São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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A escritora inglesa A.S. Byatt e a psicanalista brasileira Ignês Sodré confundem ficção e realidade em "Imaginando Personagens"

A boa e velha vida alheia


Tornou-se uma proibição intransponível tratar de personagens de um romance como se fossem pessoas reais


Imaginando Personagens
350 págs., R$ 35,00 de A.S. Byatt e Ignês Sodré. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/ 21/ 2585-2000).

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

A coleção "Oficina Interior", da editora Civilização Brasileira, vem trazendo ao público brasileiro diversos livros interessantes e, digamos, bem pouco "populares": as crônicas musicais do escritor cubano Alejo Carpentier ("O Músico em Mim"), as impressões do marchand Ambroise Vollard sobre alguns de seus contemporâneos ("Ouvindo Cézanne, Degas, Renoir") e o corrosivo estudo sobre "O Mito do Maestro", de Norman Lebrechet. Este "Imaginando Personagens" não foge ao espírito da coleção. Ignês Sodré é uma psicanalista brasileira radicada em Londres há mais de 20 anos. A escritora A.S. Byatt é autora, entre outros, de "Possessão", premiado exemplo dos chamados "romances de campus" -com intrigas envolvendo eruditos e humanistas entre os muros de uma universidade. Esse romance, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, foi recentemente adaptado para o cinema, com direção de Neil LaBute.
"Imaginando Pesonagens" é composto das longas conversas entre Byatt e Sodré a respeito de seis romances: "Mansfield Park", de Jane Austen, "Villette", de Charlotte Brontë, "Daniel Deronda", de George Eliot, "A Casa do Professor", de Willa Cather, "Uma Rosa Informal", de Iris Murdoch, e "Amada", de Toni Morrison. É recomendável que o leitor tenha por perto esses seis livros, antes de mergulhar no diálogo entre as autoras. Cada conversa é precedida de um breve resumo do romance comentado, mas a iniciativa é de pouca ajuda. Corre-se o risco de perder rapidamente o interesse por sinopses como a que segue.
"Mansfield Park, cenário do terceiro romance (1814) de Jane Austen, é uma propriedade em Northamptonshire pertencente a sir Thomas Bertram. Sua mulher, Lady Bertram, era, antes de se casar, uma das três irmãs Ward. Sir Thomas acolhe em sua família a jovem heroína Fanny Price, um dos muitos filhos de sua cunhada (...) Fanny é recebida friamente pelos primos, tio e tias, em particular pela sra. Norris, a terceira irmã Ward. (...) Apenas Edmund, o sensível filho mais novo de sir Thomas, é generoso com ela, e Fanny se apaixona secretamente por ele. Edmund, no entanto, cai pelos encantos da bonita e namoradeira Mary Crawford, irmã de um primeiro casamento da sra. Grant (...) Mary também tem um irmão arrebatador, Henry, que se complica ao flertar descaradamente com as irmãs de Edmund, Julia e Maria, particularmente Maria, que é noiva do próspero, mas afetado, sr. Rushworth."
Ufa! Imagino que psicanalistas tenham muito treino em esquematizar mentalmente tais labirintos de afeto e parentesco, coisa que os romancistas, por sua vez, gostam de construir, e dos quais os personagens só conseguem sair quando morrem ou se casam.
Diga-se, sem purismo nem falso escândalo, que há tanto interesse pela literatura quanto pela boa e velha vida alheia nestas conversas entre Byatt e Sodré. Tornou-se uma proibição intransponível, do ponto de vista da crítica literária, tratar de personagens de um romance como se fossem pessoas reais; e uma das restrições mais comuns ao uso da psicanálise no estudo da literatura é a de que não se está falando de seres humanos com inconsciente, memória, traumas de infância e sonhos próprios, mas sim de construções fictícias, criadas pelo escritor. A separação entre "real" e "literário" não pode ser, porém, tão exclusiva assim. Uma autora como Jane Austen, dizem Byatt e Sodré, permite justamente que se fale de seus personagens como se de fato existissem: e este é um dos prazeres de ler romances, afinal.
Os comentários de Byatt e Sodré são, ao mesmo tempo, extremamente sensíveis para a qualidade literária (o que, num romance, não se confunde com a qualidade estilística) do texto. Comentando as páginas iniciais de "Daniel Deronda", de George Eliot, Byatt analisa a sequência de perguntas com que se abre a narração, dizendo que tudo é construído para que sintamos algo de maldoso com relação à protagonista; nota que as descrições do ambiente -uma casa de jogo no continente europeu- se cercam de "precisão total e de mistério total"; que começamos a conhecer a protagonista por meio dos efeitos que exerce sobre um outro personagem, que desconfia dela... Uma série de habilidades e de astúcias literárias é identificada, para concluir-se que, "ao longo do romance, ninguém gosta de Gwendolen; em qualquer romance convencional, uma pessoa apresentada desta maneira seria a vilã... mas estamos conhecendo a vítima". Comentário de Ignês Sodré: "Ela sofre de falta de perspicácia, e isto é basicamente, segundo George Eliot, a sua falha; ela é danosa porque é incapaz de enxergar...".
Desse modo, avalia-se tanto a personagem quanto o livro, tanto as metáforas (literárias) quanto as imagens (psicológicas), tanto as astúcias e invenções do narrador quanto as lições morais que reservam os acontecimentos de cada romance.
Também em outro aspecto, "Imaginando Personagens" parece dissolver a separação entre os livros e o mundo real. É que, em vez de apresentar-se como um livro de crítica, que poderíamos ler devagar, parece levar-nos de chofre à sala de estar onde conversam as duas autoras e amigas, tomando chá tranquilamente. Podemos admirar a inteligência de ambas, mas nos sentimos pouco à vontade no meio da conversa.


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