que isso deixa Foucault com a subjetividade do (já destruído) sujeito é uma dupla ironia, na medida em que essa operação também converge para o neoliberalismo individualista.
O que restará disso na próxima fase estruturalista das ciências humanas e das humanidades? Um senso mais complexo das relações nas e das diferenças -graças a Foucault & companhia.
Também poderá haver ganhos na abertura da caixa-preta da "subjetividade", apesar de que esses ganhos podem igualmente se dever a encarnações anteriores (agora ignoradas) de "subjetividades": "caráter nacional", "estrutura básica da personalidade" (ou "personalidade e cultura") e o predecessor francês "mentalités" [mentalidades] -já que falamos de ciclos.

Mas, no final de sua vida, Foucault não tentou temperar a noção de um poder irresistível que em tudo penetra e que molda todos os corpos -a noção que o sr. critica- com seus estudos tardios sobre como os gregos antigos formavam a sua subjetividade?
De certa forma, sim. Mas o problema não é resgatar Foucault de Foucault. O problema, agora, é um pan-humanismo foucaultiano que sempre ignorou a especificidade histórica e etnográfica (Europa moderna) da viagem de poder feita por Foucault e que tomou seus resultados por uma teoria geral de como a sociedade funciona (nas pessoas).

Como é possível superar a dicotomia que o sr. identifica na nossa sociedade: de um lado, o Individualismo Radical da direita, que elimina o social e o cultural como elementos autônomos; do outro, a "Leviatanologia" da esquerda, que erradica o sujeito?
Compreendendo: 1) que a ordem cultural e as disposições subjetivas das pessoas são irredutíveis uma às outras; 2) as condições históricas e estruturais nas quais os indivíduos são autorizados a encarnar coletividades, confinando, assim, o destino da sociedade aos sujeitos particulares que ela escolheu para representá-la. Eu tenho um livro a ser lançado em dezembro, "Apologies to Thucydides - Understanding History as Culture and Vice-Versa" [Desculpas a Tucídides - Compreendendo a História como Cultura e Vice-Versa], que tenta explicar esse assunto. Também há capítulos de "Culture in Practice" [Cultura na Prática] -prestes a serem publicados no Brasil- que lidam com esse tema.

Parte de seu trabalho como antropólogo lida com o contato transcultural. Podemos entender o 11 de Setembro como um contato entre culturas distintas? Há alguma possibilidade de uma etnologia daqueles ataques terroristas?
Decerto o momento atual envolve contato intercultural (sem mencionar o ressurgimento do missionarismo ocidental, espalhando a mensagem sagrada da democracia). Mas a noção de contato cultural é demasiadamente genérica e indeterminada para especificar a conjuntura atual; deixemos de lado aquele acontecimento particular.


Esperando Foucault, Ainda
80 págs., R$ 22,00 de Marshall Sahlins. Trad. Marcela Coelho de Souza e Eduardo Viveiros de Castro. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/3255-3364).



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