São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Ponto de fuga

Doce escuro

Jorge Coli
especial para a Folha

"O seqüestro foi assim." O ator se serve de uma pasta de couro, quadrada, com a forma de um livro avantajado. "O chofer estava aqui." Mostra com o dedo. "O outro se sentou aqui." "O general entrou por esta porta." "Quando eu fui abrir a minha, estava travada. O carro partiu."
Em seu filme "Agente Triplo", apresentado no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, é assim, pouco mais ou menos, que Rohmer cria uma cena de ação. Não há flashback, não há violência visual. A pasta, o dedo, as palavras adquirem existência intensa. Tornam-se verdade cinematográfica, mas guardam consigo a possibilidade traiçoeira de que essa persuasão seja mentirosa.
No início, um letreiro avisa, com delicadeza, que o filme se inspira em "um acontecimento verdadeiro, ainda não inteiramente elucidado". Testemunho, convicção e suspeita são inseparáveis: eles formam o instrumento essencial para sondar o que passou. A História, com "H" maiúsculo, desenha, no filme, o lugar das verdades não reveladas. Vem focalizada num momento agudo, quando os falsos semblantes e os blefes se precipitam, graças ao pacto germano-soviético.
Mas há também a força dos laços pessoais, inscrita na expressão dos afetos, nas intensidades eróticas, exasperada por um gesto ou uma roupa. Há a intuição de cada um sobre o sentido das coisas, fundando-se em crenças e, por isso mesmo, sujeitas às traições. Há a sinceridade do amor e o cinismo do cálculo, a confiança ideológica e o oportunismo político. O cinema de Rohmer filma o invisível, um invisível densamente povoado. As imagens na tela parecem acidentais, como indícios desse invisível maior.

Latências - Dario Argento tem o mais terrível surrealismo nas veias. Não por uma filiação intencional ao movimento, mas porque há, nesse diretor, uma fatalidade de ser surrealista. Em "Il Cartaio" (O Jogador de Cartas), sempre no Festival de Cinema do Rio, Argento constrói sua história a partir dos esquemas rocambolescos dos "serials"; chega a incluir uma cena em que a heroína é algemada nos trilhos de um trem, na melhor tradição de Pearl White e "Os Perigos de Pauline".
O jogo com formas de narração cinematográficas, antigas e populares, desconcerta o público de hoje e mesmo alguns fiéis admiradores. Argento desdenha a verossimilhança do "plot" para investir em angústias desesperadas, nas quais morte e arbitrário vão de par.

Passado - Outro filme, do mesmo festival: "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci. Faz uma incursão pelos tempos esperançosos de 1968, pela memória desses tempos. Traz uma luz que contrasta com o horizonte cinzento dos impulsos e dos afetos vividos hoje em dia. Sexualidades são descobertas e exploradas com fascínio e com inocência. Eclodem pulsões libertárias, libertinas, destinadas a todas as juventudes. É, no entanto, proibido para menores de 18 anos.

Bisturi - "Non Ti Muovere" (Não Se Mova), filme italiano de Sergio Castellito, ainda no Festival de Cinema do Rio de Janeiro: melodrama como não se faz mais, com a emoção levada ao extremo das lágrimas. Sem imitar, sem citações, sem referências ou intenções intelectuais. Penélope Cruz, "the latest latino actress with sexy legs and luscious lips" [a última atriz latina com pernas sexy e lábios suculentos], como diz um site, explode seu gênio interpretativo, quase feia, num personagem sofrido.

Praia - As delirantes produções de Bollywood compartilham as telas com uma crônica de sentimentos delicados, feita na Noruega, ou com o as cenas resplandecentes de Zhang Yimou, em "Herói". Pode-se passar dos Sérgio Leone ao último Rivette. O extraordinário "Contra Todos", de Roberto Moreira, sai premiado. No Festival de Cinema do Rio de Janeiro, o hedonismo é múltiplo. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, séria, sisuda, intelectual, paulistana, tem o mérito de trazer produções raras de países distantes, feitas por diretores impronunciáveis.
No Rio, o mote do festival deste ano foi "cinema da cabeça aos pés". A de São Paulo deveria ser: "Festival do filme-cabeça".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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