São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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+ música

O maestro brasileiro, nomeado regente associado da Filarmônica de Nova York, fala da turnê da Osesp nos EUA e da "inspiração divina" de Bach e Beethoven

Repertório sem fronteiras

Arthur Nestrovski
Articulista da Folha

A notícia saiu timidamente, como se ninguém estivesse acreditando na dimensão real dos fatos. Mas a nomeação de Roberto Minczuk para o posto de regente associado da Filarmônica de Nova York tem significado histórico para a música brasileira. Aos 35 anos, ele assume o segundo posto dessa que é, por consenso, uma das melhores do mundo. Regente associado da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo desde a renovação promovida por John Neschling em 1997, Minczuk foi aluno-prodígio de trompa na Juilliard School, em Nova York, onde morou dos 13 aos 20 anos. Assumiu depois o posto de primeira trompa da orquestra Gewandhaus, de Leipzig (Alemanha), sob a regência de Kurt Masur, de quem se tornaria assistente, anos mais tarde, na mesma Filarmônica de Nova York (atualmente dirigida por Lorin Maazel). Nesta entrevista, concedida ao Mais! em Nova York, por ocasião do também histórico concerto da Osesp no Lincoln Center, em 10/11, Minczuk fala de suas atividades futuras, do seu desejo de compor, da relação entre religião e música.

Quais serão suas atribuições na Filarmônica de Nova York?
Começando em abril, vou reger uma série de concertos da orquestra nos distritos (Brooklyn, Bronx, Queens etc.), além dos "concertos para a juventude", no Lincoln Center. Depois, em julho, rejo nos parques: duas apresentações no Central Park, mais seis ou sete em outros parques da cidade. Cada uma atrai habitualmente entre 90 mil e 120 mil pessoas. Vou também dividir os concertos com o maestro Maazel no Festival de Vale (Colorado), onde a orquestra fará uma residência. E em novembro está marcada minha estréia na série de assinaturas; serão quatro concertos no Avery Fisher Hall.
O fato de um músico brasileiro tornar-se regente associado da Filarmônica de Nova York tem significado histórico para o país. Mas que significado tem esse convite, intimamente, para você?
Pouco antes do convite, eu pensava comigo que havia coisas que gostaria de fazer, importantes para meu aprendizado. Já estava com uma atividade extensa. A própria Filarmônica de Nova York eu regi pela primeira vez num concurso em 1997; fiz depois minha estréia em 98. Foi, aliás, o que abriu portas para o mercado internacional. A partir de então, regi várias orquestras americanas importantes. Na Europa, regi há pouco a Sinfônica de Londres -e vou reger em Viena em 2003 (no "Musikverein"). Faço de 90 a 100 concertos por ano. Quer dizer: eu me via numa verdadeira carreira de maestro, fazendo aquilo que sempre sonhei fazer. Mas, ao mesmo tempo, pensava: puxa, embarquei numa jornada... Queria tempo para estudar, estar com grandes maestros.
E a Osesp no meio disso tudo.
Lembro que, quando comecei a trabalhar com Neschling, tive a mesma sensação [vontade de aprender". Estava regendo em Ribeirão Preto [interior de SP" e me dizia que precisava estar com alguém que tivesse carreira internacional e pudesse me ajudar. Quando surgiu a oportunidade, foi fantástico. E logo em seguida veio a chance de atuar como assistente do Kurt Masur também, aqui em Nova York.
E agora, com Maazel?
Da mesma forma, eu me dizia: preciso aprender com aquele regente de técnica perfeita, que dominou completamente a arte de reger, como expressão plástica; e Maazel foi o nome que me veio à cabeça. Ele ou Seiji Ozawa [regente da sinfônica de Boston (1973-2001) e, atualmente, da Ópera Estatal de Viena], gente que atingiu esse grau de perfeição. Mas como? O Maazel era regente em Munique; eu, em São Paulo. Veja como são as coisas...
Em que medida a experiência religiosa é importante para a sua experiência musical e vice-versa?
Meu pai era diretor de música na igreja. Assim que pude, comecei a ler a Bíblia, pelos 8 anos de idade. Ao mesmo tempo, comecei a estudar música. Música e fé caminham sempre juntas para mim. A música, para mim, é uma coisa que vem de Deus. Nos grandes compositores, o que sinto é uma inspiração divina. Apesar de a música também tratar da dimensão humana. Mas existe outro aspecto, algo de extraordinariamente bonito, que transcende aquilo que se pode apalpar. O compositor que sempre admirei acima de todos é Bach (1685-1750). E na sua música como na sua vida pode-se ver alguém que reconhecia que tudo era para Deus e tudo vinha de Deus. Os conflitos que teve com a igreja não importam. A fé não tem igreja. É uma coisa pessoal, a relação direta que cada um tem com Deus. Isso me inspirou muito. Não só Bach, mas Beethoven, Brahms. A música, para mim, é um dos meios de relacionamento entre Deus e o homem que Ele criou. Um dos elos dessa relação.
O que muda agora na sua atividade com a Osesp?
A Osesp é uma orquestra do meu coração. É incrível ver como se desenvolveu. Os planos se concretizaram: criar uma grande orquestra, ter uma grande sala, começar a gravar o repertório brasileiro, levar esse repertório para o mundo afora. Fico muito contente de fazer parte dessa história. Na prática, minha atividade não muda em 2003. Devo reger nove concertos de assinatura e continuar regendo as gravações [para o selo Bis". Se Deus quiser, vamos concluir a série das "Bachianas Brasileiras" [de Villa-Lobos" e fazer mais um disco de danças brasileiras. Também participo da turnê pela Europa [Suíça, Alemanha, França e outros países a confirmar].
Que sugestões concretas você daria ao novo governo, para melhorar a condição da música clássica no Brasil?
Precisa ter alguém como o Neschling no ministério! Para desdobrar esse projeto Osesp em 50. E não só na música, mas em teatro, dança etc. É preciso investimento semelhante ao que o governo de São Paulo vem fazendo. E com meios de incentivo realmente eficazes. É preciso sonhar alto e levar isto a sério, até as últimas consequências.
O que você gostaria de fazer como músico e o que ainda não fez?
Tantas coisas... Reger ópera. Compor -algo que faço desde pequeno e tive de interromper para me dedicar à regência. O grande desafio da música é a composição. Como regente, muita coisa também. Só regi uma sinfonia de Bruckner [a número 4]. Preciso reger todas as de Mahler (só regi algumas). Gostaria de reger música de compositores vivos. E reger uma grande orquestra no Rio de Janeiro. Quer dizer: ver projetos como o da Osesp se concretizando em outras partes do Brasil. No Rio, em particular, uma cidade que eu amo. Ultimamente tenho tido vontade de tocar trompa, de novo. Ando pensando em voltar a tocar, fazer música de câmara. Meus filhos andam estudando música e eu gostaria de tocar com eles. Cultivar boa música em casa.


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