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+ brasil 504 d.C.
Leia abaixo o primeiro artigo do historiador na seção
As revoluções da Revolução Russa
Boris Fausto
Nenhum episódio e sua seqüência histórica tiveram maiores
reviravoltas, ao longo do século
20, do que a Revolução Russa,
de outubro (novembro) de 1917. Ela foi,
desde logo, o teste negativo de uma certa
concepção do socialismo, cujos dogmas
principais podem ser assim resumidos:
estatização e centralização da economia;
fim da propriedade privada; controle total do poder por um partido único que,
por definição, encarnava não só as virtudes da classe operária, como superava
seus limites corporativos.
Para encontrar um momento histórico
revolucionário, tão carregado de significações, teríamos de recuar ao fim do século 18, tomando como paradigma a Revolução Francesa. Não por acaso, foi esta
a referência maior dos revolucionários
russos -os de fevereiro e, em parte, os
de outubro-, até que a caricatura do
bolchevismo e seus mitos se enraizassem
definitivamente. A Marselhesa, girondinos e jacobinos, a "reação termidoriana", representada pela ascensão de Stálin, foram marcos referenciais da Revolução Russa e de seus desdobramentos.
Nos dois episódios revolucionários, as
ondas contraditórias não corresponderam apenas a oscilações usuais da historiografia, que, de qualquer forma, não
são neutras, mas estiveram intimamente
associadas a batalhas políticas e a uma
política de Estado, guardadas as diferenças de contexto e de tempo.
Grande mito
No âmbito da esquerda, a União Soviética deu origem ao
grande mito do século 20. Ao contrário
do que ocorreu com a Alemanha de Hitler, cuja mitologia era essencialmente
nacional-ariana, o mito soviético se revestiu das idéias de universalismo, de luta contra a violência imperialista, contra
a exploração, como uma espécie de bússola iluminadora dos caminhos que conduziriam ao socialismo.
Por outro lado, de um ponto de vista
sociológico, o desdobramento da revolução no regime stalinista resultou numa
forma política nova que Trótski foi um
dos primeiros a perceber, embora não
chegasse a realizar a crítica mais profunda do sistema soviético. Assim como o
fenômeno do Estado totalitário moderno não poderia ser compreendido pelas
definições aplicáveis aos antigos regimes
despóticos, também o fenômeno da
constituição e cristalização da burocracia soviética não tinha antecedentes no
passado.
Por isso mesmo, explicá-la como estrato social típico do sistema foi um dilema
colocado diante de quem quisesse entender, sem viseiras, o que era a União Soviética. Questão que não tem uma resposta única e passou por muitas definições: estrato dirigente do capitalismo de
Estado, formação social sobreposta ao
Estado operário degenerado etc. Aberta,
em vida, a controvérsias, a burocracia
gerou outras mais, pelas circunstâncias
de sua imprevista queda, quando havia
quem imaginasse que ela inaugurara
uma forma estável de dominação, capaz
de durar alguns séculos.
Para não multiplicar as questões, fiquemos apenas com mais uma -os personagens revolucionários e sua construção, limitando os exemplos a Stálin e
Trótski. Encarnação de um regime brutal, contido na própria definição -"stalinismo"-, Stálin deu origem a um mito
contraditório, em que o projeto coletivo
de um socialismo supostamente igualitário era personificado na figura infalível
de um guia genial. Muito se especulou
sobre a continuidade entre a imagem dos
"czares" protetores de seu povo e do
"czar vermelho". Mas essa aproximação,
embora verdadeira, não dá conta de toda
a dimensão do culto a Stálin, que se implantou no âmago dos Partidos Comunistas de todo o mundo.
A partir das denúncias de Kruschev no
20º Congresso do PC da URSS (1956),
ocorreu uma imensa reviravolta. As denúncias tinham a ver com o jogo de poder interno e com a necessidade de limitar o alcance da crítica ao regime soviético, concentrando-a ao máximo na figura
de Stálin e nos males do culto da personalidade. Mas a derrubada do ícone supremo foi a primeira grande sacudida
que acabou levando ao colapso da União
Soviética. Hoje, "stalinismo" e "stalinista" transformaram-se em substantivo e
qualificativo negativos, embora ainda
existam saudosos do stalinismo em todo
o mundo, especialmente na Rússia, onde
sobretudo as velhas gerações comparam
os tempos incertos do capitalismo selvagem à mínima segurança material assegurada pelo antigo regime.
Memória cortada
Do outro lado da
moeda, Trótski representou um exemplo de supressão da memória. Derrotado
na luta contra Stálin, sua presença central na Revolução de Outubro, ao lado de
Lênin, desapareceu da historiografia soviética e das imagens que retratavam essa presença. Trótski e o trotskismo tornaram-se as bestas malditas do stalinismo, funcionando como uma das principais explicações para os expurgos, os
campos de concentração, a morte de milhões, as carências do regime. Se no
mundo nazista o bacilo judaico fermentava em imaginárias conspirações, no regime soviético o bacilo trotskista integrava o mesmo tipo de paranóia, mas paranóia instrumental, num caso e no outro.
Quem poderia afirmar -digamos, em
1945- que haveria uma reavaliação radical das figuras de Stálin e de Trótski, algumas décadas depois? A figura de Stálin
ganhou dimensões sinistras, quaisquer
que tenham sido seus méritos na industrialização a ferro e fogo da União Soviética, ou na vitória alcançada na Segunda
Guerra Mundial, apesar de ter liqüidado
alguns de seus principais comandantes
às vésperas do conflito.
Por outro lado, se apenas pequenas
correntes reivindicam hoje o trotskismo,
se suas concepções se chocam com os
princípios democráticos, a figura de
Trótski se destaca por muitas razões: pela importância de seu papel histórico, pela riqueza de pensamento, pelo esforço
de entender, numa dimensão político-sociológica, o processo pelo qual foi alijado do poder, que teve, como último ato,
seu assassinato no México por um agente stalinista.
É difícil afirmar como se avaliará a Revolução Russa daqui, digamos, 200 anos.
Tempestade avassaladora, mas que não
deixou vestígios? Tentativa inicial de impor o socialismo que, por seus erros, serviu de negativo para as experiências futuras? Pergunta sem resposta, pois não
temos nas mãos a chave do tempo.
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