São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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+ sociedade

Banalidade do mal e fantasia telenovelesca


Reações conservadoras ao "caso Suzane" ignoram que a família burguesa foi o grande caldo de cultura do sofrimento mental moderno


Maria Rita Kehl
especial para a Folha

 "Toda época que tem medo de si mesma tende à restauração"
Thomas Mann

Por que o parricídio nos mobiliza tanto? A mim, que entre outras coisas sou mãe, parece mais hediondo o crime do pai ou da mãe que assassinam os seres a quem deram a vida. O marido traído que mata a mulher e as crianças num acesso de ciúmes. A mulher abandonada que se atira do décimo andar levando junto o filho de três anos. O desempregado que espanca o bebê até a morte porque não suporta ouvir o choro dele. Por que esses crimes nos parecem menos hediondos do que o do filho ou filha que mata seus pais? Talvez porque as leis sejam feitas pelos pais, para proteger a sociedade que se representa como sociedade dos adultos, na qual crianças e adolescentes estão se preparando para ingressar; o amor obrigatório a pai e mãe é o quarto dos dez mandamentos. Talvez porque resquícios inconscientes de séculos de pátrio poder nos façam crer que, no fundo, esse seja um direito a que os pais podem recorrer -em casos-limite. Ou porque o adolescente, "enfant gaté" da cultura de massas, sempre nos pareça ameaçador.

Tranquilizar os leitores
Do crime da rua Zacarias de Góis, em São Paulo, pouco podemos explicar. Não o vejo como "sinal dos tempos". Não revela, necessariamente, a falta de limites dos jovens de hoje -se assim fosse, teríamos dois desses por dia, no mínimo. Aliás, não temos testemunhas confiáveis para saber como Manfred e Marísia von Richthofen educavam seus rebentos. É um crime típico, diz reportagem da Folha de 10/11: conflito familiar, motivos fúteis, sem armas de fogo. Típico e, ao mesmo tempo, extremo. Interessa-me sua "recepção", que se revela nas tentativas da imprensa de tranquilizar a opinião pública com explicações de especialistas. Como a família Richthofen pode ser identificada com grande parte das famílias de classes A e B brasileiras, trata-se de buscar rapidamente causas que tranquilizem a elite dos leitores de jornais e revistas. Se a explicação é a falta de autoridade ou omissão paternas, todos os casais que não pecam por desleixo ou excesso de liberalismo podem respirar aliviados: na "nossa família" isso não vai acontecer.

Pais unidos, filhos na escola
O confronto com o horror incompreensível suscita reações conservadoras. Culpa-se a dissolução familiar, típica da modernidade tardia. Mas aquela não era justamente uma família dita "bem estruturada"? Pais unidos, filhos na escola, educados dentro de limites aparentemente claros: pois não foi a consistente oposição do casal ao namoro de Suzane com um rapaz de uma classe mais baixa, desempregado, que deflagrou a tragédia? A reação conservadora não parece levar em conta esse fato. Como não parece levar em conta que a família burguesa "bem constituída", monogâmica, incestuosa e claustrofóbica, foi, durante os dois séculos de sua vigência, o grande caldo de cultura do sofrimento mental moderno. Não foi por coincidência que a psicanálise surgiu na segunda metade do século 19, quando as famílias "bem estruturadas" estavam em seu apogeu e a autoridade paterna se erguia, no espaço privado, como substitutivo simbólico de outro "pai" que, na pré-modernidade, costurava o laço social e organizava o espaço público: Deus e seus representantes terrenos, a igreja e o monarca. Não foi por acaso que as formas de mal-estar típicas da modernidade -o sofrimento neurótico, as inibições, a culpa pelas fantasias recalcadas de incesto e parricídio- tenham se revelado ao ouvido sensível do dr. Freud em plena vigência da família vitoriana. Também não é coincidência que o parricídio seja um dos pilares que sustentam a teoria psicanalítica: Édipo, Totem e Tabu. Não podemos conhecer, com base no noticiário, as mentes de Suzane von Richthofen e [seu namorado] Daniel Cravinhos de Paula e Silva. O crime lembra casos de "folie à deux" [loucura a dois], em que uma parceria erótica e/ou passional funciona de modo a ativar e autorizar o que existe de mais perverso nos parceiros -pessoas que, fora do laço amoroso, pareciam mais ou menos "normais". A paixão correspondida deixa os sujeitos mais em paz com seu próprio superego. A idealização sexual do parceiro ajuda a suspender parcialmente o recalque que inibia os excessos e produzia o bom comportamento dos amantes, antes de se conhecerem. A cultura consente que os apaixonados cometam algumas loucurinhas, algumas extravagâncias a mais. Só que às vezes a coisa vai longe demais. Depois de um crime como esse, é frequente que os membros do casal, separados na prisão, não se reconheçam no que fizeram. Como se a dupla, unida pelo laço perverso, formasse uma entidade à parte, com vida própria, capaz de atos que cada parceiro, separadamente, não ousaria cometer. "Folie à deux."

Estupidez comum
O que me aterroriza quanto ao suposto panorama mental de Suzane é a estupidez comum da moça. Se é para pensar o crime como "sinal dos tempos", não podemos dissociá-lo dos efeitos da cultura de massa na nossa sociedade. Vazios de pensamento + alienação a um Outro, emissor de sentidos (banais) para a existência = banalidade do mal.
O crime é estúpido como o enredo que o motivou; não tanto a rebeldia adolescente contra pais tirânicos (parece que não eram assim), mas a fantasia telenovelesca do casal apaixonado que vai dissipar a herança dos pais numa vida de beira-de-piscina. Se de alguma forma esse crime diz respeito ao resto da sociedade bem comportada, é pelo viés da falta de sentido nos projetos de vida tipo "topa tudo por dinheiro", que os adultos têm apresentado às novas gerações.
Um último comentário: percebo uma tentativa de analisar o "caso Suzane" e a descoberta do sequestro de Pedrinho pela mãe adotiva como se fossem faces de uma mesma moeda. Não vejo relação. Mesmo porque o sequestro, descoberto agora, aconteceu 16 anos atrás.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.


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