São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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Ponto de fuga

A marca do crime

Divulgação
Cena do filme "Dragão Vermelho"


"Hoje em dia, não há mais crimes nem criminosos." Quem se lamentava assim era Sherlock Holmes, no início de "Um Estudo em Vermelho", para ser logo desmentido. Vários gênios do mal alimentaram as aventuras do grande detetive, de 1887 a 1927. A Ediouro republicou-as todas, recentemente, numa edição muito bonita: três volumes de capa inspirada, bem aninhados num estojo. Alguma coisa como 1.600 páginas, que prometem um percurso de longa felicidade.
Muitos dos temas que, num passado mais distante, pertenciam à filosofia, terminaram, no século 20, sendo recuperados pela literatura policial. Os vínculos entre crime e culpa, por exemplo, foram aprofundados de modo vertiginoso por Patricia Highsmith; a inerência possível do mal dentro da natureza humana está implicada nos crimes decifrados por Miss Marple [personagem de Agatha Christie]. Sherlock Holmes traz outra coisa. Ele afirma a impossibilidade do secreto. Aquela maravilhosa felicidade das 1.600 páginas é tecida também por fios de angústia. Homens e mulheres trazem, em seu aspecto e atitudes, os sinais indisfarçáveis do que foram e do que são. Mais ainda, nenhum gesto, nenhuma ação, passa pelo mundo sem deixar traços. A mente superior do detetive sabe desvendá-los simplesmente porque os rastros estão ali, expostos, como que pedindo para serem lidos. Sherlock Holmes pressupõe que ninguém pode esconder nada de modo definitivo. Não há dissimulação capaz de recobrir maiores ou menores transgressões, crimes pequenos ou grandes.

Solução - O gênio de Holmes era muito superior aos problemas correntes. Queixava-se: "Olhe pela janela. Pode haver um mundo mais triste, horrendo e inútil? O que poderá haver de mais irremediavelmente prosaico e material? Para que servem os poderes, doutor, quando não há campo para exercê-los? O crime é comum, a existência é comum, e as qualidades não têm função na Terra, a não ser as comuns". Quando não se deparava com algum caso excepcional, encontrava apenas na cocaína uma saída para ocupar sua mente ociosa.

Equatorial - Epidemias, endemias, lepra e malária, população exígua num território vasto, saturado pela floresta úmida de chuvas excessivas, a Guiana Francesa, até 1945, significou para a metrópole o país dos degredados. Dreyfus e Papillon foram seus condenados mais ilustres, em meio a milhares de anônimos entregues às "devoradoras de homens", como as prisões eram chamadas. Longe do mundo e ignorada (a mais importante enciclopédia francesa de nossos dias, a "Universalis", não lhe consagra nem sequer um verbete específico), a Guiana Francesa oferece, ao imaginário, a respiração deletéria de um pântano. É nesse ambiente que se passa o romance de Paule Constant, "A Filha do Governador" (José Olympio).
A heroína é uma garotinha de 7 anos, filha do administrador geral do presídio. Sua mãe, enfermeira que prefere cuidar a curar, contrai lepra com júbilo, graças a um misticismo cristão fervoroso. A menina fica abandonada entre os prisioneiros. Na aparência, "A Filha do Governador" é um romance de formação. Mas, a tal ponto corroído por dentro, ele se mostra antes como um pesadelo degradante. A infância decai antes de vir a ser, decompondo-se por força de choques e crueldades absurdas. Paule Constant é francesa, escreveu outros romances premiados e uma tese sobre "A Educação das Moças Aristocratas do Século 16 ao 19".

Gourmet - "Rush Hour 2" foi uma comédia chocha. O diretor Brett Ratner acerta um pouco mais em "Dragão Vermelho". Há como que dois filmes no filme: um, ligado às relações entre o antropófago Hannibal Lecter e o jovem detetive; outro, à volta do criminoso Dollarhyde, sua obsessão por um desenho de William Blake e sua afeição por uma jovem cega. Essa situação é, de longe, a mais interessante, onde pairam lembranças que vão de "Frankenstein" a "Psicose". Ralph Fiennes oferece força perturbadora ao "serial killer"; a tatuagem do demônio confere a seu corpo uma animalidade sobrenatural.

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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